Mais petróleo e menos água: Shatt al Arab, vital rio do Iraque, está definhando.
Shatt al Arab com lixo e fétido em Basra.
O Shatt al Arab, rio que corre desde o local bíblico conhecido como Jardim do Éden até o Golfo Pérsico, transformou-se num desastre econômico e ambiental que o novo governo democrático do Iraque é praticamente incapaz de resolver.
Definhando por causa de décadas de mau gerenciamento da ditadura do país e depois pela negligência, por causa da seca e da sede dos vizinhos do Iraque, o rio formado pela convergência do Tigre e do Eufrates não tem mais força para evitar a entrada das águas do oceano.
A água salgada do Golfo agora corre rio acima, para além da península de Faw. No ano passado, pela primeira vez na história, ela chegou até Basra, a maior cidade portuária do Iraque, e até Qurna, onde os dois rios se encontram. A água prejudicou a pesca em água doce, os rebanhos, plantações e os pomares de tâmaras já deram renome à região, obrigando dezenas de milhares de fazendeiros a migrarem.
Numa terra de sofrimento, resignação e fé profunda, o desastre ao longo do Shatt al Arab parece, para alguns, a obra de um poder maior. “Não podemos controlar o que Deus faz”, diz Rashid Thajil Mutashar, vice-diretor de recursos hídricos de Basra.
Mas o ser humano teve seu papel no declínio do rio. A Turquia, a Síria e o Irã desviaram os afluentes que desembocam no Tigre e Eufrates e por fim no Shatt al Arab, deixando poucas alternativas às autoridades iraquianas a não ser pedir para que eles soltem mais água de suas modernas redes de represas.
O problema ambiental se tornou particularmente agudo no ano passado quando o Irã cortou inteiramente a vazão do rio Karun, que se encontra com o Shatt no sul de Basra, durante dez meses. A vazão foi restabelecida depois das chuvas de inverno, mas a uma fração bem menor do que os níveis anteriores.
Nos anos 80, o Irã e o Iraque lutaram pelo Shatt al Arab, que define a fronteira mais ao sul entre os dois países e ainda está repleto de cascos enferrujados de navios afundados durante a guerra entre os dois países. Agora, apesar da melhoria das relações depois da queda de Saddam Hussein, o rio voltou a ser uma fonte de tensão diplomática.
“A água é de Deus”, disse Mohammed Sadoon, fazendeiro e pescador do vilarejo de Abu Khasib, que vendeu dois búfalos d’água no ano passado porque não conseguia mais dar a eles água potável do rio Shatt. “Eles não deveriam tirá-la de nós”.
O ministro iraquiano dos recursos hídricos, Abdul Latif Jamal Rashid, disse que os problemas ambientais e as disputas pelos direitos sobre a água são um legado que perdura da ditadura.
Hussein desviou a parte sul do rio para uma trincheira durante a guerra com o Irã e inundou as várzeas do sul do Iraque nos anos 90. Sua beligerância com os vizinhos do Iraque também deixou o país isolado – e depois enfraquecido – quando esses países construíram suas represas, desviando a água que por milênios fluiu através da Mesopotâmia, a terra entre os rios.
“O Iraque não estava na posição de rejeitar nem de cooperar com eles”, disse ele numa entrevista em seu escritório em Bagdá. “Eles fizeram o que queriam fazer.”
Em Basra e nos vilarejos que ficam na margem iraquiana do Shatt, o impacto do desastre foi profundo. A água doce que antes corria pelos canais de Basra, a Veneza do Oriente Médio, como era chamada há muito tempo, está fétida e cheia de lixo.
A invasão da água salgada poluiu tanto as reservas de água potável que o governo se apressou em cavar canais alternativos ao Shatt desde o norte do país, o primeiro-ministro Nouri al-Maliki inaugurou um antes da eleição nacional deste ano e em enviar água em caminhões-pipa para a maior parte da região. Todos que podem evitam beber a água da torneira, que é salgada o suficiente para deixar marcas num copo quando seca. Mutashar disse que o nível de sal aceitável na água do Shatt no Iraque era de 1.500 partes por milhão; no ano passado esse nível chegou a 12 mil.
Faris Jassim al-Imara, químico do Centro de Ciência Marinha da Universidade de Basra, disse que foram registrados níveis recordes de até 40 mil partes por milhão, assim como de metais pesados e outros poluentes que vêm do norte e da refinaria de Abadan no Irã, onde tubulações enormes costumam despejar a água utilizada.
“Isso está matando o rio e as pessoas”, diz ele. Aqui em Siba, do outro lado da margem da cidade de Abadan, a água salgada está lentamente destruindo a agricultura, a primeira fonte de renda depois do petróleo.
Jalal Fakhir, que cultiva com seus irmãos um pedaço de terra que pertence à sua família há décadas, perdeu suas vinhas, cinco pés de damascos, e toda sua colheita de quiabo, pepinos e berinjelas. As novas tamareiras que ele plantou há dois anos morreram; as mais velhas conseguiram resistir, mas seus galhos estão ficando amarelados, e a colheita anual de tâmaras está mais escassa.
Caminhando pelo pomar doente, ele diz: “Isso aqui costumava ser um paraíso”.
Os líderes iraquianos, que primeiro enfrentaram a rivalidade pós-Saddam Hussein e hoje enfrentam o impasse político que atrasou a formação de um novo governo, foram até agora incapazes de evitar que a catástrofe se desenrolasse aqui, quanto menos revertê-la.
Um gerenciamento eficiente da água em todo o país continua muito mais um objetivo do que a realidade. O governo está esboçando planos para construir sua própria represa no Shatt, para manter a água do mar longe, mas o custo e a complexidade da ideia continuam proibitivos, de acordo com Mutashar.
Para aumentar a vazão do rio, o Iraque estabeleceu várias rodadas de negociações com os países vizinhos. O resultado foram algumas promessas de cooperação, mas pouca água – principalmente por causa da seca que atingiu a região nos últimos anos.
“Se nosso governo fosse bom e forte, nós conseguiríamos nossos direitos”, disse Hassam Alwan Hamoud, patriarca de 71 anos de uma família de beduínos que vivem em cabanas de junco nas várzeas adjacentes ao Shatt perto de Abu Khasib. Em vez disso, eles se transferem com seus búfalos d’água conforme dita a água salgada. “Nosso governo só fala. Eles são fracos.”
Rashid, o ministro dos recursos hídricos, diz que o problema levou décadas para se instalar e levará décadas para ser resolvido.Um benefício da democracia do país, diz ele, é que os problemas se tornaram públicos, o que não acontecia durante o governo de Saddam. “Isso veio à tona agora”, diz ele, “porque o Iraque é um país livre.” (EcoDebate)
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