sexta-feira, 28 de novembro de 2025

Mudanças climáticas e a crise silenciosa das doenças tropicais negligenciadas

As mudanças climáticas e a crise silenciosa das doenças tropicais negligenciadas: Uma análise socioambiental.

As mudanças climáticas agravam a crise das doenças tropicais negligenciadas (DTNs) ao expandir a área de vetores de doenças, como mosquitos, e ao alterar a qualidade do ar e da água. Essa interconexão é um problema de saúde pública global, pois a crise climática favorece a proliferação de doenças como dengue e malária, enquanto a negligência com os sintomas e a falta de saneamento básico prejudicam ainda mais as populações mais vulneráveis, ressalta EcoDebate e Brasil de Fato.

Como as mudanças climáticas impactam as DTNs

Expansão de vetores: O aumento da temperatura e da umidade favorece a proliferação e a expansão geográfica de vetores como mosquitos, que transmitem doenças como dengue, zika, chikungunya e malária.

Disponibilidade de água: A alteração dos padrões de chuva e a escassez de água potável, combinadas com a falta de saneamento básico, aumentam a exposição a doenças transmitidas pela água, como a esquistossomose e o tracoma.

Qualidade do ar e alimento: A poluição do ar, muitas vezes intensificada por eventos como queimadas, agrava doenças respiratórias. A insegurança alimentar, também relacionada ao clima, pode levar à adoção de hábitos alimentares que facilitam a transmissão de outras doenças infecciosas.

Impacto em comunidades vulneráveis: As populações mais pobres são desproporcionalmente afetadas, pois têm menos acesso a saneamento, moradia digna e saúde, o que as torna mais suscetíveis a contrair e sofrer com as DTNs.

Exemplos de DTNs: Leishmaniose, Malária, Dengue e Zika, Chikungunya, Filariose linfática (elefantíase), Oncocercose (cegueira dos rios), Tracoma, Esquistossomose, Doença de Chagas

Aumento previsto na incidência da dengue devido às mudanças climáticas até 2050. Os círculos negros mostram cidades nos países de estudo com mais de 5 milhões de habitantes.

Introdução

As Doenças Tropicais Negligenciadas (DTNs) representam um grupo de 20 doenças que afetam mais de 1,7 bilhão de pessoas, predominantemente nas comunidades mais pobres e marginalizadas do mundo. Caracterizadas por sua forte correlação com a pobreza, a falta de saneamento básico e o acesso limitado à saúde, as DTNs têm seu fardo agravado por uma ameaça emergente e global: as mudanças climáticas.

Este artigo visa aprofundar a análise sobre a interconexão entre o aquecimento global e a dinâmica das DTNs, explorando os mecanismos científicos de transmissão, o impacto socioeconômico desproporcional e a urgência de políticas públicas integradas para um enfrentamento eficaz.

Palavras-chaves: crise global, doenças parasitárias, saúde única, saúde pública, zoonoses.

2. Mecanismos científicos da interconexão

A influência das mudanças climáticas sobre as DTNs não é linear, mas opera através de complexos mecanismos biofísicos e ecológicos que alteram a distribuição, a incidência e a intensidade dessas enfermidades.

Alteração do ciclo de vida dos vetores

O aumento da temperatura média global é o fator mais direto. As temperaturas mais elevadas aceleram o ciclo de vida de vetores como mosquitos (Aedes, Anopheles) e flebotomíneos, reduzindo o tempo de incubação extrínseca do parasita (o período que o parasita leva para se desenvolver no vetor e se tornar infeccioso). Isso significa que o vetor pode transmitir a doença mais rapidamente, aumentando o potencial de surtos (Tabela 1).

Tabela 1: Tabela de fatores climáticos e os efeitos que podem influenciar os vetores ou transmissão.

Fator Climático

Efeito no Vetor/Transmissão

Doenças Afetadas

Aumento temperatura

Acelera ciclo de vida do vetor e a replicação do patógeno (redução do período incubação Extrínseca).

Chikungunya, Malária, Dengue, Leishmaniose.

Alteração precipitação

Inundações criam novos criadouros (águas paradas); Secas concentram populações humanas e vetores em fontes de água limitadas.

Doenças transmissão hídrica,  Esquistossomose,  Malária.

Eventos extremos

Destruição de infraestrutura de saúde e saneamento, aumento da exposição a água contaminada.

DTNs de transmissão hídrica e vetorial.

Expansão geográfica

Temperaturas mais amenas em altitudes e latitudes mais elevadas permitem que vetores se estabeleçam em novas áreas.

Malária, Dengue, Leishmaniose.

3. Eventos climáticos extremos e saneamento

Eventos como inundações e secas têm um impacto devastador na infraestrutura de saneamento básico. Inundações, como as observadas no Paquistão (2022) e no Brasil (Rio Grande do Sul, 2024), contaminam fontes de água e destroem sistemas de esgoto, levando ao aumento de doenças de transmissão hídrica, como a esquistossomose e doenças diarreicas, além de criar vastos criadouros para mosquitos. Por outro lado, as secas forçam a concentração de populações humanas e animais em torno de fontes de água escassas, aumentando o contato e a transmissão de patógenos.

Mudanças climáticas podem levar doença de Chagas para novas áreas amazônicas

Transmissão Vetorial – ocorre quando o barbeiro pica e defeca na pele. Ao coçar, a pessoa pode levar o parasita para dentro do corpo.

As mudanças climáticas estão alterando de forma silenciosa, mas progressiva, o cenário de saúde pública na Amazônia. Além dos impactos já observados em enchentes, estiagens e surtos de doenças como dengue e malária, um novo alerta científico aponta para a reemergência de uma enfermidade negligenciada: a Doença de Chagas.

4. O impacto socioeconômico e a injustiça climática

A crise climática é, fundamentalmente, uma crise de justiça social. O impacto das DTNs, já concentrado em populações de baixa renda, é exponencialmente agravado pelas alterações climáticas.

“O impacto das alterações climáticas será suportado de forma desproporcional pelas pessoas mais pobres”. – Daniel Madandi, Diretor do Programa Global da Malária da OMS.

O custo socioeconômico é colossal. As DTNs causam incapacidade, estigma e morte prematura, perpetuando o ciclo da pobreza. Quando um evento climático extremo atinge uma comunidade, a destruição de moradias, a perda de meios de subsistência e a subsequente eclosão de DTNs (como a malária após inundações) impõem uma pressão insustentável sobre famílias e sistemas de saúde frágeis. O resultado é a perda de produtividade, o aumento dos gastos com saúde e a dificuldade de recuperação econômica, tornando a adaptação climática uma miragem para essas populações.

A falta de pesquisa também reflete essa desigualdade. Uma análise da OMS revelou que a maioria dos estudos sobre DTNs e clima se concentra em países de baixa carga da doença e com amplo acesso a cuidados de saúde, enquanto as DTNs mais negligenciadas permanecem sub-representadas na literatura científica. Essa lacuna de conhecimento impede a formulação de estratégias de mitigação e adaptação baseadas em evidências para quem mais precisa.

Fortalecendo a intersetorialidade em tempos de emergência climática na luta contra as iniquidades em saúde

5. A urgência de políticas públicas integradas

O enfrentamento dessa crise exige uma mudança de paradigma, passando de uma abordagem setorial de saúde para uma visão holística e intersetorial:

Vigilância e modelagem preditiva

É crucial investir em modelagem mais abrangente, colaborativa e padronizada para prever os efeitos das alterações climáticas na dinâmica das DTNs. A vigilância epidemiológica deve ser fortalecida, integrando dados climáticos (temperatura, precipitação, umidade) com dados de saúde para criar sistemas de alerta precoce eficazes.

Ação intersetorial e saneamento

As políticas públicas devem reconhecer a saúde como um resultado da interação entre ambiente, clima e condições sociais. Iniciativas como o programa “Brasil Saudável” demonstram a necessidade de alinhar o combate às DTNs com ações de manejo ambiental, transferência de renda e garantia de moradia e saneamento básico. O combate à esquistossomose, por exemplo, não é apenas uma questão de tratamento médico, mas fundamentalmente de garantir água de qualidade e saneamento básico, o que se torna ainda mais crítico em cenários de eventos climáticos extremos.

Fortalecimento dos sistemas de saúde

Os sistemas de saúde nas áreas vulneráveis devem ser adaptados para serem resilientes ao clima. Isso inclui a capacidade de resposta a surtos pós-desastres, o estoque estratégico de medicamentos e insumos, e a formação de profissionais de saúde com foco nas questões socioambientais e na saúde planetária.
6. Conclusão

As mudanças climáticas estão intensificando a crise das Doenças Tropicais Negligenciadas, criando uma “tempestade perfeita” de vulnerabilidade social e ambiental. A luta contra as DTNs é inseparável da luta por justiça climática e ambiental.

A mensagem do Dia Mundial das DTNs — Unir, Agir, Eliminar — nunca foi tão pertinente. É imperativo que a comunidade global, governos, academia e sociedade civil unam esforços para preencher as lacunas de pesquisa, implementar políticas públicas intersetoriais e garantir que as populações mais afetadas não sejam desassistidas. Somente através de uma ação climática ambiciosa e de um compromisso renovado com a equidade em saúde poderemos proteger a civilização humana dessa ameaça silenciosa e crescente. (ecodebate)

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