A expansão das atividades
agrícolas — quase sempre associada à devastação das florestas que têm maior
importância na regulação climática — tem consequências que se fazem sentir cada
vez mais
A agricultura convencional mata
o solo.
“Mais importante do que ser
multidisciplinar é ser não-disciplinar, isto é, integrar e dissolver as
“disciplinas” em um saber amplo e articulado, sem fronteiras artificiais e
domínios de egos”, afirma o cientista do CCST/Inpe.
O conhecimento científico não
pode cegar a complexa relação entre os inúmeros ecossistemas presentes no
planeta. “Tal abordagem gera soluções autistas que não se comunicam, tumores
exuberantes cuja expansão danifica tudo que está em volta. Assim, a
tecnociência olha o mundo com um microscópio grudado em seus olhos, vê pixel,
mas ignora a paisagem”, afirma Antonio Donato Nobre, cientista do Centro de
Ciência do Sistema Terrestre do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais –
CCST/Inpe.
“A maior parte da agricultura
tecnificada adotada pelo agronegócio é pobre em relação à complexidade natural.
Ela elimina de saída a capacidade dos organismos manejados de interferir beneficamente
no ambiente, introduzindo desequilíbrios e produzindo danos em muitos níveis”,
analisa, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.
Para Nobre, a saída não é
abandonar a ciência e a tecnologia produtiva de alimentos, mas sim associá-las
e integrá-las a sistemas complexos de vidas em ecossistemas do Planeta. É
entender, por exemplo, que a criação de áreas de plantio e produção
agropecuária impactarão na chamada “equação do clima”. “É preciso remover os
microscópios dos olhos, olhar o conjunto, perceber as conexões e, assim,
aplicar o conhecimento de forma sábia e benéfica”, aponta.
Antonio Donato Nobre é
cientista do Centro de Ciência do Sistema Terrestre do Instituto Nacional de
Pesquisas Espaciais – CCST/INPE, autor do relatório O Futuro Climático da
Amazônia, lançado no final de 2014.
Tem atuado na divulgação e
popularização da ciência, em temas como a Bomba biótica de umidade e sua
importância para a valorização das grandes florestas, e os Rios Aéreos de
vapor, que transferem umidade da Amazônia para as regiões produtivas do Brasil.
Foi relator nos estudos sobre o
Código Florestal promovidos pela Sociedade Brasileira para o Progresso da
Ciência – SBPC e Academia Brasileira de Ciências. Possui graduação em Agronomia
pela Universidade de São Paulo, mestrado em Biologia Tropical (Ecologia) pelo
Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia e é PhD em Earth System Sciences
(Biogeochemistry) pela University of New Hampshire.
Atualmente é pesquisador
titular do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia e pesquisador Visitante
no Centro de Ciência do Sistema Terrestre, do Instituto Nacional de Pesquisas
Espaciais.
IHU On-Line – Quais os impactos
da produção agrícola nas mudanças climáticas? Quais os riscos que o modelo do
agronegócio (baseado nas grandes propriedades e produção em larga escala de uma
só cultura por vez) representa?
Antonio Donato Nobre – A
ocupação desordenada das paisagens produz pesados impactos no funcionamento do
sistema de suporte à vida na Terra. A expansão das atividades agrícolas — quase
sempre associada à devastação das florestas que têm maior importância na
regulação climática — tem consequências que se fazem sentir cada vez mais, e
serão devastadoras se não mudarmos a prática da agricultura.
A natureza, ao longo de bilhões
de anos, evoluiu um sofisticadíssimo sistema vivo de condicionamento do
conforto ambiental. Biodiversidade é o outro nome para competência tecnológica
na regulação climática. A maior parte da agricultura tecnificada adotada pelo
agronegócio é pobre em relação à complexidade natural. Ela elimina de saída a
capacidade dos organismos manejados de interferir beneficamente no ambiente,
introduzindo desequilíbrios e produzindo danos em muitos níveis.
IHU On-Line – Como aliar agricultura
e pecuária à preservação de florestas e outros ecossistemas? Como o novo Código
Florestal brasileiro se insere nesse
contexto?
Antonio Donato Nobre – Extensa
literatura científica mostra muitos caminhos para unir com vantagens
agricultura, criação de animais e a preservação das florestas e de outros
importantes ecossistemas. Esse conhecimento disponível assevera não haver
conflito legítimo entre proteção dos ecossistemas e produção agrícola. Muito ao
contrário, a melhor ciência demonstra a dependência umbilical da agricultura
aos serviços ambientais providos pelos ecossistemas nativos.
Em 2012, contrariando a vontade
da sociedade, o congresso revogou o código florestal de 1965. A introdução de
uma nova lei florestal lasciva e juridicamente confusa já está produzindo
efeitos danosos, como aumentos intoleráveis no desmatamento e a eliminação da
exigência, ou o estímulo à procrastinação, no que se refere à recuperação de
áreas degradadas. Mas a proteção e recuperação de florestas tem direto impacto
sobre o regime de chuvas.
Incrível, portanto, que a
agricultura, atividade que primeiro sofrerá com o clima inóspito que já bate às
portas do Brasil, tenha sido justamente aquela que destruiu e continua
destruindo os ecossistemas produtores de clima amigo. Enquanto estiver em vigor
essa irresponsável e inconstitucional nova lei florestal, a degradação
ambiental somente vai piorar.
IHU On-Line – De que forma o
conhecimento mais detalhado sobre as formas de vida, e a relação entre elas, em
florestas, como a amazônica, pode inspirar formas mais eficientes de produção
de alimentos e, ao mesmo tempo, minimizar impactos ambientais?
Antonio Donato Nobre – A
biomimética é uma nova área da tecnologia que copia e adapta soluções
engenhosas encontradas pelos organismos para resolver desafios existenciais.
Janine Benyus, a pioneira popularizadora desse saber, antes ignorado, costuma
dizer que os designs encontrados na natureza são resultados de 3,8 bilhões de
anos de evolução tecnológica. Durante esse tempo, somente subsistiram soluções
efetivas e eficazes, que de saída determinaram a superioridade da tecnologia
natural.
Ora, a agricultura precisa
redescobrir a potência sustentável e produtiva que é o manejo inteligente de
agroecossistemas inspirados nos ecossistemas naturais, ao invés de se divorciar
deste vasto campo de conhecimento e soluções, como fez com seus agrossistemas
empobrecidos, envenenados e que exploram organismos geneticamente aberrantes.
IHU On-Line – Qual o papel do
solo na “composição da equação do clima” no planeta? Em que medida o
desequilíbrio do solo pode influenciar nas mudanças climáticas?
Antonio Donato Nobre –
Microrganismos e plantas têm incrível capacidade para adaptar-se ao substrato,
seja solo, sedimento ou mesmo rocha. Essa adaptação gera simultaneamente uma
formação e condicionamento do substrato, o que o torna fértil para a vida
vicejar ali. O metabolismo dos ecossistemas, incluindo sua relação com o
substrato, tem íntima relação com os ciclos globais de elementos químicos. A
composição e funcionamento da atmosfera depende, para sua estabilidade
dinâmica, portanto, para o conforto e favorecimento da própria vida, do
funcionamento ótimo dos ecossistemas naturais.
Na equação do clima, os
ecossistemas são os órgãos indispensáveis que geram a homeostase ou equilíbrio planetário. A agricultura
convencional extermina aquela vida que tem capacidade regulatória, mata o solo,
fator chave para sua própria sustentação, e introduz de formas reducionistas e
irresponsáveis nutrientes hipersolúveis, substâncias tóxicas desconhecidas da
natureza e organismos que podem ser chamados de Frankensteins genéticos.
Todos estes insumos tornam as
monoculturas do agronegócio sem qualquer função reguladora para o clima, e
muito pior, devido à pesada emissão de gases-estufa e perturbações as mais
variadas nos ciclos globais de nutrientes, a agricultura tecnificada é
extremamente prejudicial para a estabilidade climática.
IHU On-Line – Desde a
perspectiva do antropoceno , como avalia a relação do ser humano com as demais
formas de vida do planeta hoje? Qual o papel da tecnologia e da ciência nessa
relação?
Antonio Donato Nobre – Esta
nova era foi batizada de antropoceno porque os seres humanos tornaram-se
capazes de alterações massivas na delgada película esférica que nos permitiu a
existência e nos dá abrigo. O maior drama da ocupação humana do ambiente
superficial da Terra é que tal capacidade está destruindo o sistema de suporte
à vida, sistema esse dependente 100% de todas demais espécies as quais o ser
humano tem massacrado em sua expansão explosiva.
Infelizmente, na expansão do
antropoceno, o conhecimento científico tem sido apropriado de forma gananciosa
por mentes limitadas e arrogantes, e empregado no desenvolvimento sinistro de
tecnologias e engenharias que por absoluta ignorância tornaram-se incapazes de
valorizar o capital natural da Terra. Este comportamento autodestrutivo tem
direta relação com a visão de ganho em curto prazo e a ilusão de poder auferida
na aplicação autista de agulhas tecnológicas.
IHU On-Line – Em que medida a
aproximação entre ciência e saberes indígenas pode contribuir para um novo
caminho em termos de preservação do planeta e produção de alimentos?
Antonio Donato Nobre – Cada
pesquisador sincero, inteligente e com mente aberta deve reconhecer a máxima
milenar da sabedoria socrática: “somente sei que nada sei”. O conhecimento
verdadeiro e sem limites internos impõe uma postura sóbria e humilde diante da
enormidade da complexidade do mundo e da natureza. Hoje, a ciência mais
avançada dá inteiro e detalhado suporte ao saber ancestral de sociedades
tribais, que perduraram por milênios. Descer do salto alto da arrogância que
fermentou graças ao individualismo permitirá reconhecer essa sabedoria básica
de sustentabilidade, preservada no saber indígena.
Para a ciência, a aprender com
o saber nativo está a veneração pela sabedoria da Mãe Terra; a intuição
despretensiosa que capta o essencial da complexidade em princípios simples e
elegantes; e sua capacidade holística e lúdica de articular a miríade de
componentes do ambiente em uma constelação coerente e funcional de elos
significativos.
IHU On-Line – De que forma a
tecnociência e a tecnocracia impactam na forma de observar o planeta? O que
isso significa para a humanidade?
Antonio Donato Nobre – A
ciência é esta fascinante aventura humana na busca do conhecimento, evoluída
aceleradamente a partir do renascimento na Europa. Muitas são suas virtudes e
incríveis suas aplicações. No entanto, tais brilhos parecem infelizmente vir
acompanhados quase sempre de alucinantes danos colaterais, nem sempre
reconhecidos como tal. Na ciência, que gera o conhecimento básico; na
tecnologia, que aplica criativamente esse conhecimento; e na engenharia, que
transforma conhecimento em realidade, grassa uma anomalia reducionista que
permite a hipertrofia de soluções pontuais, desconectadas entre si e do
conjunto.
Tal abordagem gera soluções
autistas que não se comunicam, tumores exuberantes cuja expansão danifica tudo
que está em volta. Assim, a tecnociência olha o mundo com um microscópio
grudado em seus olhos, vê pixel, mas ignora a paisagem. Abre caminhos para que
ânimos restritos se apropriem de conhecimentos parciais e destruam o mundo. É
preciso remover os microscópios dos olhos, olhar o conjunto, perceber as
conexões e, assim, aplicar o conhecimento de forma sábia e benéfica.
IHU On-Line – De que forma
conceitos como a Ecologia Integral, presentes na Encíclica Laudato Si’, do papa
Francisco, contribuem para o desenvolvimento de uma visão sistêmica do ser
humano sobre o planeta? Qual a importância de uma perspectiva multidisciplinar
acerca da temática ambiental?
Antonio Donato Nobre – Ecologia
Integral deve significar o que o nome diz. Aliás, se não for integral não pode
ser denominada ecologia.
Isso porque na natureza não
existe isolamento, cada partícula, cada componente, cada organismo e cada
sistema interage com os demais, sob o sábio comando das leis fundamentais. Por
isso a ação humana pode gerar um acorde harmonioso na grande sinfonia universal,
ou — se desrespeitar as leis — tornar-se fonte de perturbação e destruição.
Mais importante do que ser
multidisciplinar é ser não-disciplinar, isto é, integrar e dissolver as
“disciplinas” em um saber amplo e articulado, sem fronteiras artificiais e
domínios de egos. A ciência verdadeira é aquela oriunda do livre pensar, do
profundo sentir e do intuir espontâneo. A busca da verdade está ao alcance de
todas as pessoas, não é nem deveria ser território exclusivo dos iniciados na
ciência. Todos somos dotados da capacidade de inquirir e temos como promessa de
realização o dom da consciência. Cientistas são facilitadores, e como tal
deveriam servir aos semelhantes com boa vontade, iluminando o caminho do
conhecimento, guiando na direção do saber.
IHU On-Line – Como avalia a
agroecologia no Brasil hoje? O que a ciência e a tecnologia oferecem em termos
de avanços para esse campo?
Antonio Donato Nobre –
Agroecologia, agrofloresta sintrópica, sistemas agroflorestais, agricultura
biodinâmica, trofobiose, agricultura orgânica, agricultura sustentável etc.
compõem um rico repertório de abordagens que convergem na aspiração de emular
em agroecossistemas a riqueza e funcionamento dos ecossistemas naturais. Uma
parte dos desenvolvimentos científicos e tecnológicos autistas de até então
pode ser aproveitada para essa nova era de agricultura produtiva, iluminada,
respeitadora, harmônica e saudável.
É preciso, porém, que o
isolamento acabe, que os conhecimentos sejam transparentes, integrados,
articulados, simplificados e recolocados em perspectiva. Se as agulhas
tecnológicas foram danosas, como os transgênicos, por exemplo, ainda assim
serão úteis para sabermos o que “não” fazer. Na compreensão em
detalhe das bases moleculares da vida, abrindo portais para consciência sobre a
complexidade astronômica existente e atuante em todos os organismos, a
humanidade terá finalmente a prova irrefutável para o acerto das abordagens
holísticas e ecológicas.
IHU On-Line – Deseja
acrescentar algo?
Antonio Donato Nobre – É
preciso iluminar e revelar a imensa teia de mentiras criada em torno da
revolução verde com seus exuberantes tumores tecnológicos. As falsidades suportadas
por corporações, governos, mídia e educação bitoladora desde a mais tenra
idade, implantaram um sistema mundial de dominação que, literalmente, enfia
goela abaixo da humanidade um menu infernal de alimentos portadores de doenças.
Esse triunfante modelo de
negócio não se contenta em somente alimentar mal, o faz via quantidades
crescentes de produtos animais, os quais requerem imensas áreas e grandes
quantidades de água e outros insumos para serem produzidos.
Com isso a pegada humana no
planeta torna-se destrutiva e insuportável, e a consequência já se faz sentir
no clima como falência múltipla de órgãos. Apesar disso, creio que ainda temos
uma pequena chance de evitar o pior se, como humanidade, dermos apoio
irrestrito para a busca da verdade.
Precisamos de uma operação Lava
Jato no campo, e a ciência tem todas as ferramentas para apoiar esse esforço de
sobrevivência. (ecodebate)