Legislação e a falta de estatística impedem alcançar a meta para reduzir desperdício de alimentos.
Desperdício de alimentos – A legislação brasileira e a falta de estatísticas impedem alcançar a meta de sua redução.
Apesar de o Brasil ter se comprometido
com os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável – ODS, oriundos da Conferência
Rio+20, para orientar as políticas nacionais nos próximos 15 anos e ter entre
suas metas a redução pela metade das perdas e desperdício de alimentos, ainda
“não existe nenhuma estimativa sobre o desperdício de alimentos” no país,
informa o pesquisador Walter Belik à IHU On-Line. “É uma obrigação dos governos
trabalharem essa questão através de um planejamento. Para que o planejamento
seja feito, é necessário ter uma linha de base, é preciso levantar as
estatísticas sobre perdas e desperdício no Brasil. O governo não está fazendo
essa lição de casa. (…) Não tendo uma linha de base, toda a discussão sobre
redução de perdas é uma coisa um pouco sem sentido, porque vamos reduzir com
base no quê? Qual a informação que temos? Como vamos colocar metas? Então, o
ponto inicial, de fato, é a quantificação”, afirma.
Na entrevista a seguir, concedida por
telefone, Belik diz ainda que o agravamento da crise econômica e os três anos
de recessão aumentaram a demanda dos bancos de alimentos. “Muitas instituições,
que acreditávamos que poderiam se ‘emancipar’ do banco de alimentos e não
necessitariam mais dele para que pudéssemos assumir outras instituições, não
estão conseguindo se emancipar”, relata.
Belik também comenta os projetos de
lei que propõem a criação de uma política nacional para combater o desperdício
de alimentos no país. Segundo ele, uma mudança na legislação atual sobre a
doação de alimentos poderia representar uma contribuição importante no
enfrentamento ao desperdício.
“Se tivéssemos a garantia descrita em
lei, funcionaria melhor. Atualmente quem dá a garantia é a pessoa que assume a
responsabilidade, ou seja, há um documento privado entre o doador e o receptor,
que é o banco de alimentos. Entretanto, é importante separar a questão da
responsabilidade penal e civil da isenção de impostos. É isso que está em
discussão também no Congresso, porque todo mundo é favorável à isenção de
responsabilidade, mas os doadores querem benefícios fiscais também”.
E defende: “Quem é samaritano não
precisa ter incentivo fiscal para doar. Existem vários países que não dão
incentivo fiscal, como, por exemplo, o Canadá, e a doação per capita do Canadá,
em relação aos Estados Unidos, onde tem isenção, é muito maior”.
Walter Belik é professor do Instituto
de Economia da Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. É graduado em
Administração de Empresas pela Escola de Administração de Empresas de São Paulo
da Fundação Getúlio Vargas – FGV, mestre em Economia aplicada à Administração
pela mesma escola e doutor em Ciência Econômica pela Unicamp.
IHU
On-Line — Em 2014, quando nos concedeu uma entrevista, o senhor disse que o
Brasil não tinha uma resposta para a pergunta sobre o tamanho do desperdício de
alimentos. O Brasil continua não tendo uma estimativa real sobre desperdício de
alimentos no país? É possível ter uma metodologia padrão para avaliar perdas e
desperdícios?
Walter
Belik — Não existe nenhuma estimativa sobre o desperdício de alimentos no
Brasil. É possível criar uma metodologia, mas esse é um esforço que o governo
deveria fazer, pois isso tem uma ligação direta com os compromissos que o
Estado brasileiro fez em 2015, quando o Brasil assinou os Objetivos do
Desenvolvimento Sustentável – ODS. Uma das metas do ODS, a 12.3, trata
exatamente sobre a redução de perdas e desperdício, ou seja, propõe reduzir
pela metade as perdas na produção e distribuição de alimentos e combater o
desperdício.
É
importante distinguir entre as duas coisas, perda e desperdício:
– perda é
involuntária, acontece dentro do processo produtivo, normalmente dentro da
atividade pós-colheita ou distribuição e também na parte de comercialização, ou
seja, acontecem perdas porque o produtor não se preparou para estocar, ou
porque o sistema de transporte é inadequado;
– o
desperdício acontece voluntariamente, em geral nos domicílios, e há um
desperdício porque se compra a mais, ou porque as pessoas aproveitam as
promoções, ou porque as datas de validade não são muito explicativas e por isso
parte dos alimentos é jogada fora.
Retomando,
segundo a meta 12.3 do ODS, o Brasil deveria reduzir pela metade o volume de
perdas e fazer um esforço para reduzir o desperdício até 2030. Então, é uma obrigação
dos governos trabalharem essa questão através de um planejamento. Para que o
planejamento seja feito, é necessário ter uma linha de base, é preciso levantar
as estatísticas sobre perdas e desperdício no Brasil. O governo não está
fazendo essa lição de casa, mas existem instrumentos para fazê-la: outros
países já estão trabalhando essa questão, alguns até já têm uma visão completa
do que está acontecendo.
Segundo
pesquisador Belik, o agravamento da crise econômica e os três anos de recessão aumentaram
a demanda dos bancos de alimentos.
IHU
On-Line — Qual é a dificuldade do Estado em ter um panorama geral acerca do
desperdício? Após a assinatura dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, o
Brasil já encaminhou alguma outra medida para dar andamento às metas que se
comprometeu a cumprir?
É
necessário discutirmos circuitos curtos de produção, produção regional, as
vocações locais de abastecer determinados grupos alimentares.
Walter
Belik — O Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional – Plansan, que é
de 2016 a 2019, estabelece diretrizes com relação a perdas e desperdício. Logo,
há um “despertar” do governo para essa questão que tinha ficado de fora de toda
a discussão sobre segurança alimentar e sustentabilidade. Essas diretrizes são gerais
sobre redução de perdas e desperdício. Eu estou no Comitê da Câmara
Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional, que foi montado para
discutir essas questões. A Câmara convocou especialistas, um grupo de trabalho,
que iria desenvolver esses estudos, mas o governo está paralisado e não
acontece nada. Para implementação das diretrizes é preciso ter legitimidade, o
que é um problema para o atual governo. De todo modo, algumas dessas diretrizes
são as seguintes:
4.22 —
identificação e mitigação de perdas qualitativas e quantitativas após a
colheita de grãos de milho, soja, trigo, café, feijão, e identificação e
mitigação no transporte de grãos de milho, soja e arroz;
4.23 —
estabelecer um marco legal para a redução de perdas e desperdício sobre a
agenda dos bancos de alimentos — essa proposta está sendo discutida no momento;
4.24 —
implementação da rede brasileira de banco de alimentos.
Portanto,
é isso que o governo tem a dizer sobre essa questão das perdas e desperdício. A
quantificação é supercomplicada porque o Brasil é um país muito grande e as
mercadorias circulam no país inteiro, viajam de Norte a Sul. Assim, o
desenvolvimento de um estudo que possa contemplar todas essas questões de
perdas onde o alimento é produzido, perdas no transporte e perdas no local de
consumo, exige uma metodologia bastante complexa. O IBGE tem alguma iniciativa
com relação a isso: é um estudo sobre perdas na estocagem de alimentos, baseada
em dados secundários, ou seja, não tem pesquisa direta.
Esse tipo
de pesquisa exigiria um investimento razoável do IBGE, que teria a obrigação de
fazer esse trabalho, mas isso não vai ser feito no atual momento; mal vamos
conseguir produzir o Censo Agropecuário, que deveria ter sido publicado no ano
passado. Portanto, esse objetivo de montar uma linha de base está longe de
acontecer. Não tendo uma linha de base, toda uma discussão sobre redução de
perdas é uma coisa um pouco sem sentido, porque vamos reduzir com base no quê?
Qual a informação que temos? Como vamos colocar metas? Então, o ponto inicial,
de fato, é a quantificação.
IHU
On-Line – Como têm funcionado os bancos de alimentos?
Walter
Belik — Os bancos de alimentos ainda estão no mesmo impasse, conforme
conversamos em 2014, pois não existe uma legislação que possa facilitar a
doação por parte das empresas e de pessoas físicas. Muitos bancos têm que
improvisar, e o que se propunha, que era fazer uma rede brasileira de banco de
alimentos, é algo diferente do que está sendo proposto pelo governo, porque boa
parte dos bancos de alimentos funcionam por entidades independentes, como ONGs
ou o próprio Sesc Mesa Brasil, que tem essa rede enorme no país.
Não tem
muito sentido o governo chamar para si a responsabilidade de organizar a rede
brasileira de banco de alimentos, porque os bancos de alimentos governamentais
são pequenos e eles não representam nada em termos de arrecadação de alimentos;
são medidas muito mais políticas do que de efeito prático. Nesse aspecto, cabe
à sociedade e aos bancos de alimentos se organizarem para que esse tipo de
restrição da legislação que existe hoje, que não é absoluta, possa ser
contornada.
Os bancos
de alimentos vêm trabalhando, razoavelmente, para contornar isso. Uma reunião
dos bancos poderia organizar o sistema em forma de rede mesmo, onde tem troca
de informações, de indicadores qualitativos das instituições que estão
recebendo os alimentos. Haveria uma espécie de certificação do que pode ser
denominado como banco de alimentos, assim, alguém que deseja abrir um banco de
alimentos precisaria preencher determinados requisitos; temos que controlar
isso.
Agora que
a situação econômica se agravou, os bancos de alimentos estão sofrendo uma
pressão enorme. Aqueles com os quais tenho contato — sou voluntário em um banco
de alimentos — estão tendo que trabalhar muito porque aumentou a demanda:
muitas instituições, que acreditávamos que poderiam se “emancipar” do banco de
alimentos e não necessitariam mais dele para que pudéssemos assumir outras
instituições, não estão conseguindo se emancipar. Nessa situação que estamos
vivendo, é preciso organizar melhor o sistema de banco de alimentos.
IHU
On-Line — Qual tem sido o papel e a contribuição dos bancos de alimentos no
país para diminuir os problemas relacionados tanto ao desperdício quanto ao
problema da fome?
O problema
de atender 9 bilhões de pessoas em 2050 não passa, necessariamente, por um
aumento da oferta.
Walter
Belik — O total de alimentos coletados pelos mais de 100 bancos de alimentos em
atividade no país é de 120 mil toneladas/ano. É uma quantidade de alimentos
bastante grande. Há uma série de programas que foram iniciados na gestão
passada e que estão sendo descontinuados, como, por exemplo, o Programa de
Aquisição de Alimentos – PAA, que está praticamente desaparecendo.
Esse
programa cumpre a função de receber os alimentos doados pelo governo e faz o
repasse simultâneo para as instituições. Na medida em que o PAA vai se
reduzindo, os bancos de alimentos independentes acabam assumindo o papel dele.
Pela
quantidade de alimentos que passam pelos bancos de alimentos atualmente, que
poderia ser maior se houvesse uma legislação mais compatível, e pelo papel que
eles desempenham hoje em uma sociedade onde os programas públicos estão sendo
desmantelados, é muito importante dar continuidade a esse trabalho.

IHU
On-Line — Entre os 28 projetos em tramitação no Congresso nacional relativos à
doação de alimentos e à criação de uma política nacional para combater o
desperdício de alimentos, alguns propõem acabar com a punição de doadores de
alimentos, caso os produtos doados causem algum mal-estar ou problema de saúde
às pessoas que os receberam. Como o senhor vê essa discussão em relação à
punição ou não dos doadores de alimentos? A legislação atual tem sido um
impeditivo para combater o desperdício de alimentos? Uma alteração na lei
mudaria esse cenário?
Walter
Belik — Sim. Existem vários projetos de lei na Câmara e no Senado trabalhando
essa questão. Estamos organizando um Seminário em São Paulo, no dia 26 de
setembro, que vai trabalhar essa temática. Estamos convidando a assessoria
parlamentar do Senado que está acompanhando todos os projetos. Mas, dada a
agenda política que está colocada, de reforma daqui e dali, esse tipo de
projeto não é pautado para votação, apesar de alguns já terem passado em todas
as Comissões.
De fato,
uma mudança na legislação representaria uma mudança radical, pois, apesar de os
bancos oferecerem todas as garantias legais, de que a empresa que está doando
não será punida se acontecer algo — aliás, quando passa pelo banco de alimentos
é difícil acontecer algo, porque o nutricionista ou engenheiro de alimentos que
está recebendo a doação faz uma vistoria no produto e atesta a qualidade —,
muitas empresas têm medo de doar. Se tivéssemos a garantia descrita em lei,
funcionaria melhor. Atualmente quem dá a garantia é a pessoa que assume a
responsabilidade, ou seja, há um documento privado entre o doador e o receptor,
que é o banco de alimentos. Entretanto, é importante separar a questão da
responsabilidade penal e civil da isenção de impostos. É isso que está em
discussão também no Congresso, porque todo mundo é favorável à isenção de
responsabilidade, mas os doadores querem benefícios fiscais também.
A
legislação no Brasil é complicada, porque se paga muito imposto. Por exemplo,
tudo o que circula no Brasil precisa de nota fiscal, assim, uma mercadoria que
é doada vai com uma nota fiscal com valor zerado. Então, em relação ao ICMS, a
empresa recolhe o ICMS quando compra as matérias-primas ou quando compra o
produto que iria comercializar — no caso de um supermercado —, logo, paga o
ICMS e se credita de ICMS e, na hora de vender, se a nota fiscal é zero, ela
não tem esse débito de ICMS e não aproveita o crédito que ela acumulou. Com
isso temos um imposto pago a mais e esse imposto não tem como ser ressarcido.
Existem várias propostas em discussão acerca dessa questão, algumas sugerem que
esse crédito seja transferido, outras propõe zerá-lo, e não se chega a uma
conclusão.
Tenho uma
posição particular em relação a isso: as leis de doação para os bancos de
alimentos são chamadas — dada a inspiração cristã dos anos 1970 nos Estados
Unidos — de Estatuto do Bom Samaritano — o primeiro Estatuto do Bom Samaritano
foi nos EUA na década de 1970. Então, quem é samaritano não precisa ter incentivo
fiscal para doar. Existem vários países que não dão incentivo fiscal, como, por
exemplo, o Canadá, e a doação per capita do Canadá, em relação aos Estados
Unidos, onde tem isenção, é muito maior. Então, quem está imbuído do espírito
do bom samaritano não precisa de incentivo fiscal para fazer uma doação.
IHU
On-Line — Nos últimos anos o Brasil se orgulhava de ter reduzido os índices de
miséria e pobreza, e chegou a ser visto como um exemplo de êxito na aplicação
de políticas públicas de combate à fome e de segurança alimentar e nutricional.
Hoje, menos de uma década depois, a preocupação em relação à fome e à
insegurança alimentar volta a rondar o país. Que balanço o senhor faz em
relação a essas questões, considerando as políticas que foram tomadas na
direção de erradicar a miséria, a pobreza e a fome, e a situação que o país
vive hoje? Quais foram os erros e acertos ao lidar com essas questões?
Algo que
vai acontecer, e que está mais ou menos previsto, é a volta do Brasil ao Mapa
da Fome.
Walter
Belik — O Brasil avançou muito e, de fato, tem hoje uma política de segurança
alimentar, e uma política baseada e institucionalizada, pois existe uma Lei
Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional – Losan. O Plansan é uma
obrigatoriedade derivada da lei, por isso que o governo tem que montar um plano
nacional de segurança alimentar. Não é por acaso que, então, o governo tem que
apresentar alguma coisa. Existe, de fato, uma base institucional para que o
Brasil possa combater a fome e garantir a segurança alimentar e nutricional.
Mas a
segurança alimentar e nutricional não é uma obra acabada, ela vai se
aperfeiçoando ao longo do tempo e está sujeita a retrocessos. E, hoje em dia,
estamos vivendo um retrocesso, porque a conjuntura econômica virou, o país está
em recessão há três anos e nós não tivemos aumentos significativos no salário
mínimo, que foi um complemento importante da política de segurança alimentar.
Além disso, alguns programas que tinham sido montados ao longo dos últimos anos
estão sendo desmantelados, como é o caso do PAA.
O programa
Bolsa Família está sofrendo uma série de restrições, pois houve aumento do
Bolsa Família no governo Dilma, em 2014, e agora se mantém congelado. Além
disso, está sendo feita uma revisão do Bolsa Família e tem diminuído o número
de pessoas beneficiárias do programa. Lógico, havia algumas distorções e cabe
ao Ministério fiscalizar esses casos, mas é natural, em um programa de 14
milhões de famílias, uma margem de erro; se tiver 1% de margem de erro, são 140
mil famílias, é muita gente.
Algo que
vai acontecer, e que está mais ou menos previsto, é a volta do Brasil ao Mapa
da Fome. Neste ano, em outubro, a FAO vai divulgar os dados da estatística da
segurança alimentar no mundo e, muito provavelmente, o Brasil vai voltar a ter
indicadores acima de 5%, que é o valor considerado limite entre fome e não
fome.
IHU
On-Line — A expectativa é de que em 2050 existam 9 bilhões de pessoas no mundo.
Que questões centrais devem ser consideradas quando se trata de discutir a garantia
e a produção de alimentos para esse contingente populacional, e como essa
discussão deve se relacionar com as questões ligadas ao meio ambiente, ao
desenvolvimento de novas tecnologias e às políticas públicas?