Desde muito cedo na história da
humanidade, como nós a conhecemos por relatos historiográficos, a posse da
água foi importante para manter a hegemonia de alguns agrupamentos
humanos, principalmente onde ela não jorrava com abundância. A posse
dos mananciais de água doce era também a posse do seu
entorno e uma arma poderosa para dominar a terra e o rio
(territó-rio) na defesa contra os inimigos. Seu controle sempre representou e
representará um meio essencial que tem como objetivo final tomar e assegurar o
poder. Obviamente isso gerou e gera guerras até os dias atuais. Entender a
dinâmica das águas, saber transportá-la em aquedutos, desenvolver a irrigação
para grandes plantações, entender o poder medicinal que elas oferecem, entre outras formas de com ela
relacionar-se, transformou a história de muitos povos. A história demonstra
claramente que o domínio sobre este conhecimento se traduz em poder. O saudoso
estudioso da questão hídrica Aldo Rebouças, revela um pouco de como a água
influenciou a tomada de poder por alguns povos antigos. Relata ele que,
O controle das inundações do
rio Nilo foi a base do poder da civilização Egípcia, desde cerca de 3,4 mil
anos a.C.. Nos vales dos rios Amarelo e Indu, a utilização da água como forma
de poder foi iniciada em 3 mil a.C., sendo exercida por meio de obras de
controle de enchentes e da oferta de água para a irrigação e abastecimento das
populações. O controle do rio Eufrates foi a base do poder da Primeira Dinastia
da Babilônia, possibilitando ao Rei Hamurábi – 1792 a 1750 a.C. – unificar a
Mesopotâmia e elevar sua região norte a uma posição hegemônica. Dessa forma, o
poder que reinava no sul da Mesopotâmia, desde o terceiro milênio a.C., foi
deslocado para a região norte, onde permaneceu por mais de mil anos. Para
alguns, a politização e centralização atuais do poder sobre a água teriam tido
suas origens nessa época. (2002, p. 17).
Embora outros povos tenham
desenvolvido técnicas de irrigação e canalização das águas séculos antes dos
romanos, este povo foi profundamente moldado pelo entendimento de como utilizar
as águas em seu favor. Se hoje sabemos que eles exerceram
enorme domínio em seus tempos de glória, muito desta se deve a este
conhecimento para manter a força sobre os inimigos políticos e militares. A
água tinha tamanha importância para os romanos que até foi criado o termo rival dada a disputa entre os
moradores da Roma antiga por este elemento natural.
A apropriação da água também
foi essencial para o processo de soberania territorial de muitas nações. Não
por acaso rios e lagos marcam as fronteiras de vários países e estados. Cada
vez mais nações necessitam dialogar sobre o consumo das águas que dividem as
suas fronteiras. São 263 rios com o papel de dividir fronteiras entre países,5 com um potencial para grandes
conflitos econômicos, políticos e militares quando é necessário definir quem é
o dono do patrimônio hídrico. Sua posse vai influenciar diretamente no
desenvolvimento econômico e na autonomia política das nações envolvidas e
nenhuma delas quer sair perdendo quando o assunto envolve influência econômica
e soberania territorial.
No mundo moderno o poder sobre
água vai além do controle sobre a sede alheia e a produção de alimentos no
campo. A indústria, seja ela qual for, depende visceralmente da água. Em
algumas regiões, o transporte é feito pela navegação e isso inclui transportar
remédios e alimentos. É possível afirmar que grande parte do lazer é
identificado com a água. Basta ver para onde vão muitos habitantes das grandes
cidades nos finais de semana ou feriados: praias, rios, cachoeiras, lagos,
açudes, piscinas, etc. Sem falar nas culturas que são inspiradas nos seres
humanos pela relação que estes desenvolvem como os corpos de água próximos de
onde residem. Água e poder caminham juntos há milênios e é por isso que cada
vez mais os grupos econômicos interessam-se por este assunto. Possuir a água é
ter poder político, social, cultural e, principalmente, econômico.
Água e poder no Brasil
Aqui no Brasil não podia ser
diferente a relação entre agrupamentos humanos e a água. Os primeiros
povoamentos aconteceram próximos aos mananciais de água doce. Alguns povos
indígenas que habitavam as margens de rios e lagoas foram expulsos de seus
territórios quando da invasão dos europeus. Um exemplo foi que aconteceu com
alguns destes povos no Semiárido brasileiro. Vaqueiros, a serviço do latifúndio
agropastoril nordestino, apossaram-se de várias fontes de água utilizadas pelos
povos indígenas que habitavam o sertão para matar a sede das boiadas que
transportavam (GARCIA, 1984). O mesmo aconteceu por causa da extração de
minerais em várias outras partes do Brasil.
No plano do desenvolvimento
econômico industrial a água também teve papel importante. Pode-se afirmar que a
água foi uma peça fundamental para a expansão do poderio europeu no Brasil.
Isso aconteceu principalmente porque os engenhos de açúcar do litoral
nordestino eram instalados próximos aos rios que faziam movimentar as rodas
d´água que moíam as canas. Foram estas rodas d´água as alavancas da indústria
açucareira que enriqueceu europeus. E é esta mesma indústria uma das grandes
poluidoras dos rios brasileiros.
Hoje, esta relação entre indústria
e poder econômico tem nas hidrelétricas um dos seus pilares. Atualmente, mais
de 60% da geração de energia é de responsabilidade de empresas privadas. Como
mais de 90% de energia elétrica brasileira vem da hidroeletricidade, isso
significa muita água em mãos privadas, pois controlar a geração de energia
elétrica é controlar as águas que a geram. Foi para prevenir este tipo de coisa
que Getúlio Vargas deu ao Brasil, em 1934, a sua primeira lei para o
ordenamento do seu patrimônio hídrico. Vargas sancionou
o Código das Águas pelo Decreto 24.643 daquele
ano (BRASIL, 2010) colocando a água como um bem publico.
É claro que sendo pública não
significa que a água será acessível a toda a população. E disso sabemos muito
bem no Brasil. Na última crise hídrica de São Paulo, por exemplo, enquanto os
bairros periféricos sofriam com dias de racionamento, os bairros abastados
continuaram com suas piscinas cheias e algumas indústrias continuaram pagando
menos que o usuário comum pela água consumida em um caso típico de lucro
privatizado e prejuízo partilhado pelos mais pobres.
Também é o caso aqui de
ressaltarmos a disputa pela água para a agricultura. O agronegócio monocultor
tem se apossado cada vez mais de águas subterrâneas e daquelas que correm pelos
rios, como é caso do São Francisco. O Projeto de Transposição das Águas do Rio
São Francisco levará parte da água transposta para o agronegócio na região
semiárida do Nordeste e beneficiará proprietários de empresas produtoras da
fruticultura irrigada. Os grupos que detém o poder no campo estão conseguindo
continuar o trabalho iniciado durante a Ditadura Civil-Militar com a construção
das hidrelétricas e colocar o maior manancial do Nordeste em perigo. É
essencial para os donos dos meios de produção possuir toda a rede produtiva
envolvida, e a água, como já afirmamos acima, é parte essencial para produzir
alimentos. Além do mais, este poder sobre a água impede que os pequenos
produtores possam competir na produção de frutas, legumes e verduras, gerando
monopólios sobre a cultivo de diversas culturas alimentares. Controlar a água é
controlar a vida pela sede e pela fome, já que todo o processo de produção de
alimentos depende dela.
Água
e política
Este tópico é bem conhecido dos
brasileiros. A água como moeda de troca para manter grupos políticos no poder é
uma tradição antiga em nosso país.
O clássico samba “Lata d´água
na cabeça”6 conta um pouco a história de Maria,
representante de tantas mulheres faveladas que viviam nos morros cariocas. Lá
era necessário, para lavar roupa ou conseguir água para outros afazeres
domésticos, subir os degraus do morro para encontrar as bicas que jorravam
água. Foram as instalações dessas bicas que se transformaram em moeda de troca
por votos criando até mesmo a figura do “Político de bica d´água” que teve o
seu maior expoente em Chagas Freiras. Seu estilo, a troca das bicas d´água por
votos, dominou a política fluminense a ponto de ter sido criado o termo Chaguismo.
O caso do Semiárido nordestino
já é por demais estudado e tornado público, mas parece que ainda não condenado
como deveria. Basta ver o caso do Projeto de Transposição das Águas do Rio São
Francisco e como mais uma vez a água foi utilizada para ganhar votos por vários
políticos de campos ideológicas diferentes.
O surgimento da Agência
Nacional de Águas – ANA, através do Decreto 9.984, no ano
2000, e sua equivalente em cada estado da federação, é resultado
das políticas neoliberais do Presidente Fernando Henrique Cardoso e teve em sua
formulação vários agentes defensores da cobrança da água como política pública.
Iniciava-se a visão mercadológica sobre a água brasileira.
A atual onda de privatizações
das empresas distribuidoras de água nos estados brasileiros forçada pelo
Presidente Temer não passa de outra política influenciada pelo Banco Mundial já
repetida e fracassada em várias partes do mundo. Já de olho neste mercado,
foram reveladas que grandes empresas doariam dinheiro para campanhas de
candidatos aos governos dos estados para que estes, caso eleitos, facilitassem
a privatização das empresas7.
É urgente colocar a questão
privatização da água, e sua consequente posse por alguns grupos econômicos, na
pauta política. Em 2018 teremos eleições e precisamos saber o que os candidatos
pensam sobre este assunto. Quem sabe poderiam assinar um documento
comprometendo-se a firmar a água como um bem público e a recuperar nossos rios,
que mesmos públicos, estão cada vez mais sendo tomados por empresas do
agronegócio monocultor e grandes indústrias que dele retiram a água e a
devolvem de forma imprestável. (ecodebate)
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