As mudanças climáticas e a crise silenciosa das doenças tropicais negligenciadas: Uma análise socioambiental.
As mudanças climáticas agravam a crise das doenças tropicais negligenciadas (DTNs) ao expandir a área de vetores de doenças, como mosquitos, e ao alterar a qualidade do ar e da água. Essa interconexão é um problema de saúde pública global, pois a crise climática favorece a proliferação de doenças como dengue e malária, enquanto a negligência com os sintomas e a falta de saneamento básico prejudicam ainda mais as populações mais vulneráveis, ressalta EcoDebate e Brasil de Fato.
Como as mudanças climáticas
impactam as DTNs
Expansão de vetores: O
aumento da temperatura e da umidade favorece a proliferação e a expansão
geográfica de vetores como mosquitos, que transmitem doenças como dengue, zika,
chikungunya e malária.
Disponibilidade de água: A
alteração dos padrões de chuva e a escassez de água potável, combinadas com a
falta de saneamento básico, aumentam a exposição a doenças transmitidas pela
água, como a esquistossomose e o tracoma.
Qualidade do ar e alimento: A
poluição do ar, muitas vezes intensificada por eventos como queimadas, agrava
doenças respiratórias. A insegurança alimentar, também relacionada ao clima,
pode levar à adoção de hábitos alimentares que facilitam a transmissão de
outras doenças infecciosas.
Impacto em comunidades
vulneráveis: As populações mais pobres são desproporcionalmente afetadas, pois
têm menos acesso a saneamento, moradia digna e saúde, o que as torna mais
suscetíveis a contrair e sofrer com as DTNs.
Exemplos de DTNs: Leishmaniose, Malária, Dengue e Zika, Chikungunya, Filariose linfática (elefantíase), Oncocercose (cegueira dos rios), Tracoma, Esquistossomose, Doença de Chagas
Aumento previsto na incidência da dengue devido às mudanças climáticas até 2050. Os círculos negros mostram cidades nos países de estudo com mais de 5 milhões de habitantes.
Introdução
As Doenças Tropicais
Negligenciadas (DTNs) representam um grupo de 20 doenças que afetam mais de 1,7
bilhão de pessoas, predominantemente nas comunidades mais pobres e
marginalizadas do mundo. Caracterizadas por sua forte correlação com a pobreza,
a falta de saneamento básico e o acesso limitado à saúde, as DTNs têm seu fardo
agravado por uma ameaça emergente e global: as mudanças climáticas.
Este artigo visa aprofundar a
análise sobre a interconexão entre o aquecimento global e a dinâmica das DTNs,
explorando os mecanismos científicos de transmissão, o impacto socioeconômico
desproporcional e a urgência de políticas públicas integradas para um
enfrentamento eficaz.
Palavras-chaves: crise
global, doenças parasitárias, saúde única, saúde pública, zoonoses.
2. Mecanismos científicos da
interconexão
A influência das mudanças
climáticas sobre as DTNs não é linear, mas opera através de complexos mecanismos
biofísicos e ecológicos que alteram a distribuição, a incidência e a
intensidade dessas enfermidades.
Alteração do ciclo de vida
dos vetores
O aumento da temperatura média global é o fator mais direto. As
temperaturas mais elevadas aceleram o ciclo de vida de vetores como mosquitos (Aedes,
Anopheles) e flebotomíneos, reduzindo o tempo de incubação extrínseca do
parasita (o período que o parasita leva para se desenvolver no vetor e se
tornar infeccioso). Isso significa que o vetor pode transmitir a doença mais
rapidamente, aumentando o potencial de surtos (Tabela 1).
|
Fator Climático |
Efeito no Vetor/Transmissão |
Doenças Afetadas |
|
Aumento temperatura |
Acelera ciclo de vida do
vetor e a replicação do patógeno (redução do período incubação Extrínseca). |
Chikungunya, Malária, Dengue,
Leishmaniose. |
|
Alteração precipitação |
Inundações criam novos
criadouros (águas paradas); Secas concentram populações humanas e vetores em
fontes de água limitadas. |
Doenças transmissão hídrica, Esquistossomose, Malária. |
|
Eventos extremos |
Destruição de infraestrutura
de saúde e saneamento, aumento da exposição a água contaminada. |
DTNs de transmissão hídrica e
vetorial. |
|
Expansão geográfica |
Temperaturas mais amenas em
altitudes e latitudes mais elevadas permitem que vetores se estabeleçam em
novas áreas. |
Malária, Dengue,
Leishmaniose. |
3. Eventos
climáticos extremos e saneamento
Eventos como inundações e secas têm um impacto devastador na infraestrutura de saneamento básico. Inundações, como as observadas no Paquistão (2022) e no Brasil (Rio Grande do Sul, 2024), contaminam fontes de água e destroem sistemas de esgoto, levando ao aumento de doenças de transmissão hídrica, como a esquistossomose e doenças diarreicas, além de criar vastos criadouros para mosquitos. Por outro lado, as secas forçam a concentração de populações humanas e animais em torno de fontes de água escassas, aumentando o contato e a transmissão de patógenos.
Mudanças climáticas podem levar doença de Chagas para novas áreas amazônicas
Transmissão Vetorial – ocorre
quando o barbeiro pica e defeca na pele. Ao coçar, a pessoa pode levar o
parasita para dentro do corpo.
As mudanças climáticas estão
alterando de forma silenciosa, mas progressiva, o cenário de saúde pública na
Amazônia. Além dos impactos já observados em enchentes, estiagens e surtos de
doenças como dengue e malária, um novo alerta científico aponta para a
reemergência de uma enfermidade negligenciada: a Doença de Chagas.
4. O impacto socioeconômico e
a injustiça climática
A crise climática é,
fundamentalmente, uma crise de justiça social. O impacto das DTNs, já
concentrado em populações de baixa renda, é exponencialmente agravado pelas
alterações climáticas.
“O impacto das alterações
climáticas será suportado de forma desproporcional pelas pessoas mais pobres”.
– Daniel Madandi, Diretor do Programa Global da Malária da OMS.
O custo socioeconômico é colossal.
As DTNs causam incapacidade, estigma e morte prematura, perpetuando o ciclo da
pobreza. Quando um evento climático extremo atinge uma comunidade, a destruição
de moradias, a perda de meios de subsistência e a subsequente eclosão de DTNs
(como a malária após inundações) impõem uma pressão insustentável sobre
famílias e sistemas de saúde frágeis. O resultado é a perda de produtividade, o
aumento dos gastos com saúde e a dificuldade de recuperação econômica, tornando
a adaptação climática uma miragem para essas populações.
A falta de pesquisa também reflete essa desigualdade. Uma análise da OMS revelou que a maioria dos estudos sobre DTNs e clima se concentra em países de baixa carga da doença e com amplo acesso a cuidados de saúde, enquanto as DTNs mais negligenciadas permanecem sub-representadas na literatura científica. Essa lacuna de conhecimento impede a formulação de estratégias de mitigação e adaptação baseadas em evidências para quem mais precisa.
Fortalecendo a intersetorialidade em tempos de emergência climática na luta contra as iniquidades em saúde
5. A urgência de políticas
públicas integradas
O enfrentamento dessa crise
exige uma mudança de paradigma, passando de uma abordagem setorial de saúde
para uma visão holística e intersetorial:
Vigilância e modelagem
preditiva
É
crucial investir em modelagem mais abrangente, colaborativa e padronizada para
prever os efeitos das alterações climáticas na dinâmica das DTNs. A vigilância
epidemiológica deve ser fortalecida, integrando dados climáticos (temperatura,
precipitação, umidade) com dados de saúde para criar sistemas de alerta precoce
eficazes.
Ação intersetorial e
saneamento
As políticas públicas devem
reconhecer a saúde como um resultado da interação entre ambiente, clima e
condições sociais. Iniciativas como o programa “Brasil Saudável” demonstram a
necessidade de alinhar o combate às DTNs com ações de manejo ambiental,
transferência de renda e garantia de moradia e saneamento básico. O combate à
esquistossomose, por exemplo, não é apenas uma questão de tratamento médico,
mas fundamentalmente de garantir água de qualidade e saneamento básico, o que
se torna ainda mais crítico em cenários de eventos climáticos extremos.
Fortalecimento dos sistemas
de saúde
As mudanças climáticas estão
intensificando a crise das Doenças Tropicais Negligenciadas, criando uma
“tempestade perfeita” de vulnerabilidade social e ambiental. A luta contra as DTNs
é inseparável da luta por justiça climática e ambiental.
A mensagem do Dia Mundial das
DTNs — Unir, Agir, Eliminar — nunca foi tão pertinente. É imperativo que a
comunidade global, governos, academia e sociedade civil unam esforços para
preencher as lacunas de pesquisa, implementar políticas públicas intersetoriais
e garantir que as populações mais afetadas não sejam desassistidas. Somente
através de uma ação climática ambiciosa e de um compromisso renovado com a
equidade em saúde poderemos proteger a civilização humana dessa ameaça
silenciosa e crescente. (ecodebate)
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