Dos ultraprocessados aos alimentos: resgatando a boa
nutrição?
“Há hoje uma pandemia, em que metade da população brasileira
adulta tem excesso de peso e quase 15% é obesa”, alerta a nutricionista.
“Devemos fazer do
alimento a base da nossa alimentação”. Esta será a principal recomendação do
novo Guia Alimentar para a População Brasileira, ainda em consulta pública, a
ser lançado no próximo mês de agosto, informa Signorá Konrad à IHU On-Line. Segundo a nutricionista,
apesar de a frase parecer “redundante”, ela propõe justamente uma distinção
entre o que são alimentos e o que são produtos ultraprocessados, tais como
biscoitos, barras de cerais, sorvete, enlatados e os demais produtos
industrializados, já que “durante muito tempo se tratou os produtos
ultraprocessados como alimentos”.
De acordo com a
pesquisadora, há mais de duas décadas a FAO e a ONU recomendam o consumo de
alimentos, dando destaque para os in natura. Nesse processo, salienta, “temos
de considerar o alimento e não somente valorizar os nutrientes, porque isso
leva ao entendimento do consumidor de que se ele consumir qualquer produto que
tenha uma quantidade ‘x’ de carboidratos, lipídios, minerais, fibras, ele
estará bem alimentado. E isso não é verdade, porque a natureza coloca nos
alimentos in natura e nos minimamente processados um equilíbrio de nutrientes
necessário para o organismo metabolizar”.
Na entrevista a
seguir, concedida por telefone, Signorá Konrad esclarece que o Guia Alimentar
para a Popular Brasileira está sendo reformulado radicalmente, pois “é calcado
nos nutrientes, e não nos alimentos. Então, este novo Guia Alimentar vem com
uma conotação qualitativa, e não quantitativa. Essa é a grande tônica dele, no
sentido de mostrar que saúde é mais do que a ausência de doenças — todos
sabemos disso —, mas que a alimentação é mais do que a ingestão de nutriente”.
E acrescenta: “Tiramos o enfoque de que temos de consumir proteínas,
carboidratos, lipídios, vitaminas, minerais e fibras, ou seja, o enfoque
químico que data de 1800. Hoje, nós temos um olhar do alimento como uma matéria
que é composta de substâncias químicas que estão nos nutrientes, mas que tem
muito mais do que carboidratos, proteínas, lipídios, protídios, carboidratos
não digeríveis, fibras alimentares, vitaminas, minerais, fitoquímicos, mas
outras substâncias que ainda são isoladas pela química analítica”.
Signorá Konrad esteve
no Instituto Humanitas Unisinos – IHU abordando o tema Dos Ultraprocessados aos
Alimentos: resgatando a boa nutrição? Ainda sobre o tema da alimentação, o
Instituto Humanitas Unisinos – IHU promoveu o XV Simpósio Internacional IHU
“Alimento e Nutrição no contexto dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio”,
de 05 a 08/05/14.
Signorá Konrad é
graduada em Nutrição pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos,
especialista em Metodologia do Ensino Superior e em Nutrição em Saúde Pública
pela Unisinos, mestre e doutora em Ciências Biológicas (Fisiologia) pela
Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Atualmente leciona na
Unisinos.
IHU On-Line – O que são alimentos e produtos
ultraprocessados? Em que consiste a distinção entre ambos?
Signorá Konrad - Essa
distinção está amparada pelo novo Guia Alimentar Brasileiro, que será lançado
pelo Ministério da Saúde em agosto de 2014, e que está em consulta pública até
07 de maio. Nele se aborda a diferenciação entre o que é um alimento e o que é
um produto, em virtude da grande pandemia de obesidade, hipertensão e doenças
crônicas não transmissíveis.
Assim, os alimentos
são divididos em alimentos in natura, aqueles de origem animal ou vegetal, e
que não sofreram nenhuma alteração quando retirados da natureza. Está nesse
grupo a carne, o leite, as frutas. Existem também os alimentos minimamente
processados, os quais passam por um processo de limpeza ou remoções de partes
indesejadas que não são consumidas, ou passam ainda por algum processo de
moagem, pasteurização, refrigeração.
Os produtos, por sua
vez, são aqueles processados, ou seja, prontos para o consumo, produzidos pela
indústria e nos quais são adicionados açúcar, para que tenham uma durabilidade
maior na prateleira e para que sejam mais palatáveis e atraentes ao consumidor.
Normalmente são os alimentos em conserva ou frutas que recebam adição de
açúcar, em forma de compotas, carnes defumadas, carnes secas, etc. Existem
também os produtos ultraprocessados, que somente conseguem ser produzidos pela
indústria e são derivados de alimentos, sim, mas contêm somente resquícios dos
alimentos originais. Entre eles, estão a salsicha, o biscoito, as geleias, os
sorvetes, os molhos prontos, os temperos, os cereais matinais, o macarrão
instantâneo, os salgadinhos, os refrigerantes, os néctares, os nuggets, as
barras de cereais.
Dentro desse
contexto, a primeira recomendação é que devemos fazer do alimento a base da
nossa alimentação. Parece uma coisa redundante, que todo mundo sabe, porque
durante muito tempo se considerou os produtos ultraprocessados como alimentos.
Mas na verdade, dentro do novo contexto — que não é tão novo, porque existe um
documento da FAO e da ONU de 1998, que chama a atenção para voltarmos a
consumir alimentos — temos de considerar o alimento e não somente valorizar os
nutrientes, porque isso leva ao entendimento do consumidor de que se ele
consumir qualquer produto que tenha uma quantidade “x” de
carboidratos, lipídios, minerais, fibras, ele estará bem alimentado. E isso não
é verdade, porque a natureza coloca nos alimentos in natura e nos minimamente
processados um equilíbrio de nutrientes necessário para o organismo
metabolizar. Quando a indústria mexe nesse alimento, ela altera o próprio
aproveitamento pelo organismo. Em vista disso, há hoje essa verdadeira pandemia,
em que metade da população brasileira adulta tem excesso de peso e quase 15%
está obesa.
IHU On-Line – Há uma pandemia global de
obesidade? Que relações estabelece entre o consumo de produtos ultraprocessados
e a obesidade?
Signorá Konrad - Sim,
porque nos alimentos ultraprocessados há uma quantidade energética muito
grande. Desse modo, se consome, em menor quantidade, um montante de
quilocalorias muito maior, destituído dos minerais, das vitaminas, das fibras,
que estão presentes naturalmente nos alimentos. Então, quando ingerimos o leite
condensado, que tem cerca de 51% de adição de açúcar, estamos ingerindo um
alimento de altíssima densidade orgânica, que leva a um desequilíbrio orgânico,
em que faltam vitaminas e minerais para atuarem na metabolização até dos
excessos. Além de não ingerirmos vitaminas e minerais em quantidades adequadas,
ainda desequilibramos todo o metabolismo, porque com uma alimentação de alta
densidade energética, necessitamos de mais vitaminas e minerais.
A Organização Mundial
da Saúde já fala que há uma pandemia, porque estamos diante de um quadro de uma
transição epidemiológica, em que saímos de quadros maiores de deficiências
nutricionais, doenças carenciais e infecciosas, e estamos diante de um quadro
de doenças crônicas não transmissíveis, sendo as principais responsáveis pela
morbidade e mortalidade no mundo.
IHU On-Line – Qual é o impacto do consumo de
produtos ultraprocessados sobre a saúde? Nesse sentido, quais são as doenças
causadas por conta do consumo de produtos ultraprocessados? Ainda sobre esse
assunto, podes comentar em que consistiu sua pesquisa referente às alterações
metabólicas na obesidade visceral de ratos?
Signorá Konrad - O
impacto consiste na transferência das taxas de morbidade e mortalidade de
doenças infecciosas para as doenças crônicas e não transmissíveis, tais como a
obesidade, o câncer, a hipertensão, o diabetes. Essas são as principais
enfermidades decorrentes dos hábitos alimentares da sociedade moderna. Ao lado
disso, há outros fatores como a sedentarização, o tabagismo, o estresse
excessivo, mas a alimentação está sendo considerada o fator ambiental
determinante da causa dessas doenças. Evidentemente, ainda existem os fatores
biológicos e genéticos.
Quanto à minha
pesquisa, trabalhei com animais de laboratórios, verificando suas alterações
metabólicas. Praticamente, nós caracterizamos a síndrome metabólica, que agrega
todas essas alterações: eles se tornaram obesos, com obesidade visceral e
abdominal, tiveram alterações nos níveis de insulina, glicose, no perfil
lipídico, como triglicerídeos elevados, bom colesterol baixo, mau colesterol
elevado. Além disso, medimos quais foram as alterações termodinâmicas, ou seja,
o aumento da modulação do sistema simpático sobre o funcionamento cardíaco, as
alterações na variabilidade da frequência cardíaca, pois os animais tiveram
variações nas respostas da frequência cardíaca — as quais são esperadas dentro
da sua normalidade e que, no caso deles, foi alterada, ou seja, não respondiam
adequadamente às necessidades desses animais —, e medimos também a modulação
parassimpática, ou seja, em termos de regulação da pressão. Todas essas
variáveis, associadas ao excesso de peso, conduziram a esse quadro de síndrome
metabólica, que também acontece em humanos.
IHU On-Line – Alguns nutricionistas sugerem
dietas à base de alimentos funcionais. O que são esses alimentos e que função
eles desempenham no organismo humano no sentido de promover a saúde?
Signorá Konrad - Os
alimentos funcionais — esse conceito ainda está em discussão — são alimentos
que têm um ou mais elementos e substâncias que desempenham um papel importante
no organismo. A indústria, mais uma vez, está se apoderando de alimentos
termogênicos, funcionais, nutracêuticos e levando o consumidor a entender que
alimentos funcionais são somente aqueles produzidos pela indústria. Na verdade,
os nutricionistas querem desmistificar essa ideia. Muitos dos alimentos
produzidos pela indústria são relevantes, mas queremos deixar claro que
praticamente todos os alimentos in natura ou minimamente processados podem ter
um papel no nosso organismo. Esses alimentos têm em si uma função relevante
dentro da sua funcionalidade. Então, não há a necessidade de se adquirir um
produto que tenha uma marca para que ele realmente seja funcional. Por exemplo,
a cebolinha verde — juntamente com o alho e o brócolis — tem um papel
antioxidante importante e é um dos alimentos mais importantes de proteção
orgânica contra a ação dos radicais livres.
IHU On-Line – Como a senhora analisa o slow
food, em contrapartida ao fast-food? Percebe, em alguma medida, posições
extremas, quando se trata de alimentação e saúde, entre aqueles que ignoram
completamente a alimentação saudável e os que organizam sua vida em torno de
uma alimentação saudável? Isso tem a ver com esse marketing da industrial e do
consumo?
Signorá Konrad - A
indústria tem o seu papel, mas ela precisa se ajustar às necessidades e à
própria ciência, ou seja, às evidências que temos de que o excesso de açúcar
faz mal, que o excesso de sódio faz mal, que o excesso de ácidos graxos trans
faz mal. Esse tipo de substância não deveria estar contido nos produtos que são
oferecidos à população, principalmente às crianças. A publicidade leva a
criança a acreditar que tomar um néctar é melhor do que comer uma fruta,
quando, na verdade, não é. Dentro disso, a indústria pode se adaptar e os
engenheiros de alimentos entendem e querem isso. Só que ainda existe uma grande
parcela da população que adere à praticidade ou que, por não conhecer os
alimentos de verdade, não os busca. Claro que existem os que radicalizaram e
que não compram produtos industriais. Mas existem pessoas em todos os níveis,
desde os que não conseguem preparar seus alimentos, mas que gostariam.
Então, vejo que há um
amplo espaço, inclusive nesse Simpósio que vai acontecer, para se debater
exatamente essa questão: aproximar a indústria, o consumidor e todos os
profissionais técnicos de uma equipe multidisciplinar ou transdisciplinar para
que possamos realmente tornar a população mais saudável.
IHU On-Line – Como reverter essa lógica de
consumir produtos ultraprocessados para voltar a consumir alimentos?
Signorá Konrad -
Temos que conhecer os alimentos regionais — dentro do movimento slow food
encontramos os elementos para isso —, conhecer as preparações, resgatar e
trocar receitas. Tudo isso é proposto pelo Guia Alimentar, que traz justamente
uma conotação “de volta” àquilo que é saudável, não dentro de um espírito
radical de não comer mais nada industrializado.
Há uma abertura para
um diálogo entre indústria, consumidores e profissionais. É um momento muito
rico e temos de aproveitar esses espaços, essas instâncias, para justamente
chegar a um denominador comum, em que todos tenhamos êxito naquilo que
buscamos. Nós todos buscamos a saúde e, portanto, não podemos colocar o lucro
acima de tudo. O que faz uma empresa produzir e vender um produto que é
prejudicial à saúde das pessoas? A busca pelo lucro. A partir do momento em que
tivermos essa conotação de que a saúde está em primeiro lugar, talvez mais
pessoas passem a se dedicar à produção de alimentos in natura. Quem sabe vamos
voltar a cultivar uma horta, um pomar. Há 40, 50 anos, as famílias compravam
somente sal. Eu mesma vivi essa realidade. Nós tínhamos toda a nossa
necessidade diária de alimento, tanto vegetal quanto animal, disponíveis na
propriedade, e nem eram propriedades grandes. Então, esses espaços, mesmo
pequenos, eram espaços onde se praticava a cultura de alimento, a criação de
pequenos animais.
Aqueles que ainda são
privilegiados devem retomar esses espaços para que se produzam mais alimentos,
porque ainda existem mais de 800 milhões de pessoas no mundo passando fome.
Então, nós não podemos olhar só para o quadro da obesidade. A má alimentação
ainda peca por carência e por excessos. Eu vejo muito nesse resgate da produção
do alimento, no preparo do alimento, no convívio familiar, uma das chamadas do
Guia Alimentar: “coma em companhia”, ou seja, não faça refeições sozinho,
porque em companhia você vai se alimentar melhor.
IHU On-Line – Em que consiste o Guia
Alimentar para a População Brasileira proposto pelo Ministério da Saúde? Como
está o processo de constituição do Guia, com consulta pública?
Signorá Konrad -
Essas discussões foram inicialmente realizadas a partir de um núcleo de saúde
pública da USP, com a coordenação do Prof. Dr. Carlos Augusto Monteiro, em que
um grupo multidisciplinar, juntamente com o Ministério da Saúde e a Organização
Mundial da Saúde, realizaram todas as preliminares para promover uma nova
versão do Guia Alimentar — aliás, não estamos chamando de nova versão, porque
não é uma atualização e sim uma mudança completa, quase radical, de tudo aquilo
que se viu e se vê no guia alimentar ainda vigente, que é calcado nos
nutrientes, e não nos alimentos.
Este novo Guia Alimentar
vem com uma conotação qualitativa, e não quantitativa. Essa é a grande tônica
dele, no sentido de mostrar que saúde é mais do que a ausência de doenças —
todos sabemos disso —, mas que a alimentação é mais do que a ingestão de
nutriente.
Então, nós tiramos o
enfoque de que temos de consumir proteínas, carboidratos, lipídios, vitaminas,
minerais e fibras, ou seja, o enfoque químico que data de 1800. Hoje, nós temos
um olhar do alimento como uma matéria que é composta de substâncias químicas
que estão nos nutrientes, mas que tem muito mais do que carboidratos,
proteínas, lipídios, protídeos, carboidratos não digeríveis, fibras
alimentares, vitaminas, minerais, fitoquímicos, mas outras substâncias que
ainda são isoladas pela química analítica.
É esse equilíbrio que
se busca. Até hoje, com toda a evolução tecnológica, ainda não se conseguiu
substituir o leite materno, e não se fará isso, porque nós não vamos conseguir
imitar a natureza, e nem devemos ter essa pretensão. Então, o Guia Alimentar
deriva de um sistema alimentar sustentável acima de tudo, ou seja, de padrões
saudáveis de alimentação. E esses são possíveis a partir do momento em que
tenhamos o desenvolvimento de sistemas alimentares que protegem e que respeitam
o ambiente natural quando os alimentos são obtidos. Ou seja, o Brasil é campeão
mundial no uso de agrotóxicos desde 2008, e isso é inconcebível, porque
agrotóxico não faz parte do alimento.
Então, há uma
campanha inclusive do nosso Conselho Federal de Nutricionistas e várias
entidades do país para repensar esse modelo do agronegócio, que prioriza a
produção em grande escala independente da qualidade do alimento. (ecodebate)