Crise hídrica e uma nova cultura
de cuidado com a água. Um novo modelo é preciso
“A primeira coisa que precisa acontecer para resolver a crise hídrica é
um gesto do governo de reconhecer a situação em que estamos, assumir a
responsabilidade sobre medidas que não foram tomadas”, diz o membro da Executiva
Nacional da Rede Sustentabilidade e da Aliança pela Água.

A
crise hídrica no estado de São Paulo ocorre em decorrência de dois fatores:
“trata-se de um modelo que lida com os recursos naturais de forma insustentável
e, a partir dele, se constitui uma gestão que é baseada nessa visão que não
busca alternativa”, diz Rafael Poço, membro da Aliança pela Água, organização
que, em parceria com outras instituições, elaborou o relatório de violação de
direitos humanos na gestão hídrica do estado de São Paulo. De acordo com Poço,
o relatório reuniu uma série de informações sobre a crise hídrica e foi
entregue à Relatoria da ONU, a fim de dar repercussão internacional à questão.
“O mecanismo da ONU permite que o relator, após receber essas denúncias, envie
o documento intitulado ‘carta de alegações’ para o governo, requerendo
informações sobre o que vem acontecendo e questionando quais medidas estão
sendo adotadas com relação a essas violações. Esperamos que com isso consigamos
mais uma força para, primeiro, dar visibilidade à crise hídrica e, segundo,
para que possamos superar essa questão e, por fim, responsabilizar quem precisa
ser responsabilizado pela situação”, explica à IHU On-Line, na entrevista a
seguir, concedida por telefone.
De
acordo com Poço, do ponto de vista do planejamento, observou-se que o governo
paulista “ignorou diversos materiais, inclusive documentos oficiais de técnicos
e da sociedade civil, que há mais de 10 anos estão alertando para a
possibilidade de essa crise acontecer. São documentos desde a outorga do
Sistema Cantareira, que já previam a diminuição da dependência do sistema,
documentos sobre a questão hidrológica e climática, que poderia ter essa
alteração”. Ele informa ainda que o “relatório mostra que os problemas gerados
pela gestão de abastecimento vêm ocorrendo desde 2003, mas é muito difícil
apontar o momento em que isso virou uma grande crise. Mas 2013 foi o ano em que
a combinação de uma gestão equivocada, de uma falta de planejamento que
considerasse inclusive os relatórios técnicos e as alterações climáticas,
culminou na crise que existe hoje”.
Rafael
Poço é membro da Executiva Nacional da Rede Sustentabilidade e da Aliança pela
Água, uma coalizão da sociedade civil para contribuir com a construção de
segurança hídrica em São Paulo.
IHU
On-Line - Quais são os dados do Relatório de Violação de direitos
humanos na gestão hídrica do estado de São Paulo, feito pela Aliança Pela Água,
que apontam indícios de violação de direitos humanos na gestão hídrica do
estado? Como vocês realizaram esse relatório?
Rafael
Poço - A produção do relatório é fruto de um compromisso assumido entre a
Aliança pela Água e o Coletivo de Luta pela Água com o relator da ONU [Organização
das Nações Unidas] sobre Água e Saneamento, Léo Heller. No mês de abril deste
ano fizemos uma reunião com ele e nos comprometemos a elaborar um relatório que
organizasse ou sistematizasse algumas das possíveis violações a direitos
humanos que estão acontecendo no estado de São Paulo neste período de
enfrentamento da crise hídrica. A crise não acabou e as violações seguem
acontecendo, portanto o relatório será permanentemente atualizado para
acompanhar o que vem acontecendo aqui.
O
relatório foi dividido de modo a apontar as violações relacionadas à falta de
planejamento que levou a crise a ter a proporção que teve; as violações
relacionadas a medidas de enfrentamento da crise, ou seja, medidas que foram
adotadas no sentido de tentar dar respostas à crise; e as violações dos
impactos das obras e outras ações adotadas pelo governo estadual para tentar
resolver a crise.
IHU
On-Line – Quais foram os principais direitos violados?
Rafael
Poço – A relatoria da ONU estabelece alguns princípios, e a água e o saneamento
são compreendidos como direitos, ou seja, as pessoas têm direitos à
disponibilidade e acessibilidade à água. Então, do ponto de vista de
planejamento, observamos que o governo do estado de São Paulo ignorou diversos
materiais, inclusive documentos oficiais de técnicos e da sociedade civil, que
há mais de 10 anos estão alertando para a possibilidade de essa crise
acontecer. São documentos desde a outorga do Sistema Cantareira, que já previam
a diminuição da dependência do sistema, documentos sobre a questão hidrológica
e climática, de que poderia haver essa alteração.
Com
relação às medidas adotadas durante a crise, observaram-se os cortes de água
não informados e negados, inclusive, pelo governo, que afetaram diretamente a
dignidade da pessoa humana, fazendo com que as pessoas não tivessem nenhuma
previsibilidade que permitisse que elas se organizassem e se preparassem para
enfrentar a crise, para garantir higiene pessoal e necessidades básicas.
Estamos pautando essa questão como uma violação do próprio acesso à água e ao
saneamento, uma vez que as pessoas ficaram sem acesso à água.
Além
disso, denunciamos as formas como novos contratos de venda de água foram
feitos, com o governo de um lado negando a criticidade da situação, negando a
própria crise e, de outro lado, fazendo contratações e fechando contratos
emergenciais com base no argumento da urgência; portanto, flexibilizando a
legislação para contratações, flexibilizando legislação de licitações, que
trouxeram prejuízos para a população em geral.
Na
última semana fomos informados de que havia uma ação do Ministério Público
contra a obra de transposição da Bile, no sistema Alto Tietê, porque durante o
teste da obra aconteceu o que avisávamos que aconteceria: houve um assoreamento
do rio.
“A
crise não acabou e as violações seguem acontecendo”
IHU
On-Line - Então o relatório aponta a negligência do governo em relação
à crise?
Rafael
Poço - O relatório mostra que os problemas gerados pela gestão de abastecimento
vêm ocorrendo desde 2003, mas é muito difícil apontar o momento em que isso
virou uma grande crise. Mas 2013 foi o ano em que a combinação de uma gestão
equivocada, de uma falta de planejamento que considerasse inclusive os
relatórios técnicos e as alterações climáticas, culminou na crise que existe
hoje. A partir de 2013 a crise começou a ter uma proporção muito maior e com
efeitos mais agudos na vida da população. Nesse momento, inclusive, começaram
os cortes sistemáticos de uma forma mais generalizada, digamos assim. Primeiro
foram feitos cortes nas regiões mais vulneráveis e mais pobres, na periferia em
geral e, depois, foram feitos cortes e redução de pressão da água em toda a
cidade de São Paulo.
Seria
equivocado apontarmos o momento do início da crise, mas ela de fato se inicia
quando já não são adotadas as medidas que a previnem, mas podemos dizer que a
partir de 2013 ela entrou nessa gravidade inédita na história e aí o governo se
viu nessa situação de negação da crise. Foi isso o que nos colocou à beira de
um colapso, do qual ainda não saímos. Entendemos que a negação da crise, ou
seja, negar a gravidade de um problema, leva em primeiro lugar a uma inação,
uma imobilização no enfrentamento e na busca por alternativas, e é isso que o
governo segue fazendo. Isso torna tanto a população quanto os órgãos
governamentais muito amarrados para conseguir buscar soluções maduras e
coletivas para enfrentar a crise.
IHU
On-Line - Quais são motivos que levaram o governo a negar e depois
tratar essa crise sem dar a devida gravidade?
Rafael
Poço - Há uma combinação de dois fatores. Um deles é uma gestão equivocada, que
é o principal fator, ou seja, há uma visão em relação aos recursos hídricos que
é ultrapassada e equivocada, que lida apenas com a gestão da oferta. Ou seja,
pensa-se em aumentar a oferta, sempre buscando água em locais mais distantes,
com um custo maior, com maiores danos ambientais, com maior prejuízo a outras
regiões. Acredito que esse é o aspecto mais chocante, ou seja, o governo segue
um modelo de gestão segundo o qual os recursos naturais são vistos como algo
quase sem fim. Trata-se de um modelo de gestão que não consegue se preparar
para imprevistos porque tem uma visão ingênua em relação aos recursos, como se
eles fossem algo infinito. Essa visão leva a uma gestão que não se prepara para
o que está cada vez mais recorrente no mundo inteiro, que são as mudanças
climáticas, as alterações de ciclo hidrológico e o aumento de consumo de água
natural devido ao aumento populacional.
Então,
tentando resumir, esses dois fatores ocorrem um em decorrência do outro.
Trata-se de um modelo que lida com os recursos naturais de forma insustentável
e, a partir dele, se constitui uma gestão que é baseada nessa visão que não
busca alternativas.
IHU
On-Line - Qual foi a recepção do relatório?
Rafael
Poço - Do ponto de vista da sociedade foi visto como algo muito relevante e
fundamental para o processo que estamos vivendo, porque acionar o mecanismo
internacional, ou seja, a relatoria da ONU, é uma alternativa para
conseguirmos, ao menos, ter mais transparência para dar visibilidade para o que
vem acontecendo em São Paulo. Não recebemos reações do governo do estado em
relação ao documento que foi endereçado à relatoria da ONU. Esse documento tem
o caráter de organizar as informações que já estão disponíveis, que já estão
presentes em outros documentos, e direcioná-las para a relatoria da ONU com a
finalidade de buscar mecanismos da ONU para dar abrangência internacional e
nacional para a crise hídrica que ocorre no estado de São Paulo. O mecanismo da
ONU permite que o relator, após receber essas denúncias, envie o documento
intitulado “carta de alegações” para o governo, requerendo informações sobre o
que vem acontecendo e questionando quais medidas estão sendo adotadas com
relação a essas violações. Esperamos que com isso consigamos mais uma força
para, primeiro, dar visibilidade à crise hídrica e, segundo, para que possamos
superar essa questão e, por fim, responsabilizar quem precisa ser
responsabilizado pela situação.
IHU
On-Line - Qual é a expectativa de a ONU confirmar as violações de
direitos humanos na gestão dos recursos hídricos do estado de São Paulo? Como
se dará esse processo?
Rafael
Poço - O próximo passo agora, segundo o relator Léo Heller – que participou do
evento que fizemos de lançamento do relatório –, é elaborar uma carta de
adequações que tem a finalidade de colher o máximo possível de informações.
Depois há outros mecanismos, como de tentar constranger o país ou o estado a
tomar providências e até ser responsabilizado.
“O governo segue um modelo de gestão segundo o
qual os recursos naturais são vistos como algo quase sem fim”
IHU
On-Line - Há uma solução para a crise hídrica hoje? Quais são as
medidas que devem ser adotadas para resolver essa crise e evitar futuras crises
de abastecimento?
Rafael
Poço - O primeiro aspecto é que qualquer crise precisa ser tratada com
transparência, de maneira responsável e madura. Antes do aspecto técnico, de
como se resolve isso tecnicamente, se se trata de trazer mais água de outros
mananciais ou fazer novas obras para dar conta do abastecimento, a questão
central é trabalhar com transparência, com maturidade e responsabilidade, ou
seja, primeiro vamos encarar o problema. Portanto, a primeira coisa que precisa
acontecer é um gesto do governo de reconhecer a situação em que estamos,
assumir a responsabilidade sobre medidas que não foram tomadas. Isso passa,
primeiro, por dar mais informações para a sociedade; segundo, pela redução do
consumo; terceiro, fazer exigências à Sabesp, que é a principal empresa do
estado responsável pelo abastecimento de centenas de cidades, e à Agência Reguladora
de Saneamento e Energia do Estado de São Paulo – Arsesp, que é agência
reguladora, para que elas assumam uma postura que cumpra as suas finalidades.
Depois
disso, é preciso visualizar as condições para a adoção de um novo modelo e, a
partir daí, poderemos discutir qual é o melhor modelo de abastecimento a
adotar, como lidaremos com o número crescente da população e, portanto, do
consumo, que relação queremos ter com os mananciais, ou seja, todas essas
questões precisam estar envolvidas. Não é uma solução simples, de engenharia ou
tecnológica apenas, é uma combinação de fatores: precisamos recuperar as áreas
de manancial, respeitar as políticas que já existem e não são cumpridas,
recuperar e preservar os mananciais, reduzir o consumo, estimular a redução de
perdas de água na transmissão – em São Paulo a perda é de aproximadamente 30%.
A
Aliança pela Água tem proposto que precisamos de uma nova cultura de cuidado
com a água, com os recursos hídricos, que irá passar por diversas questões: a
maneira como se cuida e se preserva, a maneira como se obtém a água.
(ecodebate)