quinta-feira, 29 de setembro de 2022

Agropecuária impulsiona mais de 90% do desmatamento mundial

O estudo deixa claro que um punhado de commodities é responsável pela maior parte do desmatamento ligado à produção em terras agrícolas.
Parar o desmatamento exigirá uma mudança radical na forma como o problema é abordado. Para serem eficazes, as medidas precisam contemplar tanto os papéis diretos quanto indiretos da agropecuária. Um novo estudo publicado hoje na proeminente revista Science aponta que entre 90% e 99% de todo o desmatamento nos trópicos é causado direta ou indiretamente pela agropecuária. No entanto, apenas algo entre metade e dois terços disso de fato resulta em expansão da produção agrícola nas terras desmatadas.

O estudo é uma colaboração entre muitos dos principais especialistas em desmatamento do mundo, e fornece uma nova síntese das relações entre desmatamento e agropecuária.

Após uma análise dos melhores dados disponíveis, o novo estudo mostra que a quantidade de desmatamento tropical causado pela agropecuária é superior a 80%, o número mais citado na última década.

Isso ocorre em um momento crucial após a Declaração de Glasgow sobre Florestas na COP26 e antes da Conferência de Biodiversidade da ONU (COP15) no final deste ano. Os resultados podem ajudar a garantir que os esforços urgentes para combater o desmatamento sejam guiados e avaliados por uma base de evidências adequada ao propósito.

“Nossa análise deixa claro que entre 90 e 99 por cento de todo o desmatamento nos trópicos é causado direta ou indiretamente pela agropecuária, mas o que nos surpreendeu foi que uma parcela comparativamente menor do desmatamento – entre 45 e 65 por cento – resulta na expansão da produção agrícola real nas terras desmatadas. Essa descoberta é de profunda importância para criar medidas eficazes para reduzir o desmatamento e promover o desenvolvimento rural sustentável”, diz Florence Pendrill, principal autora do estudo na Chalmers University of Technology, na Suécia.

O fato de a agropecuária ser o principal motor de desmatamento tropical não é novidade. Entretanto, as estimativas anteriores de quanta floresta foi convertida em terras agrícolas nos trópicos variavam muito – de 4,3 a 9,6 milhões de hectares por ano entre 2011 e 2015. As novas descobertas neste estudo reduzem esse intervalo para 6,4 a 8,8 milhões de hectares por ano, e ajudam a explicar a incerteza nos números.

“Uma grande peça do quebra-cabeça é quanto desmatamento é ‘para nada‘”, observou o Prof. Patrick Meyfroidt da Universidade Católica de Louvain, na Bélgica. “Embora a agropecuária seja o motor final, as florestas e outros ecossistemas são frequentemente desmatados para especulação de terras que vieram a ser usadas, projetos que foram abandonados ou mal concebidos, terras que se mostraram impróprias para o cultivo, bem como devido a incêndios que se espalharam para florestas vizinhas a áreas desmatadas”.

Compreender a importância desses fatores é fundamental para os formuladores de políticas – seja em mercados consumidores, como a legislação de devida diligência, recentemente proposta pela União Europeia para “produtos livres de desmatamento”, sejam iniciativas do setor privado para commodities específicas, ou ainda para políticas de desenvolvimento rural em países produtores.

O estudo deixa claro que um punhado de commodities é responsável pela maior parte do desmatamento ligado à produção em terras agrícolas. Mais da metade estão ligadas apenas a pastagens, soja e óleo de palma (dendê). Nesse sentido, o estudo também chama a atenção para as falhas de iniciativas setoriais específicas, geralmente limitadas para lidar com os impactos indiretos.

“Iniciativas setoriais para combater o desmatamento podem ter um valor inestimável, e novas medidas para proibir a importação de commodities ligadas ao desmatamento nos mercados consumidores – como as que estão em negociação na UE, Reino Unido e EUA – representam um grande passo para além dos esforços quase todos voluntários até agora para combater o desmatamento‘, disse o Dr. Toby Gardner do Instituto do Meio Ambiente de Estocolmo e Diretor da iniciativa Trase, de transparência para cadeia de fornecimento. “No entanto, como mostra o nosso estudo, fortalecer a governança florestal e do uso da terra nos países produtores deve ser o objetivo final de qualquer resposta política”. As cadeias de fornecimento e as medidas de sustentabilidade tomadas pelos consumidores precisam ser concebidas de maneira que também lidem com as formas indiretas através das quais a agropecuária está ligada ao desmatamento. Eles precisam levar a melhorias no desenvolvimento rural sustentável, caso contrário as taxas de desmatamento permanecerão teimosamente altas em muitos lugares”, acrescentou o Dr. Gardner.

Os resultados do estudo apontam para a necessidade de as intervenções nas cadeias de fornecimento irem além do foco em commodities específicas e em mera gestão de risco. Elas precisam ir além e ajudar também a impulsionar parcerias entre produtores e mercados consumidores e governos. Isso precisa incluir fortes incentivos para tornar a agropecuária sustentável mais economicamente atraente ao mesmo tempo em que desincentiva a conversão de vegetação nativa e apoia os pequenos produtores mais vulneráveis.

Os autores dizem que isso deve incluir um foco mais forte nos mercados domésticos, muitas vezes os maiores impulsionadores da demanda por commodities, como o caso da carne bovina no Brasil, além de um fortalecimento de parcerias entre empresas, governos e sociedade civil nas jurisdições produtoras.

Por fim, o estudo destaca três lacunas importantes onde mais evidências são necessárias para orientar os esforços de redução do desmatamento; “A primeira é que, sem uma base de dados global e temporalmente consistente sobre desmatamento, não podemos ter certeza sobre as tendências gerais de conversão.

A segunda é que, com exceção do dendê e da soja, carecemos de dados sobre a cobertura e expansão de commodities específicas para saber quais são mais importantes. A nossa compreensão global sobre pastagens é das que mais precisam de melhoria. A terceira é que sabemos comparativamente muito pouco sobre florestas tropicais secas e sobre as florestas na África”, disse o professor Martin Persson, da Chalmers University of Technology.

“O que é mais preocupante, dada a urgência da crise”, acrescentou o Prof. Persson, “é que cada uma dessas lacunas de evidência impõe barreiras significativas à nossa capacidade de reduzir o desmatamento da maneira mais eficaz – sabendo onde os problemas estão concentrados, ou compreender o sucesso dos esforços até agora”.

Apesar dessas lacunas de conhecimento e incertezas remanescentes, o estudo enfatiza que uma mudança radical nos esforços é urgentemente necessária para combater e conter efetivamente o desmatamento, assim como para evitar a conversão de outros ecossistemas e promover o desenvolvimento rural sustentável.

A Declaração de Glasgow sobre Florestas reconheceu a importância de abordar conjuntamente as crises do clima e da perda de biodiversidade, e estabeleceu um novo nível de ambição para combater o desmatamento e promover a agropecuária sustentável. Os autores deste novo estudo enfatizam que é fundamental que os países e seus formuladores de políticas comecem a priorizar esses objetivos.

A agricultura contribui para o desmatamento de várias maneiras que muitas vezes interagem. A maior parte do desmatamento tropical ocorre em paisagens onde a agricultura é o principal fator de perda florestal. Parte desse desmatamento causado pela agricultura resulta na produção agrícola (esquerda) atendendo à demanda doméstica e de exportação de várias commodities agrícolas. No entanto, o desmatamento pela agricultura também ocorre sem expansão de terras agrícolas manejadas por meio de vários mecanismos (direita), o que pode levar ao abandono ou semiabandono da área desmatada. Registros agrícolas incompletos também explicam parte desse desmatamento. (ecodebate)

Avanço do desmatamento aumenta o calor e a seca no Cerrado

Artigo demonstra que mudança no uso da terra no Cerrado ameaça clima regional e disponibilidade de água para agricultura e ecossistemas.

A conversão de áreas nativas do Cerrado para pastagens e agricultura já tornou o clima na região quase 1°C mais quente e 10% mais seco.

Os dados foram divulgados em artigo publicado na revista científica Global Change Biology. O estudo abordou impactos históricos e futuros da expansão agrícola sobre o clima regional do Cerrado, um hotspot global de biodiversidade.

O trabalho foi liderado por pesquisadores da UnB (Universidade de Brasília), em colaboração com outras universidades e instituições de pesquisa tais como o IPAM (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia), a UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), a UFRA (Universidade Federal Rural da Amazônia) e o Woodwell Climate Research Center.

Os resultados mostraram que não só a perda de florestas impacta o clima, mas também a perda de vegetação savânica — a mais abundante no bioma e uma das mais ameaçadas — e campestre. Essas duas últimas formações vegetais são menos representadas em estudos climáticos, apesar de exercerem funções importantes para a regulação do clima.

O estudo destaca que a conservação do Cerrado e sua biodiversidade tem importância vital para a estabilidade climática e hidrológica local e regional. Os efeitos do desmatamento podem se estender para outras regiões que dependem do Cerrado para a provisão de água, como o Pantanal e a bacia do rio São Francisco, que abastece boa parte do Nordeste.

Para a modelagem, o artigo utilizou os dados históricos de cobertura e uso da terra do MapBiomas, onde o IPAM é a instituição responsável pelo mapeamento pelos tipos de vegetação nativa do Cerrado, entre eles formações florestais, savânicas, campestres e áreas úmidas. Em agosto foi lançada a Coleção 7, revelando que de 1985 a 2021, no bioma, a vegetação savânica perdeu 25% da cobertura original, 15% das formações florestais e 20% das campestres.

“Ainda temos 53% da vegetação nativa remanescente no Cerrado, mas o desmatamento no bioma ainda segue e tem crescido nos últimos três anos, precisamos inserir o bioma nas políticas climáticas e de combate ao desmatamento para garantir nossa resiliência climática”, afirma a pesquisadora no IPAM e coordenadora científica do MapBiomas, Julia Shimbo.

As políticas ambientais adotadas hoje irão definir o futuro climático da região

Considerando possíveis reflexos das políticas ambientais, os pesquisadores modelaram três cenários futuros para o clima do Cerrado. O primeiro, chamado “Colapso do Cerrado”, modelou o clima com a continuação do desmatamento legal e ilegal na região até 2050, sem políticas de controle.

Um segundo cenário intermediário avaliou apenas o desmatamento permitido por lei — em um total de 28 milhões de hectares. Um terceiro cenário, mais positivo, modelou o que aconteceria com o clima da região sob uma política de desmatamento zero combinada com a recuperação de 5 milhões de hectares de áreas em propriedades privadas degradadas ilegalmente, que por lei teriam que ser preservadas.

Os resultados mostraram calor severo e seca até meados do século, se o desmatamento continuar. O aumento de temperatura foi de 0,7°C no pior cenário e de 0,3°C no cenário intermediário. A estimativa é referente apenas ao desmatamento na região e não inclui o aquecimento global esperado de mais de 1°C durante o período.

Já a política de desmatamento zero e restauração de áreas desmatadas ilegalmente é um passo no sentido oposto, para evitar o agravamento da crise climática. Porém, não é suficiente para contrabalançar as grandes transformações em curso.

Para Ariane Rodrigues, pesquisadora da Universidade de Brasília e primeira autora do estudo, é urgente colocar em prática metas mais ambiciosas de conservação, restauração e uso sustentável dos ecossistemas do Cerrado. “Os nossos resultados mostram que seguir o curso atual pode trazer consequências desastrosas para o clima, o regime de chuvas, a produção de alimentos e a biodiversidade, se estendendo além dos limites do bioma. Daí a importância de incluir o Cerrado em acordos climáticos internacionais e negociações para eliminar o desmatamento das cadeias de produção agrícola”, afirmou. (ecodebate)

Exposição ao calor extremo urbano triplicou nas últimas décadas

“Este estudo mostra que serão necessários investimentos consideráveis e cuidadosos para garantir que as cidades continuem habitáveis em face do aquecimento do clima”

Um novo estudo de mais de 13.000 cidades em todo o mundo descobriu que o número de pessoas-dia em que os habitantes são expostos a combinações extremas de calor e umidade triplicou desde a década de 1980.

Os autores dizem que a tendência, que agora afeta quase um quarto da população mundial, é o resultado combinado do aumento das temperaturas e do crescimento acelerado da população urbana.

Nas últimas décadas, centenas de milhões se mudaram das áreas rurais para as cidades, que agora abrigam mais da metade da população mundial. Lá, as temperaturas são geralmente mais altas do que no campo, por causa da vegetação esparsa e concreto abundante, asfalto e outras superfícies impermeáveis que tendem a reter e concentrar o calor – o chamado efeito de ilha de calor urbana .

“Isso tem efeitos amplos”, disse o principal autor do estudo, Cascade Tuholske, pesquisador de pós-doutorado no Earth Institute da Columbia University. “Aumenta a morbidade e mortalidade. Impacta a capacidade de trabalho das pessoas e resulta em menor produção econômica. Agrava as condições de saúde pré-existentes”.

Os pesquisadores combinaram imagens de satélite infravermelho e leituras de milhares de instrumentos terrestres para determinar as leituras máximas diárias de calor e umidade em 13.115 cidades, de 1983 a 2016. Eles definiram o calor extremo como 30 graus centígrados na chamada “temperatura global de bulbo úmido” escala, uma medida que leva em consideração o efeito multiplicador da alta umidade na fisiologia humana. Uma leitura de bulbo úmido de 30 é o equivalente aproximado de 106 graus Fahrenheit no chamado índice de calor “sensação real” – o ponto em que mesmo as pessoas mais saudáveis acham difícil funcionar ao ar livre por muito tempo, e o insalubre pode se tornar muito doente ou até mesmo morrer.

Para chegar a uma medida de pessoas-dia gastas em tais condições, os pesquisadores compararam os dados meteorológicos com estatísticas sobre as populações das cidades no mesmo período. Os dados populacionais foram fornecidos em parte pelo Centro de Rede Internacional de Informações sobre Ciências da Terra de Columbia, onde Tuholske está baseado.

A análise revelou que o número de pessoas-dia em que os moradores da cidade foram expostos passou de 40 bilhões por ano em 1983 para 119 bilhões em 2016 – um aumento de três vezes. Em 2016, 1,7 bilhão de pessoas estavam sujeitas a essas condições em vários dias.

O crescimento absoluto da população urbana foi responsável por dois terços do pico de exposição, enquanto o aquecimento real contribuiu com um terço. Dito isso, as proporções variaram de região para região e de cidade para cidade.

As cidades mais afetadas tendem a se agrupar nas latitudes baixas, mas outras áreas também estão sendo afetadas. A cidade mais atingida em termos de dias-pessoa foi Dhaka, a capital de Bangladesh em rápido crescimento; viu um aumento de 575 milhões de pessoas-dia de calor extremo durante o período de estudo. Só sua população em expansão – 4 milhões em 1983, para 22 milhões hoje – causou 80% do aumento da exposição. Isso não significa que Dhaka não viu um aquecimento substancial – apenas que o crescimento populacional foi ainda mais rápido. Outras grandes cidades que mostram tendências semelhantes de densidade populacional incluem Xangai e Guangzhou, na China; Yangon, Mianmar; Bangkok; Dubai; Hanói; Cartum; e várias cidades no Paquistão, Índia e Península Arábica.

Por outro lado, algumas outras grandes cidades viram quase metade ou mais de sua exposição causada apenas pelo aquecimento do clima versus crescimento populacional. Entre eles estão Bagdá, Cairo, Kuwait, Lagos, Calcutá, Mumbai e outras grandes cidades da Índia e Bangladesh. As populações das cidades europeias têm estado relativamente estáticas, de modo que o aumento da exposição nessas cidades foi impulsionado quase exclusivamente pelo aumento do aquecimento. Os pesquisadores descobriram que 17% das cidades estudadas adicionaram um mês inteiro de dias de calor extremo ao longo do período de estudo de 34 anos.

“Muitas dessas cidades mostram o padrão de como a civilização humana evoluiu nos últimos 15.000 anos”, disse Tuholske, apontando que muitas estão localizadas em climas quentes, onde a umidade é fornecida por grandes sistemas fluviais. Isso os tornou atraentes para a agricultura e, eventualmente, para a urbanização. “O Nilo, o Tigre-Eufrates, o Ganges. Há um padrão para os lugares onde queríamos estar”, disse ele. “Agora, essas áreas podem se tornar inabitáveis. As pessoas realmente vão querer morar lá?”

Nos Estados Unidos, cerca de 40 cidades consideráveis tiveram uma exposição crescente, principalmente concentrada no Texas e na Costa do Golfo. Em muitos, as causas dos aumentos têm sido combinações variadas de aumento da população e aumento do calor. Isso inclui Houston, Dallas-Fort Worth, San Antonio e Austin, Texas, junto com Pensacola e outras cidades da Flórida. Em alguns, o crescimento populacional é o principal fator. Isso inclui Las Vegas; Savannah, Ga .; e Charleston, SC Em outros, é quase exclusivamente calor em alta: Baton Rouge, La .; Gulfport, Miss .; e Lake Charles e Houma, Louisiana. Um importante destaque: a cidade da baía de Providence, RI, onde o aumento da exposição foi de 93% devido ao clima mais quente e úmido.

Como o período coberto pelo estudo durou apenas 2016, os dados não incluíram a série de ondas de calor recordes que atingiram o noroeste dos EUA e o sul do Canadá neste verão, matando centenas de pessoas.

O estudo não é o primeiro a documentar os perigos do calor urbano excessivo; entre outros, no ano passado uma equipe separada do Earth Institute mostrou que combinações de calor e umidade literalmente além dos limites da sobrevivência humana ao ar livre surgiram brevemente em todo o mundo. O estudo mais recente liderado por Tuholske acrescenta à imagem, quantificando em um nível granular quantas pessoas estão sendo afetadas em cada local, e o grau em que a exposição está sendo impulsionada pela população versus clima. Os autores dizem que essas informações devem ajudar os planejadores urbanos a criar estratégias mais bem direcionadas para ajudar os cidadãos a se adaptarem.

Kristina Dahl, pesquisadora do clima da Union of Concerned Scientists, disse que o estudo “pode servir como um ponto de partida para identificar maneiras de resolver os problemas locais de calor”, como plantar árvores e modificar telhados com cores mais claras ou vegetação para que não o façam prender muito calor. “Este estudo mostra que serão necessários investimentos consideráveis e cuidadosos para garantir que as cidades continuem habitáveis em face do aquecimento do clima”, acrescentou. (ecodebate)

Risco de inflexão climática aumenta com o aquecimento de 1,5°C

Vários pontos de inflexão climáticos podem ser desencadeados se a temperatura global subir além de 1,5°C acima dos níveis pré-industriais, de acordo com uma nova análise importante publicada na revista Science.

Mesmo com os níveis atuais de aquecimento global, o mundo já corre o risco de passar por cinco perigosos pontos de inflexão climáticos, e os riscos aumentam a cada décimo de grau de aquecimento adicional.

Uma equipe de pesquisa internacional sintetizou evidências de pontos de inflexão, seus limites de temperatura, escalas de tempo e impactos a partir de uma revisão abrangente de mais de 200 artigos publicados desde 2008, quando os pontos de inflexão climáticos foram rigorosamente definidos. Eles aumentaram a lista de pontos de inflexão em potencial de nove para dezesseis.

A pesquisa, publicada antes de uma grande conferência “Exceeding 1.5°C global warming could trigger multiple climate tipping points” na Universidade de Exeter (12 a 14 de setembro), conclui que as emissões humanas já empurraram a Terra para a zona de perigo dos pontos de inflexão. Cinco dos dezesseis podem ser desencadeados nas temperaturas de hoje: os mantos de gelo da Groenlândia e da Antártida Ocidental, degelo abrupto generalizado do permafrost, colapso da convecção no Mar de Labrador e morte maciça de recifes de corais tropicais. Quatro deles se movem de possíveis eventos para provavelmente em 1,5°C de aquecimento global, com mais cinco se tornando possíveis em torno desse nível de aquecimento.

“O autor principal, David Armstrong McKay, do Centro de Resiliência de Estocolmo, Universidade de Exeter, e da Comissão da Terra diz: A circulação do Atlântico revirando também”.

“O mundo já corre o risco de alguns pontos de inflexão. À medida que as temperaturas globais aumentam ainda mais, mais pontos de inflexão se tornam possíveis.” ele adiciona.

“A chance de cruzar pontos de inflexão pode ser reduzida cortando rapidamente as emissões de gases de efeito estufa, começando imediatamente”.

Falha em retardar o aquecimento global terá efeitos irreversíveis, dizem cientistas.

Entre as possíveis consequências estão o colapso das camadas de gelo da Groenlândia e da Antártida Ocidental e a morte dos recifes de coral.

O Sexto Relatório de Avaliação do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), afirmou que os riscos de desencadear pontos de inflexão climáticos se tornam altos em cerca de 2°C acima das temperaturas pré-industriais e muito altos em 2,5-4°C.

Esta nova análise indica que a Terra já pode ter deixado um estado climático ‘seguro’ quando as temperaturas excederam aproximadamente 1°C de aquecimento. Uma conclusão da pesquisa é, portanto, que mesmo a meta do Acordo de Paris das Nações Unidas de limitar o aquecimento a bem abaixo de 2°C e preferencialmente 1,5°C não é suficiente para evitar totalmente as mudanças climáticas perigosas. De acordo com a avaliação, a probabilidade do ponto de inflexão aumenta acentuadamente na ‘faixa de Paris’ de 1,5-2°C de aquecimento, com riscos ainda maiores além de 2°C.

O estudo fornece forte apoio científico ao Acordo de Paris e aos esforços associados para limitar o aquecimento global a 1,5°C, porque mostra que o risco de pontos de inflexão aumenta além desse nível. Para ter 50% de chance de atingir 1,5°C e, assim, limitar os riscos do ponto de inflexão, as emissões globais de gases de efeito estufa devem ser reduzidas pela metade até 2030, atingindo zero líquido em 2050.

O coautor Johan Rockström, co-presidente da Comissão da Terra e diretor do Instituto Potsdam para Pesquisa de Impacto Climático diz: “O mundo está caminhando para 2-3°C de aquecimento global. Isso coloca a Terra no caminho para cruzar vários pontos de inflexão perigosos que serão desastrosos para as pessoas em todo o mundo. Para manter as condições de vida na Terra, proteger as pessoas dos extremos crescentes e permitir sociedades estáveis, devemos fazer todo o possível para evitar cruzar pontos de inflexão. Cada décimo de grau conta”.

O coautor Tim Lenton, diretor do Global Systems Institute da Universidade de Exeter e membro da Comissão da Terra, diz: “Desde que avaliei os pontos de inflexão climáticos pela primeira vez em 2008, a lista cresceu e nossa avaliação do risco que eles representam aumentou dramaticamente.”

“Nosso novo trabalho fornece evidências convincentes de que o mundo deve acelerar radicalmente a descarbonização da economia para limitar o risco de cruzar os pontos de inflexão climáticos”.

“Para conseguir isso, agora precisamos desencadear pontos de inflexão sociais positivos que acelerem a transformação para um futuro de energia limpa.”

“Também podemos ter que nos adaptar para lidar com pontos de inflexão climáticos que não conseguimos evitar e apoiar aqueles que podem sofrer perdas e danos não seguráveis”, acrescenta Lenton.

Vasculhando dados paleoclimáticos, observações atuais e os resultados de modelos climáticos, a equipe internacional concluiu que 16 grandes sistemas biofísicos envolvidos na regulação do clima da Terra (os chamados ‘elementos de inflexão’) têm o potencial de cruzar pontos de inflexão onde a mudança se torna autossustentável. Isso significa que, mesmo que a temperatura pare de subir, uma vez que a camada de gelo, oceano ou floresta tropical tenha passado de um ponto de inflexão, ela continuará mudando para um novo estado. A duração da transição varia de décadas a milhares de anos, dependendo do sistema. Por exemplo, os ecossistemas e os padrões de circulação atmosférica podem mudar rapidamente, enquanto o colapso do manto de gelo é mais lento, mas leva ao inevitável aumento do nível do mar de vários metros.

Os pesquisadores categorizaram os elementos de tombamento em nove sistemas que afetam todo o sistema da Terra, como a Antártida e a floresta amazônica, e outros sete sistemas que, se tombados, teriam profundas consequências regionais. Estes últimos incluem a monção da África Ocidental e a morte da maioria dos recifes de coral ao redor do equador. Vários novos elementos de tombamento, como a convecção do Mar de Labrador e as bacias subglaciais da Antártida Oriental, foram adicionados em comparação com a avaliação de 2008, enquanto o gelo marinho do verão do Ártico e a Oscilação Sul do El Niño (ENSO) foram removidos por falta de evidência de dinâmica de tombamento.

A coautora Ricarda Winkelmann, pesquisadora do Instituto Potsdam para Pesquisa de Impacto Climático e membro da Comissão da Terra, diz: “É importante ressaltar que muitos elementos de inclinação no sistema da Terra estão interligados, tornando os pontos de inflexão em cascata uma séria preocupação adicional. Na verdade, as interações podem diminuir os limites críticos de temperatura além dos quais os elementos de tombamento individuais começam a se desestabilizar em longo prazo”.

Armstrong McKay diz: “Demos o primeiro passo para atualizar o mundo sobre os riscos do ponto de inflexão. Há uma necessidade urgente de uma análise internacional mais profunda, especialmente nas interações dos elementos de inclinação, para a qual a Comissão da Terra está iniciando um Projeto de Intercomparação do Modelo de Pontos de Virada (“TIPMIP”)”.

A localização dos elementos climáticos na criosfera (azul), biosfera (verde) e oceano/atmosfera (laranja) e os níveis de aquecimento global em que seus pontos de virada provavelmente serão acionados. Os pinos são coloridos de acordo com nossa estimativa de limiar de aquecimento global central abaixo de 2°C, ou seja, dentro da faixa do Acordo de Paris (laranja claro, círculos); entre 2°C e 4°C, ou seja, acessível com as políticas atuais (laranja, diamantes); e 4°C e acima (vermelho, triângulos). (ecodebate)

terça-feira, 27 de setembro de 2022

A população do Paquistão de 1950 a 2100

Brasil é ultrapassado pelo Paquistão e cai para 6° no ranking de países mais populosos do mundo.

O Paquistão precisa elevar o padrão de vida da população, mas não pode deixar de lado a necessidade de restauração ecológica.

O Paquistão ultrapassou o Brasil em 2019 e se tornou o quinto país mais populoso do Planeta. Com uma área de 881 mil km2, possui uma densidade de 306 habitantes por km2 em 2022. A título de comparação, o Brasil tem uma densidade de 26 hab/km2 e o Canadá de apenas 4,2 hab/km2.

A população do Paquistão era de 38 milhões de habitantes em 1950, chegou a 200 milhões em 2012 e vai continuar crescendo sem parar durante o restante do século até atingir 487 milhões de habitantes em 2100. Na hipótese mais alta da projeção a população paquistanesa pode chegar a 900 milhões e na hipótese baixa pode ficar em 300 milhões de habitantes em 2100. Nota-se que em qualquer hipótese a população do Paquistão será maior do que o nível atual (conforme mostra o gráfico abaixo, no painel da esquerda). A população paquistanesa em idade ativa, de 15-59 anos, deu um salto para 150 milhões de pessoas atualmente e deve chegar a 300 milhões de pessoas em 2100, o dobro do nível atual (gráfico do painel da direita).

Os gráficos abaixo mostram a evolução das taxas de fecundidade e a expectativa de vida. O Paquistão tinha uma média acima de 6 filhos por mulher durante toda a segunda metade do século passado. A taxa de fecundidade começou a cair no século XXI e só deve atingir o nível de reposição no final do século e, portanto, o Paquistão não terá nenhum decrescimento antes de 2100 (Gráfico abaixo do painel da esquerda).

A expectativa de vida ao nascer, que estava em torno de 35 anos em 1950, cresceu nos anos seguintes, apresentou uma queda abrupta no início dos anos 1970, voltou a aumentar chegando em torno de 65 anos atualmente. Segundo a projeção média da Divisão de População da ONU a expectativa de vida ao nascer, para ambos os sexos, deve ficar pouco acima de 75 anos em 2100 (como mostra o gráfico acima, painel da direita).

O aprofundamento da transição demográfica se reflete na transformação da estrutura etária. Mas como a queda da fecundidade no Paquistão é recente, o montante da população de 0-14 anos continua crescendo e só vai apresentar uma redução na segunda metade do século XXI, como mostra o gráfico abaixo (painel da esquerda). Já o número de idosos (gráfico da direita) tem crescido nos últimos 70 anos e deve atingir 120 milhões em 2100.

A mudança da estrutura etária fica evidente nas pirâmides etárias do Paquistão, conforme mostrado nos gráficos abaixo. A pirâmide etária de 1950 tinha o modelo clássico de estrutura rejuvenescida e não se modificou substancialmente nas décadas seguintes. O estreitamento da base da pirâmide tem sido lento o que adia o aproveitamento do 1º bônus demográfico que teria o poder de ajudar o país a reduzir a pobreza e a incrementar o desenvolvimento econômico.

O Paquistão ainda está nas fases iniciais do processo da transição da fecundidade. Isto significa que a razão de dependência continua caindo, como mostra o gráfico abaixo. Existiam quase 100 pessoas consideradas dependentes até a década de 1990 para cada 100 pessoas em idade produtiva. Mas a razão vai cair para algo abaixo de 60 nem meados do século e vai subir ligeiramente na segunda metade do atual século. Em 2100, a projeção média indica uma razão de dependência abaixo de 75, ou seja, uma proporção bem menor de pessoas dependentes em relação ao início da década de 1970. Teoricamente, o Paquistão ainda tem muito tempo para aproveitar o 1º bônus demográfico. Mas para tanto o país precisa elevar as taxas de poupança e investimento para gerar empregos suficientes para incorporar a população em idade ativa no processo de geração de riqueza.

O Paquistão tem apresentado um crescimento econômico pouco acima da média mundial. O país tinha cerca de 0,6% do PIB global em 1980 e chegou a quase 1%, conforme mostra o gráfico abaixo (lado esquerdo). Como a população paquistanesa é cerca de 2,7% da população global, isto significa que a renda per capita é menor que que a média mundial. A renda per capita do Paquistão (em preços correntes em poder de paridade de compra) era de apenas US$ 893 em 1980. Nas décadas seguintes a renda cresceu lentamente e chegou a US$ 6,5 mil em 2022, conforme mostra o gráfico abaixo (lado direito). O Paquistão é um país de baixa renda e tem dificuldades para superar a “armadilha da renda média”.

O Paquistão possui um déficit ambiental estrutural. Segundo o Instituto Global Footprint Network o Paquistão tinha, em 1961, uma Pegada Ecológica per capita de 0,55 hectares globais (gha) e uma Biocapacidade per capita de 0,47 gha. Portanto, o sinal já era vermelho há 60 anos. Adicionalmente, com o elevado crescimento demográfico a Pegada Ecológica per capita passou para 0,77 gha e a Biocapacidade per capita caiu para 0,33 gha em 2018. Assim, o déficit ecológico per capita passou para 0,44 gha, o que representa um déficit relativo de 133%, conforme mostra a figura abaixo.

O Paquistão sofre, constantemente, com ondas letais de calor e secas. Mas em agosto de 2022, chuvas e inundações históricas atingiram quase todo o Paquistão e afetaram mais de 30 milhões de pessoas, gerando um desastre humanitário de grande proporção.

O Paquistão tem, portanto, dois grandes desafios: um social e outro ecológico. As cidades do Paquistão estão entre aquelas com maiores recordes de temperatura e o país é constantemente assolado por ondas letais de calor.

O Paquistão precisa elevar o padrão de vida da população, mas não pode deixar de lado a necessidade de restauração ecológica. Um passo decisivo será aprofundar a transição demográfica para mitigar a poluição e criar condições para a adaptação à crise climática e ambiental.

Paquistão ultrapassa o Brasil como País mais populoso do mundo.

Confira os dados sobre população mundial e as projeções. (ecodebate)

Regiões da Amazônia já atingiram o ‘ponto de não retorno’

“Já atingimos ponto de não retorno” em algumas regiões da Amazônia, diz pesquisadora.

Resumo:

Marlene Quintanilla coordenou o estudo “Amazônia contra o relógio: Um diagnóstico regional sobre onde e como proteger 80% até 2025”, lançado em 05/09/22.

“O Brasil é o país com a porção mais extensa da Amazônia e o que menos está fazendo para conservá-la.” Esta é a avaliação da engenheira florestal boliviana Marlene Quintanilla, coordenadora do estudo “Amazônia contra o relógio: Um diagnóstico regional sobre onde e como proteger 80% até 2025”, lançado em 05/09/22, dia da Amazônia. A pesquisa, desenvolvida a partir de 2021 com dados de 1985 a 2020, identificou que, dos nove países amazônicos, o Brasil é o que apresenta o pior nível de transformação (ou seja, desmatamento) e degradação do bioma – 34%. O índice da Bolívia, segunda colocada no ranking, é dez pontos menor, de 24%.

Os pesquisadores da Red Amazónica de Información Socioambiental Georreferenciada (RAISG), da qual Quintanilla faz parte, identificaram que 26% da Amazônia já estão transformados ou altamente degradados, o que a coloca no patamar do ponto de não retorno definido por trabalhos científicos anteriores – este ponto chegaria, de acordo com outros estudos, quando transformação e degradação somadas ultrapassassem o limiar de 20% a 25%.

Além disso, o novo relatório – coordenado por Quintanilla e elaborado pela RAISG em parceria com a Coordenação das Organizações Indígenas da Bacia Amazônica (COICA) e Stand.Earth – revela que, caso a atual tendência de desmatamento se mantenha, “a Amazônia como conhecemos hoje não chegará a 2025”. Os efeitos das altas taxas de desmatamento e degradação já estão causando a perda de serviços ecossistêmicos cruciais prestados pela floresta, como a regulação do regime de chuvas. “A função ambiental da Amazônia está mudando de maneira negativa”, afirma Quintanilla.

Mas o estudo sugere uma forma de enfrentar esse cenário: a demarcação de terras indígenas e destinação permanente de recursos orçamentários às comunidades que nelas vivem. De acordo com o levantamento, 86% do desmatamento na Amazônia aconteceu fora de territórios indígenas e áreas protegidas, embora eles abarquem pouco menos da metade do bioma (48%). E apesar de as unidades de conservação terem sido criadas exatamente com a finalidade de preservação ambiental, as terras indígenas são igualmente ou ainda mais eficazes nesse sentido, mostram os dados. “Os meios de vida e a cultura tradicional dos povos indígenas da Amazônia são mais compatíveis com sua conservação do que qualquer outra estratégia que se está implementando”, destaca a pesquisadora.

Estudo considerou para análise uma região de 847 milhões de hectares que abrange os limites do bioma amazônico na Colômbia e Venezuela; os limites da bacia amazônica no Equador, Peru e Bolívia; as bacias do Amazonas e do Araguaia-Tocantins e a extensão completa da Amazônia Legal no Brasil; e todo o território da Guiana, Guiana Francesa e Suriname. Ele foi produzido no âmbito da campanha “Amazônia para a Vida: Proteger 80% até 2025“, lançada pela COICA e organizações parceiras em setembro/2021.

O relatório evidencia que o tipping point – o ponto de não retorno da Amazônia – já é uma realidade em algumas regiões. O que isso significa, na prática?

É uma meta ambiciosa proteger a Amazônia em 80% até 2025. Nossa primeira pergunta foi: como está a Amazônia, será que esses 80% existem e estão em bom estado? Uma das grandes descobertas do estudo é que cerca de 20% da Amazônia apresenta níveis importantes de transformação e outros 6% estão em alta degradação. Não há mais 80% da Amazônia totalmente conservados. Então nos perguntamos: já atingimos o ponto de não retorno? Porque sempre o encaramos como algo futuro, que não sabíamos exatamente quando ocorreria, mas do qual nos aproximávamos cada vez mais. Nossa análise indica que, em nível regional, praticamente já atingimos esse ponto de não retorno. Há uma metamorfose ocorrendo na Amazônia que, pelas mudanças e atividades antrópicas, está acelerando a transformação das funções ambientais do bioma. Um dado que não está no estudo diz que parte da Amazônia já gera mais emissões do que captura carbono. Algumas das coisas que sempre destacamos sobre a Amazônia – que ela funcionava como purificador do ar e tinha função de regulação climática – estão mudando. As pesquisas científicas mostram que as secas extremas e os incêndios estão gerando muita mortalidade de árvores e isso, por sua vez, emite muito dióxido de carbono. A função ambiental da Amazônia está mudando de maneira negativa.

O estudo destaca a importância dos povos indígenas no combate à crise climática e de biodiversidade e na proteção da Amazônia. Por que seu papel é tão central? E por que as terras indígenas apresentam índices de preservação até melhores do que unidades de conservação?

O relatório mostra que os territórios indígenas têm uma função muito mais chave do que pensávamos em termos de conservação da Amazônia. Neles, os níveis de transformação e de degradação são mínimos e menores do que nas áreas protegidas, instituídas justamente com o propósito de conservação dos ecossistemas. A intenção não é criar uma concorrência entre esses regimes, mas queremos passar a mensagem de que os meios de vida e a cultura tradicional dos povos indígenas da Amazônia são mais compatíveis com sua conservação do que qualquer outra estratégia que se está implementando. Por isso devemos valorizar mais os territórios indígenas e encará-los como nossos melhores aliados para proteger a Amazônia, pois ela não interessa apenas a nós que nela vivemos, mas se trata da regulação climática global. Cerca de 48% da Amazônia estão protegidos, seja por terras indígenas ou unidades de conservação. Nos territórios indígenas, o nível de transformação é de 4%; já nas áreas protegidas, é de 6%. Os 52% do bioma que estão fora de qualquer área protegida já sofreram 33% de transformação e cerca de 10% de degradação – ou seja, 43% de áreas com alta degradação. A criação de áreas protegidas é uma etapa importante, mas em alguns países há um abandono na destinação de recursos a elas. Se isso acontece, elas ficam abertas à transformação e degradação. Já as terras indígenas demarcadas, havendo ou não a destinação de recursos, representam uma garantia maior na conservação da Amazônia, segundo os dados que geramos.

Os dados do relatório indicam também que o Brasil é o país amazônico com os maiores índices de transformação e degradação da floresta. É possível afirmar que o Brasil é quem pior cuida da Amazônia?

As mudanças mais bruscas estão na Bolívia e no Brasil. A Amazônia brasileira já tem um nível de transformação de 25% e de 9% de degradação. Principalmente na parte sudeste [onde está o norte do Mato Grosso e o sul do Pará], as pessoas já sentem as mudanças – mais secas e incêndios, menos água e muitas transformações nos ecossistemas. E os povos indígenas sentem muito mais tudo isso porque vivem na floresta. O segundo país com níveis importantes para o ponto de não retorno é a Bolívia: 20% da Amazônia boliviana já se transformaram e 4% estão altamente degradados. Em terceiro lugar, vem o Equador, com cerca de 15% de áreas transformadas e 1% degradada, e depois a Colômbia, com 12% de áreas transformadas e 2% de degradação. Os países que seguem essa dinâmica são Peru e Venezuela. O Brasil é o país com a porção mais extensa da Amazônia e o que menos está fazendo para conservá-la, lamentavelmente.

Qual a dimensão da destruição da Amazônia nos últimos anos, segundo os dados levantados para o relatório?

Identificamos que cerca de 2 milhões de hectares são desmatados anualmente na Amazônia. Já os incêndios atingem todos os anos aproximadamente 17 milhões de hectares. Para termos uma dimensão melhor, a superfície desmatada por ano é similar à área do Haiti – essa é a velocidade do desmatamento na Amazônia. E em relação aos incêndios é muito maior. O pior ano em termos de incêndios para a Amazônia foi 2020, quando a superfície queimada foi maior do que extensão do Equador. É incrível o nível de desmatamento que está ocorrendo, e o de incêndios é ainda pior. E grande parte disso, sobretudo em relação aos incêndios, está ocorrendo no Brasil e na Bolívia. Da perspectiva internacional, as políticas de conservação da Amazônia devem estar mais dirigidas a esses dois países.

Qual é o peso da política ambiental do governo federal e dos estados brasileiros para a preservação da Amazônia?

Se os governos de países como Brasil e Bolívia não atuarem de maneira séria para conservá-la, todo o esforço global será incipiente. A profundidade do problema na Amazônia está relacionada a uma questão legal, o que tem muito a ver com a demarcação de terras indígenas. Nossa análise aponta que há 255 milhões de hectares [fora de terras indígenas e unidades de conservação] que poderiam ser a solução para evitar o ponto de não retorno, e a estimativa da COICA é de que existem 100 milhões de hectares de terras indígenas sendo demandadas [por diferentes etnias]. Se essa demanda fosse atendida, teríamos em parte a solução. E essa solução está nas mãos dos governos do Brasil, em grande parte, e também dos governos da Bolívia, Equador e dos outros países [amazônicos]. Se não se atende à demanda de demarcação de terras indígenas, esses 100 milhões de hectares com certeza serão convertidos em outros tipos de propriedades. E, pelo que temos visto, o que não está em terras indígenas ou áreas protegidas acaba sofrendo degradação e transformação. Além disso, é importante destinar recursos para as comunidades indígenas, porque elas estão cumprindo uma função de preservação da qual nós, que estamos na cidade, também nos beneficiamos.

Uma das 13 propostas do relatório é a “moratória imediata” do desmatamento na Amazônia. Como ela se daria?

A moratória deveria abranger a sua totalidade porque há uma emergência global. Porém, as realidades entre os países são distintas, e acredito que Brasil e Bolívia precisam de uma moratória imediata porque são os países com níveis mais avançados de desmatamento e degradação da Amazônia. Frear o desmatamento em ambos poderia reverter o que está acontecendo com a Amazônia. E obviamente esse modelo poderia ser replicado nos outros países. É importante mostrar que a floresta tem valor econômico e social muito mais alto do que uma plantação ou um pasto. Com a moratória, não se pretende atrasar o desenvolvimento dos países, pelo contrário, precisamos perceber o potencial econômico da floresta, há muitos recursos em madeira e para além dela que podem potencializar o desenvolvimento econômico. É preciso olhar para a floresta em pé como a melhor alternativa para a economia e a função social que desempenha essas áreas.

Outra proposta pede o “perdão condicionado” das dívidas dos países amazônicos por parte das instituições financeiras internacionais. Por que isso seria importante?

Essa proposta vem da COICA. Os territórios indígenas têm sido muito afetados nos últimos anos e não têm recebido apoio dos governos – pelo contrário, têm sofrido invasões. O perdão da dívida significa um incentivo ao apoio a esses territórios e que os governos possam destinar recursos às organizações indígenas que existem em cada país.

De acordo com o relatório, as áreas destinadas à agricultura na Amazônia triplicaram desde 1985 e o setor é responsável por 84% do desmatamento da floresta. No Brasil, o agronegócio tem muita força econômica e política e é majoritariamente contrário à agenda de preservação ambiental. Como resolver essa questão?

Sempre se olhou muito para a Amazônia como território para o agronegócio. Agora, a pecuária está muito forte, e seus impactos não se restringem ao desmatamento, estão também nas emissões de gases de efeito estufa oriundas da atividade – 2% das emissões globais vêm da pecuária da Amazônia, é uma contribuição importante. Não queremos olhar para os agricultores e pecuaristas como inimigos porque sabemos que geram empregos e movimento econômico para seus países, o problema é que o setor está sendo afetado pelas mudanças climáticas. O regime de chuvas está sendo alterado, já não há muita água e os cultivos precisam de irrigação. Um rebanho de gado, por exemplo, necessita de 40 litros de água por dia. Chegamos a um ponto em que a expansão do agronegócio não deveria avançar mais, porque a carga agrícola e pecuária na Amazônia já é muito intensa e não será sustentável, sobretudo em relação à água. É importante que o setor – os investidores principalmente – valorizem o manejo florestal e que nós diversifiquemos a produção econômica na Amazônia. No fim das contas, queremos alertar os empresários do agronegócio de que seus investimentos estão em risco se a Amazônia não for preservada.

Estamos a um mês da eleição presidencial no Brasil e a preservação da Amazônia, por enquanto, não é um dos assuntos mais importantes nas agendas dos principais candidatos. O quanto isso preocupa vocês, pesquisadores, que estão fazendo alertas tão assustadores sobre a destruição da floresta?

Nós não perdemos a esperança, produzimos esses estudos justamente para que sejam lidos. Sei que isso pode ser muito otimista, mas dar visibilidade à informação para que os governos tenham à disposição esse tipo de análise vai gerar, em algum momento, algum nível de consciência pelo menos, senão de justiça. Existe a advertência por parte da comunidade científica, e agora, neste relatório, fazemos uma aliança com a experiência dos povos indígenas e seu papel na preservação ambiental.

*Este ensaio faz parte do especial Emergência Climática, que investiga as violações socioambientais decorrentes das atividades emissoras de carbono – da pecuária à geração de energia. A cobertura completa está no site do projeto. (ecodebate)

Mediterrâneo e Oriente Médio aquecem mais rápido que a média mundial

Mediterrâneo e Oriente Médio aquecem quase duas vezes mais rápido que a média global.
Eventos climáticos extremos sem precedentes e socialmente perturbadores, incluindo ondas de calor, secas, tempestades de poeira e chuvas torrenciais, em breve se tornarão uma realidade, a menos que uma ação climática imediata, ambiciosa e transfronteiriça sejam tomadas, alerta a mais recente avaliação científica do estado do clima na região.

Um novo relatório elaborado por um grupo internacional de cientistas e publicado na revista autoral “Reviews of Geophysics”, identifica o EMME* como um hot spot de mudança climática e conclui que a região está aquecendo quase duas vezes mais rápido que a média global, e mais rapidamente do que outras partes habitadas do mundo. Para o restante do século, projeções baseadas em um caminho de negócios como de costume indicam um aquecimento geral de até 5°C ou mais, sendo mais forte no verão e associado a ondas de calor sem precedentes que podem ser socialmente perturbadoras. Além disso, a região sofrerá escassez de chuvas que comprometem a segurança hídrica e alimentar. Espera-se que praticamente todos os setores socioeconômicos sejam criticamente afetados, com impactos potencialmente devastadores na saúde e nos meios de subsistência dos 400 milhões de pessoas da EMME,

O relatório, preparado sob os auspícios do Instituto Max Planck de Química e do Instituto Chipre, em preparação para a COP27, que ocorrerá no Egito em novembro de 2022, fornece uma avaliação atualizada e abrangente dos dados de medição e análises climáticas recentes, abrangendo uma ampla gama de escalas de tempo, fenômenos e possíveis caminhos futuros. Ele identifica a região como um ponto quente de mudança climática e também sinaliza que o EMME está rapidamente ultrapassando a União Europeia como fonte de gases de efeito estufa e se tornando um grande emissor em escala global.

Além do aumento médio das temperaturas, os pesquisadores chamam a atenção para o surgimento de eventos climáticos extremos com impactos sociais potencialmente disruptivos. Estes incluem o forte aumento da gravidade e duração das ondas de calor, secas e tempestades de poeira e chuvas torrenciais que devem desencadear inundações repentinas. A avaliação também inclui uma discussão sobre poluição atmosférica e mudanças no uso do solo na região, considerando urbanização, desertificação e incêndios florestais, e inclui recomendações para possíveis medidas de mitigação e adaptação às mudanças climáticas.

“Caminhos de negócios como de costume para o futuro”, o que significa projeções que não supõem nenhuma ação climática imediata e ambiciosa para evitar as trajetórias climáticas atuais, “implicam uma expansão para o norte das zonas climáticas áridas às custas das regiões mais temperadas”, explica o Dr. Zittis do Instituto de Chipre, primeiro autor do estudo. Como resultado, as zonas climáticas montanhosas com neve diminuirão durante este século. A combinação de chuvas reduzidas e forte aquecimento contribuirão para secas severas. Prevê-se que o nível do mar na EMME aumente a um ritmo semelhante às estimativas globais, embora muitos países não estejam preparados para o avanço dos mares. “Isto implicaria graves desafios para as infraestruturas costeiras e a agricultura, podendo levar à salinização dos aquíferos costeiros, incluindo o delta do Nilo densamente povoado e cultivado”, alerta Zittis.

As mudanças projetadas afetarão criticamente praticamente todos os setores socioeconômicos, particularmente em um cenário de negócios como de costume. Jos Lelieveld, Diretor do Instituto Max Planck de Química, Professor do Instituto do Chipre e coordenador da avaliação, observa: “As pessoas que vivem na EMME enfrentarão grandes desafios de saúde e riscos de subsistência, especialmente comunidades desprivilegiadas, idosos, crianças e grávidas”. Para evitar os eventos climáticos mais extremos na região, os cientistas destacam que uma ação climática imediata e efetiva é urgente. “O lema da COP 27 está bem escolhido: Juntos para uma implementação justa e ambiciosa agora”, afirma Jos Lelieveld. “Uma vez que muitos dos resultados regionais das mudanças climáticas são transfronteiriços, uma colaboração mais forte entre os países é indispensável para lidar com os impactos adversos esperados. A necessidade de cumprir os objetivos do Acordo de Paris tornou-se mais importante do que nunca”, conclui Lelieveld. O estudo observa que o cumprimento das principais metas do Acordo de Paris poderia estabilizar o aumento anual da temperatura na EMME para cerca de 2°C até o final do século, em vez dos devastadores 5°C projetados em um cenário de negócios como de costume.

Possíveis opções de adaptação e recomendações de políticas apontadas no relatório para contribuir para o cumprimento dessas metas enfatizam a necessidade de implementação rápida de ações de descarbonização com ênfase particular nos setores de energia e transporte, que dominam as emissões de gases de efeito estufa no EMME. O relatório também enfatiza a importância de mudanças transformacionais em direção à resiliência climática para se adaptar a condições ambientais cada vez mais desafiadoras. As áreas prioritárias incluem lidar com recursos hídricos limitados e preparar-se para extremos climáticos mais frequentes, como ondas de calor, que serão particularmente desafiadoras para a crescente população urbana.

O relatório foi publicado no American Geophysical Union Open Access Journal com o maior fator de impacto em ciências da Terra. Foi motivado pela Iniciativa do Governo de Chipre para a Coordenação de Ações de Mudança Climática na EMME, lançada em 2019, com o objetivo de desenvolver um Plano de Ação Climática Regional conjunto para atender às necessidades e desafios específicos que os países da EMME estão enfrentando e avançar na ação coordenada para o objetivos do Acordo de Paris. A nível político, uma Cimeira de Chefes de Estado EMME será realizada no outono de 2022, quando se espera o Plano de Ação Regional. 

* Os 17 países incluídos na análise do relatório são Bahrein, Chipre, Egito, Grécia, Irã, Iraque, Israel, Jordânia, Kuwait, Líbano, Omã, Palestina, Catar, Arábia Saudita, Síria, Turquia e Emirados Árabes Unidos.

Mediterrâneo Oriental e Oriente Médio versus anomalias de temperatura global (painel da esquerda) e regional (painel da direita) desde 1901 (período de referência de 1961-1990) como valores anuais (curvas finas) e splines de suavização cúbica (curvas grossas). Tendências lineares também são apresentadas para a Europa (EUR), Estados Unidos da América (EUA), África (AFR), Austrália (AUS) e América do Sul (SAM). Fonte de dados: Observações em grade da Unidade de Pesquisa Climática sobre a terra (Harris et al., 2020). (ecodebate)

Desmatamento e queimadas tornam a Amazônia prevalente na emissão de CO2

Um primeiro impacto, grosso modo, é que 20% da Amazônia desmatada são 20% a menos de contribuição da formação de nuvens de chuva com vapor de água, o que causa, como consequência direta, menos precipitação.

Desmatamento e queimadas tornam a Amazônia prevalente na emissão de CO2. Entrevista especial com Luciana Gatti

Apesar de a floresta ser um enorme manancial de absorção de CO2 e de calor da atmosfera, ações humanas ligadas ao desmatamento e pecuária estão devastando e fragilizando o bioma.

Durante décadas, possivelmente séculos, a Amazônia foi uma região em que os níveis de absorção de CO2 da atmosfera eram superiores aos de emissão. Apesar da floresta, em condições normais, equilibrar seus próprios níveis de emissão e absorção de CO2, com os processos industriais de modernização e a prevalência da queima de combustíveis fósseis o volume de CO2 passou a ser mais rico na atmosfera. Com isso, a Amazônia passou a absorver parte deste “excesso” de gases, retirando também calor da biosfera. Contudo, o que estudos recentes mostram é que agora o bioma também contribui para o aquecimento global.

“Observamos que no saldo entre absorções e emissões a Amazônia emite para a atmosfera 290 milhões de toneladas de carbono por ano. Isso é composto pela diferença da emissão de 410 milhões de toneladas para a atmosfera devido, justamente, às queimadas e da absorção pela floresta de 130 milhões de toneladas de carbono por ano”, aponta a professora e pesquisadora Luciana Gatti, em entrevista por telefone ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

Toda esta devastação traz ainda impactos no regime de chuvas, o que altera as condições climáticas de boa parte do país. “Um primeiro impacto, grosso modo, é que 20% da Amazônia desmatada são 20% a menos de contribuição da formação de nuvens de chuva com vapor de água, o que causa como consequência direta, menos precipitação”, pontua.

Apesar do desinteresse do governo federal em proteger a Amazônia, quando não age em contrário, no sentido de aprofundar suas fragilidades, é fundamental que a sociedade civil organizada se articule em defesa da preservação do bioma. “A Amazônia poderia ser uma grande proteção para as mudanças climáticas, pois ela absorve gás carbônico, forma muita chuva com a evapotranspiração e com isso reduz a temperatura, servindo de proteção contra as mudanças climáticas. Contudo, ao desmatar estamos transformando a Amazônia em um fator de contribuição para as mudanças climáticas”, complementa.

Luciana Gatti é graduada em Química e mestra em Química Analítica pela Universidade de São Paulo – USP. Realizou doutorado em Ciência pela Universidade Federal de São Carlos – UFSCar, no Departamento de Química. É especialista em medidas de alta precisão de Gases de Efeito Estufa e estudos em escala Regional utilizando aviões de pequeno porte. É pesquisadora titular do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais/Centro de Ciências do Sistema Terrestre e professora de pós-graduação do curso Tecnologia Nuclear do IPEN, na Universidade de São Paulo. Coordena o Laboratório de Gases de Efeito Estufa – LaGEE, parte integrante do LaPBio/CCST/Inpe.

IHU – Quais são as principais conclusões do estudo “Amazônia como fonte de carbono ligada ao desmatamento e mudanças climáticas”?

Luciana Gatti – As principais conclusões do nosso estudo são, basicamente, duas. A primeira é o balanço total de carbono da Amazônia. Observamos que no saldo entre absorções e emissões a Amazônia emite para a atmosfera 290 milhões de toneladas de carbono por ano. Isso é composto pela diferença da emissão de 410 milhões de toneladas para atmosfera devido, justamente, às queimadas e da absorção pela floresta de 130 milhões de toneladas de carbono por ano. Essa é uma primeira conclusão importante.

A segunda, e ainda mais importante, foi a possibilidade de entendermos o que está acontecendo com a Amazônia. Esse fenômeno ocorre em razão de a região leste [da Amazônia] já estar muito desmatada, e esse desmatamento está alterando as condições climáticas, principalmente a estação seca. Essa condição muito estressante e adversa faz com que essa região tenha uma emissão de carbono muito maior que a oeste.

Observamos que no saldo entre absorções e emissões a Amazônia emite para a atmosfera 290 milhões de toneladas de carbono por ano – Luciana Gatti

Observamos que a redução de chuvas é, praticamente, proporcional à área desmatada e que houve um aumento muito grande de temperatura, principalmente nos meses de agosto, setembro e outubro. Esses são os meses em que o pessoal, depois de desmatar, coloca fogo nas áreas, pois esperam mais ou menos três meses para a vegetação ficar bem seca. Em função disso, a floresta que não foi desmatada fica tremendamente seca, pois os volumes de chuva são reduzidos. Por exemplo, a região nordeste da Amazônia, que estudamos, está 37% desmatada e perdeu 34% de chuvas; a região sudeste está 28% desmatada e perdeu 24% de chuvas. O aumento de temperatura na região nordeste da Amazônia foi de 1,9ºC e na região sudeste foi de 2,5ºC. Essa variação ocorreu em um cenário de 40 anos. Isso tudo é favorecido por esses fatores que mencionei somados à queima de pastagens para gado, cuja produção está enorme na Amazônia, pois, considerando dados até 2019, 36% do gado brasileiro estava no bioma. Como a floresta está extremamente seca, o fogo acaba entrando nas partes em que não foi desmatada, representando, também, emissões.

As emissões não são somente na hora das queimadas, mas também depois, por ocasião da decomposição das regiões queimadas da floresta. Isso acontece seja com folhas, com galhos, seja com árvores inteiras que morreram ao longo dos anos. Uma segunda emissão adicional é o que está acontecendo com a floresta que não foi nem queimada, nem desmatada, mas que tem relação com a condição de estresse associada a pouca disponibilidade de água somada à temperatura alta. Nós temos de lembrar que a Amazônia é uma floresta tropical úmida, onde as árvores estão habituadas a uma condição de abundância de água e temperaturas amenas, o que não está acontecendo por três, quatro, às vezes, cinco meses ao longo do ano, dependendo da região. Isso tudo faz com que as árvores vão perdendo as folhas, cujo material se junta à decomposição no solo, e leva, até mesmo, à morte das árvores. Alguns estudos apontam que a mortalidade das árvores é muito maior.

IHU – Nessas regiões, pode-se afirmar que chegamos a um ponto de não retorno (tipping point)? Por quê?

Luciana Gatti – Quando começamos a fazer o nosso estudo, em 2010, a Amazônia já era uma fonte de emissão de carbono principalmente por culpa do desmatamento e das queimadas. Não dá para dizer que chegamos a um ponto de não retorno. Se pararmos hoje de queimar e desmatar e passarmos a reflorestar as áreas que estão com desmatamento acima de 30%, seria possível reverter o cenário que estamos observando hoje? Talvez sim. É muito difícil, apenas observando as emissões de carbono, responder isso com certeza. Seria necessário fazer um estudo com pessoas de muitas áreas diferentes para chegar a uma conclusão mais precisa.

Quando começamos a fazer o nosso estudo, em 2010, a Amazônia já era uma fonte de emissão de carbono principalmente por culpa do desmatamento e das queimadas – Luciana Gatti

IHU – No geral, considerando o bioma da floresta amazônica em sentido mais amplo, qual a relação entre absorção e emissão de gases do efeito estufa? Ela (hoje) emite mais gases ou absorve mais gases?

Luciana Gatti – Essa questão é bastante genérica. Nós não podemos falar disso de maneira tão ampla. Cada ciclo, cada espécie de gás tem particularidades. O estudo que fizemos foi sobre CO2. E é sobre CO2 que a planta faz fotossíntese durante o dia, absorvendo-o e eliminando oxigênio e à noite o oposto. Uma floresta madura mantém um equilíbrio entre o que ela absorve e o que ela emite. Considerando, porém, que o ar está mais enriquecido de CO2, porque usa-se muito petróleo, combustíveis fósseis e se derrubam muitas florestas, estamos enriquecendo a atmosfera de CO2 em mais de 100% e isso estimula as árvores a absorverem mais carbono do que na condição de equilíbrio.

O problema é que a Amazônia está com o clima muito adverso, muito estressante e isso está promovendo um desgaste maior. Está ocorrendo mais mortalidade do que crescimento de floresta no sudeste da Amazônia. No nordeste da Amazônia, que também está muito desmatado, essa condição está fazendo com que a floresta compense apenas 20% do total das emissões de desmatamento e queimadas.

Um primeiro impacto, grosso modo, é que 20% da Amazônia desmatada são 20% a menos de contribuição da formação de nuvens de chuva com vapor de água – Luciana Gatti

IHU – Qual a importância da floresta amazônica para o clima no Brasil? Como impacta no regime de chuvas e de estiagem de outras regiões?

Luciana Gatti – As árvores evapotranspiram. As raízes pegam a água no solo e jogam na atmosfera em forma de vapor. Um primeiro impacto, grosso modo, é que 20% da Amazônia desmatada são 20% a menos de contribuição na formação de nuvens de chuva com vapor de água, o que causa, como consequência direta, menos precipitação. A segunda consequência é que, quando a água vai do estado líquido para o estado de vapor, ela precisa “roubar” energia e esta energia é apropriada do ambiente em forma de calor, causando um resfriamento. Se menos árvores estão evapotranspirando (afinal as árvores não existem mais), há o aumento de temperatura. Esse é um processo que poderia estar minimizando o aumento das temperaturas devido às mudanças climáticas.

A Amazônia poderia ser uma grande proteção para as mudanças climáticas, pois ela absorve gás carbônico, forma muita chuva com a evapotranspiração e com isso reduz a temperatura, servindo de proteção contra as mudanças climáticas. Contudo, ao desmatar estamos transformando a Amazônia em um fator de contribuição para as mudanças climáticas, pois estamos:

1) jogando mais gás carbônico para a atmosfera;

2) reduzindo as chuvas, o que já é efeito das mudanças climáticas aqui no Brasil;

3) essas transformações estão trazendo o aumento de temperatura. Tudo isso forma um clima extremamente estressante para a Amazônia, que produz um aumento na mortalidade das árvores de forma ampliada e exponencial.

A Amazônia poderia ser uma grande proteção para as mudanças climáticas, pois ela absorve gás carbônico, forma muita chuva com a evapotranspiração e com isso reduz a temperatura – Luciana Gatti

O desmatamento da Amazônia é, em várias ordens de grandeza, prejudicial a toda a América do Sul, ao Brasil, ao agronegócio, que será o primeiro setor a sentir a redução da produtividade devido ao desmatamento. Isso traz consequências para a sociedade de maneira geral, uma vez que essas mudanças climáticas estão causando vários danos ao volume de chuvas e com isso impactos na produção de energia, eventos extremos com muitos prejuízos e mortes. Isso não será sentido somente no Brasil ou na América do Sul, mas no mundo todo, pois se trata de uma área gigantesca que faz a diferença no planeta. Estamos fazendo com que a Amazônia, que é um benefício gigantesco para o brasileiro, acabe se transformando numa contribuição para a aceleração das mudanças climáticas.

IHU – Que políticas públicas e que ações devem ser tomadas no sentido de preservar o bioma amazônico?

Luciana Gatti – Temos que adotar medidas urgentes para salvar a Amazônia. Em primeiro lugar devemos fazer um grande acordo nacional, uma moratória de dez anos sobre a Amazônia e a proibição de quaisquer tipos de queimadas entre julho e novembro, período de estiagem e maior seca, com incêndios incontroláveis. Esse problema pode ser observado não somente na região Norte do Brasil, mas no país inteiro. Não à toa toda hora vemos incêndios que foram provocados numa área pequena em que a vegetação está tão seca que o fogo acaba saindo de controle, produzindo ainda mais emissão de gases do efeito estufa e contribuindo para as mudanças climáticas.

Estamos “plantando seca”. Ah, e devo acrescentar, estamos plantando incêndio e um futuro muito tenebroso para o Brasil – Luciana Gatti

Isso é uma espécie de “bola de neve” que vai se retroalimentando e piorando cada vez mais. Precisamos de medidas urgentes para minimizar as alterações na vida em sociedade que a mudança climática está trazendo e administrar um futuro que, podemos prever, será uma catástrofe. Até agora nós estamos contribuindo com a catástrofe, fazendo o oposto do que deveríamos estar fazendo ao incentivar o desmatamento e uma série de destruições das leis de proteção ambiental, ou seja, estamos trabalhando contra nós mesmos. Estamos “plantando seca”. Ah, e devo acrescentar, estamos plantando incêndio e um futuro muito tenebroso para o Brasil. (ecodebate)

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