Um dos efeitos do aquecimento global é
a elevação do nível do mar. Aquecimento e degelo reforçam-se mutuamente através
de mecanismos de retroalimentação amplificante, pois o aquecimento superficial
da água e da troposfera aumenta o degelo e esse, ao diminuir o albedo (a fração
rebatida para o espaço da radiação solar incidente sobre a Terra), acelera o aquecimento,
num círculo vicioso. Uma vez desencadeados, o aquecimento da água (vale dizer,
sua expansão térmica) e o degelo têm dinâmicas inerciais, de modo que nem mesmo
uma radical redução nas emissões de GEE num intervalo de tempo de 0 a 100 anos
será capaz de detê-los no horizonte do tempo histórico. Já em 2001, o Terceiro
Relatório de Avaliação do IPCC (Assessment Report ou AR3) afirmava: “projeta-se
que o nível do mar continuará a se elevar por muitos séculos”. A figura 1
ilustra o caráter irreversível da elevação inercial das temperaturas e do nível
global médio do mar no horizonte do próximo milênio.
Como se vê, não deve ocorrer
estabilização da temperatura nos próximos séculos e o nível do mar continuará a
se elevar por expansão térmica e por degelo pelo menos ao longo do próximo
milênio. Obviamente, advertia em 2001 o IPCC, “os impactos tornam-se
progressivamente maiores com mais altas concentrações de CO2”, de
onde a inadiável necessidade de diminuir as emissões de GEE, o que não está
ocorrendo.
Aceleração
no passado recente
Em quanto o nível do mar já subiu no
último século? Segundo o IPCC-AR5 (2013), é “muito provável que a taxa média de
elevação do nível do mar tenha sido 1,7 [1,5 a 1,9] mm por ano entre 1901 e
2010, para uma elevação média total de 19 cm (17 a 21 cm). Entre 1993 e 2010, a
taxa foi, muito provavelmente, mais alta, atingindo 3,2 mm por ano”. Reforçando
esses dados, mensurações satelitares do GISS/NASA indicam que entre 1880 e 2013
houve uma elevação média global do nível do mar de 22,6 cm, vale dizer, 1,6 mm
por ano em média ao longo de 133 anos. Ocorre que um terço dessa elevação (7,6
cm) ocorreu em apenas pouco mais de 20 anos, entre 1992 e 2013. Tal aceleração
foi calculada por um trabalho publicado na Scientific Reports em
2016, que estabelece o seguinte salto nas taxas de elevação do nível do mar:
1900-1990 = + 1,2 a 1,9 mm / ano
1992-2015 = + 3,3 ± 0.4 mm / ano
Em 2016, a elevação média foi de 3,41 mm,
resultante de uma nova aceleração a partir de 2012, como mostra claramente a
figura 2.
A aceleração evidenciada na figura 2 é
confirmada por uma recente avaliação, segundo a qual a elevação média global do
nível do mar foi 25% a 30% mais rápida entre 2004 e 2015 que entre 1993 e 2004.
Incerteza
sobre a taxa de aceleração no futuro próximo
Qin Dahe, co-diretor do IPCC-AR5, afirma que “à
medida que o oceano se aquece e o gelo marítimo e continental se reduz, o nível
médio global do mar continuará a se elevar, mas a uma taxa mais rápida que a
observada nos últimos 40 anos”. Quão mais rápida é ainda incerto. A se
confirmarem as estimativas do trabalho publicado na Scientific Reports, acima citado, “a magnitude da
aceleração em meados do século XXI será de 0,12 mm por ano a cada ano [0.12mm
yr−2], embora esse valor dependa fortemente das perdas futuras do gelo
continental, as quais são altamente incertas”. Para tentar restringir essas
incertezas, Benjamin P. Horton, Stefan Rahmstorf, Simon E. Engelhart e Andrew
C. Kemp publicaram em 2014 os resultados de uma avaliação probabilística sobre
a elevação média do nível do mar em 2100 e em 2300, em função de dois cenários
contrastantes de aquecimento global, a partir de uma consulta a 90
especialistas selecionados entre os que mais ativamente publicaram sobre esse
tópico em anos recentes.
A figura 3 sintetiza num único gráfico essas projeções, comparando-as com as do
IPCC e da National Oceanic and Atmospheric Administration (NOAA).
No cenário em azul (sombreado com
intervalos de confiança prováveis e muito prováveis), o aquecimento é inferior
a 2º C em relação ao período pré-industrial e há lenta diminuição após 2050
(RCP3-PD, por “Peak and Decline”). Nesse caso, a elevação média mais provável
será de 40 a 60 cm até 2100 e de 60 cm a 1 metro até 2300. No cenário em
vermelho (RCP8, com mesmos intervalos de confiança), o aquecimento é de 4,5ºC
em 2100 e de 8ºC em 2300, e a média mais provável de elevação situa-se entre 70
cm e 1,6 metros para 2100 e 2 a 3 metros para 2300. Em comparação com os
pareceres desses 90 especialistas, as projeções do IPCC para 2100 em relação a
2000 representam-se nas barras verticais à direita, confirmando a tendência
(necessariamente) conservadora do IPCC. Em contraste, as projeções da NOAA,
representadas pelas quatro linhas pontilhadas, atingem, no caso
intermediário-alto, mais de 1,2 metros e, no pior dos casos, 2 metros.
Antártica
e Groenlândia: elevação não linear do nível do mar
Essas incertezas decorrem, como dito,
sobretudo da rapidez do degelo da Groenlândia e da Antártica, que apenas agora
começa a ser melhor estimada. Segundo o IPCC (AR5), “observações feitas desde
1971 indicam que a expansão térmica e o degelo marinho (excluído o degelo
marinho periférico da Antártica) explicam 75% da elevação observada (alta
confiabilidade)”. Mas, continua o texto, “a contribuição do gelo da Groenlândia
e da Antártica tem aumentado desde o início dos anos 1990, em parte por causa
do fluxo acrescido de gelo induzido pelo aquecimento do oceano imediatamente
adjacente”. O que já se observou é que em apenas 17 anos (1995 – 2011), a ação
combinada do degelo na Antártica e na Groenlândia causou uma elevação de 11,1
mm do nível do mar, elevação esta que, sobretudo na Groenlândia, está em clara
aceleração nesse período, como mostra a figura 4.
ESA/NASA/Planetary Visions. Baseado em Andrew
Shepherd et al., “A Reconciled Estimate of
Ice-Sheet Mass Balance”. Science, 30/11/2012, https://www.geopostings.com/category/ice-sheet-melt/
Em 2009, um trabalho publicado na
Proceedings of National Academy of Sciences já detectava essa aceleração: “a
perda de massa de gelo na Groenlândia e na Antártica está se acelerando e se
aproxima mais de uma tendência quadrática que de uma tendência linear”. Como
afirma esse artigo, a contribuição da Groenlândia para essa elevação será, mais
uma vez, maior que as projeções do IPCC-AR4 (2007).
Ocorre que, em 2016, James Hansen à
frente de 18 cientistas, publicou um trabalho cujos resultados agravam, e em
muito, mesmo a estimativa mais pessimista da NOAA (aumento de 2 metros até 2100):
“Nossa hipótese”, afirma esse trabalho, “é que a perda de massa do gelo mais
vulnerável, suficiente para aumentar o nível do mar em vários metros [several meters], aproxima-se melhor de uma resposta
exponencial que de uma resposta linear. (…) Preveem-se que altas e contínuas
emissões provenientes de combustíveis fósseis neste século provocarão (…)
tempestades mais poderosas e aumento não linear da elevação do nível do mar,
atingindo vários metros num horizonte de tempo de 50 a 150 anos”.
O
gelo de escora na Antártica
É bem sabido que “a Península
Ocidental da Antártica é uma das áreas de mais rápido aquecimento na Terra,
atrás apenas de algumas áreas do Círculo Polar Ártico”. E à medida que essa região se aquece, o degelo
continental se acelera, conferindo maior concretude ao novo cenário previsto
por James Hansen e colegas. O desprendimento da Plataforma Marítima Larsen
entre 1995 e 2017, jogando no mar de Weddel 10.550 km2 de gelo
marítimo (Larsen A, 1995 = 1.500 km2, Larsen B, 2002 = 3.250 km2
e Larsen C, 2017 = 5.800 km2) não tem impacto direto sobre o nível
do mar, pois se trata de gelo marítimo, que já ocupava lugar no mar e, além disso,
de “gelo passivo”, isto é, que não funciona como escora do gelo continental.
Mas as plataformas de gelo marítimo sobre os mares de Amundsen e de
Bellingshausen (oeste e sudoeste da Antártica) são, sobretudo, gelo de escora e
seu desprendimento futuro, dado por certo, abrirá caminho para o gelo
continental descer de suas íngremes encostas para o mar, conforme mostram as
manchas em amarelo na figura5.
Fonte: Johannes J.
Fürst et al. « The safety band of Antarctic ice shelves” Nature Climate Change,
8/II/2016. As zonas em azul são de gelo
passivo. As zonas em amarelo são de gelo de escora (buttressing)
Uma
elevação 2 vezes e meia a 6 vezes maior que no século XX
Se a elevação do nível do mar até 2100
permanecer apenas entre 50 cm e 1,2 metros (projeções intermediário-baixo e
intermediário-alto da NOAA), isso significa que ao longo do século XXI essa
elevação será 2 vezes e meia a 6 vezes maior que os 19 cm de elevação
observada, como visto acima, entre 1901 e 2010. As consequências desse
redesenho da linha costeira são tão múltiplas e complexas, que, por razões de
espaço, devem ser tratadas no próximo artigo. Antecipemos aqui, muito
brevemente, algumas delas. Dado que se preveem também furacões mais fortes e
que grande parte das maiores cidades do mundo são costeiras, inundações mais
frequentes e piores que as que ocorreram nos últimos decênios serão
inevitáveis. Até 2050, Bangladesh deve perder 10% de seu território. Em 2050, o
nível do mar em Nova York deve estar 76 cm acima do nível médio de 2000-2004 e
em 2100, 183 cm (6 pés). Cidades como Guangzhou, New Orleans, Miami, Mumbai,
Nagoya, Boston, Shenzen, Osaka, Guayaquil, Cidade Ho Chi Minh e, no Brasil,
Santos, também estão na primeira linha de tiro das inundações. Mas o espectro
das consequências é muito mais amplo que a simples perda de infraestrutura
urbana, pois uma elevação dessa magnitude (como visto, bem abaixo do pior
cenário) poderá inundar as usinas nucleares litorâneas, salinizar aquíferos e
deltas, erodir as costas, destruir ecossistemas costeiros e impor gigantescos
deslocamentos populacionais. Esses impactos serão o tema do próximo artigo.
(ecodebate)
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