De onde vem a crise hídrica que seca a bacia do rio São Francisco.
Com morte de afluentes perenes e invasão
da água do mar em sua foz, uma das principais bacias hidrográficas do Brasil
vive seca recorde que se estende desde 2012.
Reservatório
de Sobradinho já apresentava sinais da seca em 2015.
Cobrindo 7,5% de todo o território nacional e
espalhada por seis estados do país além do Distrito Federal, a bacia do rio São
Francisco é uma das mais importantes fontes de água, história e cultura do
Brasil. Hoje, o Velho Chico e seus subsidiários atravessam uma das piores secas
da história.
Somando os quatro reservatórios que alimentam
usinas hidrelétricas na bacia e que são administrados pela ANA (Agência
Nacional de Águas, do governo federal), o sistema operava em 08/10/17 com apenas 6,99% de seu
volume útil.
A falta de chuvas é uma das causas para a falta de
água. A atual seca vem se acumulando desde 2012. Mas esse não é o único fator.
A ação humana ao longo da calha do rio e de seus principais afluentes e o uso
mal-planejado dos recursos hídricos da região também são apontados por estudos
e especialistas como fatores preponderantes para a seca.
A estrutura da
bacia do São Francisco
O rio São Francisco nasce na Serra da Canastra, em
Minas Gerais, e atravessa o sul nordestino até desembocar no oceano Atlântico.
Sua foz marca a divisão entre os estados de Sergipe e Alagoas. Mas a bacia é
mais do que seu rio principal, e engloba também os afluentes.
O
sistema completo é dividido em quatro partes: alto, médio, submédio e baixo São
Francisco. A maior parte da água que abastece o rio chega dos afluentes de
Minas Gerais e da Bahia: mais especificamente 98,5% de sua vazão total, segundo
dados coletados entre 1976 e 2000 por um estudo publicado em 2007 na Revista
Brasileira de Engenharia Agrícola Ambiental.
Em
% da vazão total do São Francisco.
As
origens da crise hídrica
A
falta d’água passou a ficar mais aguda a partir de 2012. O gráfico abaixo
mostra as vezes em que municípios decretaram estado de emergência por causa de
seca e estiagem entre 2003 e 2015.
Declarações
de estado de calamidade, por seca e estiagem, entre 2003 e 2015.
Sul
e Nordeste são as regiões mais afetadas, e praticamente toda a bacia do São
Francisco está inclusa na mancha vermelha. Neste gráfico do Nexo é possível ver
a evolução mês a mês das emergências. A partir de 2012, as regiões central e
noroeste de Minas Gerais e do centro baiano passaram a ter secas mais
constantes.
Água
que falta no início do curso do rio é problema para todo o resto de seu leito.
E a questão é agravada com a presença das barragens de hidrelétricas, que
controlam a vazão natural do rio para garantir a produção constante de energia.
O
papel das barragens
Quantas
são
Quatro
controladas pela ANA, sendo três delas no rio São Francisco: Três Marias (MG),
Sobradinho (BA) e Itaparica (fronteira entre BA e PE). Além delas, há o
complexo Paulo Afonso (PE) e a represa de Xingó (AL), hidrelétricas que operam
a fio d’água.
Como
funcionam
As
barragens seguram as águas do rio para garantir que haverá vazão constante e
controlável. De manhã, por exemplo, quando há maior demanda por energia
elétrica, a vazão aumenta para gerar mais energia. De tarde, diminui.
Qual
o impacto
Ao
alterar o fluxo natural do rio, a oscilação do volume de água gera deslize de
terras na calha fluvial. Os sedimentos que seriam levados naturalmente pela
água, e os outros que chegaram pelos deslizes, se acumulam com o fluxo menor de
água e ficam depositados no fundo, causando assoreamento.
Com
o atual cenário de seca e o assoreamento de vários rios afluentes da bacia, a
vazão do São Francisco está bem abaixo do normal.
Segundo
Paulo Ricardo Petter Medeiros, professor doutor do Instituto de Geografia,
Desenvolvimento e Meio Ambiente da Universidade Federal do Alagoas, a vazão
normal fica em torno de 2.000 a 2.500 m³/s. Hoje, o São Francisco está fluindo
com uma vazão próxima a 600 m³/s.
As
barragens também estão secas, e qualquer chuva que vier servirá para recuperar
o nível das represas. Por isso, “vai ter que ter uns dois ou três anos de chuvas
muito boas para voltar à situação normal”, diz Medeiros. A época de chuvas na
região começa em novembro.
Represas
secas
Com
a água sendo retida pelas barragens, a região da foz fica ainda mais
prejudicada. A vazão abaixo do normal tira a força da água do rio que chega no
mar, e permite que a água salgada do oceano faça o caminho inverso e entre no
curso fluvial, o que trata-se de um processo de salinização da foz.
Impacto
da seca
Peixes
mortos pela seca na barragem de Sobradinho, no Rio São Francisco.
Medeiros
cita como consequências desse processo de salinização da foz:
Problemas
no abastecimento de água doméstica, que fica salobra e imprópria para consumo;
Destruição
da vegetação de água doce;
Salinização
dos lençóis freáticos, impossibilitando a plantação de culturas agrícolas;
Substituição
da fauna aquática, com o desaparecimento de peixes de água doce.
“Os
pescadores, ao longo da vida, se adaptam a pescar um tipo de peixe. A rede de
pesca, a técnica é para uma ou duas espécies de peixe. No momento que troca a
fauna, eles têm dificuldades de se adaptar, gerando dificuldades econômicas”,
diz o professor.
“A
situação aqui da foz está bem crítica, principalmente se considerarmos o
aspecto humano. Tem cidades próximas à foz que já têm notícias do aumento nos
casos de pressão arterial por causa do consumo de água salgada”
Paulo
Ricardo Petter Medeiros
Professor
do IGDEMA/Ufal
São
453 municípios com sede na região da bacia do rio São Francisco, que abrigam
uma população de mais de 14 milhões de pessoas segundo o censo de 2010.
Como
a situação chegou a esse ponto
Barragem
de Sobradinho, em Pernambuco. Água represada ajuda a assorear os rios.
Segundo
Medeiros, os problemas com a vazão do rio têm duas origens principais: a falta
de chuva e o mau gerenciamento do fluxo d’água nas hidrelétricas. Para ele, o
projeto de transposição em curso não tem impacto direto na seca.
“O
volume [de captação] da transposição quando estiver totalmente pronta é em
torno de 100 m³/s. Se a vazão do rio estiver normal, em torno de 2.000 a 2.500
m³/s, o retirado não é grande coisa. Mas como agora está em 600 m³/s, retirar
100 m³/s faz falta. Isso depende da vazão total do rio”, disse.
Ao
Nexo, o presidente do Comitê da Bacia Hidrográfica do São Francisco, Anivaldo
Miranda, concorda que a má gestão é ponto central na construção desse quadro,
mas acredita que o controle da vazão é bem gerido desde 2013, quando a seca
começou. Segundo ele, “os instrumentos de gestão hídrica não foram implantados,
sobretudo pelos governos estaduais”.
O
presidente do CBHSF disse que os comitês locais de gestão dos recursos
hídricos, que incluem setores da sociedade civil, do governo e das empresas que
utilizam as águas represadas para fins econômicos, “estão morrendo por falta de
recursos e de vontade política”, o que indica o descaso com a participação da
sociedade civil na administração desses recursos.
Região
normalmente coberta por 6m de água do Rio São Francisco, completamente seca, já
em 2014.
Miranda
ressalta ainda a falha na criação de sistemas de outorga do direito de uso das
águas da bacia, a insuficiência dos planos de gestão hídrica das bacias dos
afluentes e a ausência de um sistema de cobrança pelo uso das águas
subterrâneas, que permite a retirada abusiva de recursos do lençol freático.
A
degradação do lençol freático mata as nascentes — um exemplo é o rio Jequitaí
(MG), perene, que hoje está completamente seco. A retirada da mata auxiliar
ainda aumenta o assoreamento, uma vez que a vegetação conseguiria segurar os
detritos que vão para o rio.
Segundo
estudo de 2013 divulgado pela ANA, os biomas da caatinga e do cerrado têm pouco
mais de 50% remanescentes na região da bacia. Já da Mata Atlântica originária,
só resta 29%.
O
projeto de revitalização da bacia
Trabalhadores
abastecem caminhão-pipa com água desviada do Rio São Francisco.
Tramita
na Comissão de Meio Ambiente do Senado Federal o projeto de lei 345/2014, de
autoria de Kaká Andrade (PDT-SE, atual segundo suplente de Eduardo Amorim, do
PSDB), que prevê a destinação de recursos federais para revitalizar a calha do
rio e preservar os empregos que dependem de suas águas.
O
texto já foi aprovado na Comissão de Assuntos Econômicos, com voto favorável do
relator Otto Alencar (PSD-BA), e sugere ainda que os recursos acumulados com a
privatização da Eletrobrás sejam destinados para um fundo de revitalização da
bacia do São Francisco.
Além
da proposta do legislativo, o governo de Michel Temer lançou em agosto de 2016
o “Plano Novo Chico”, que facilita a destinação de verba federal para ações nas
áreas de meio ambiente, saneamento e infraestrutura na região da bacia. O plano
também inclui criar novas áreas de proteção ambiental, melhorar o saneamento e
aumentar a fiscalização.
A
iniciativa não é inédita. Pelo contrário, segundo levantamento da Folha de
S.Paulo, a verba destinada para ações de revitalização da bacia durante o
governo de Michel Temer fica abaixo da de 2015, ainda no mandato de Dilma
Rousseff. A previsão para 2017 é, também, menor que a de 2016.
R$
30 bilhões
até
2025 é o orçamento solicitado ao governo federal pelo CBHSF para garantir a
revitalização completa da bacia
O
CBHSF ainda advoga, segundo Medeiros, pela mudança na matriz energética da
região — pede o uso de energia solar na região do semi-árido e mais turbinas de
geração eólica, para fazer dos reservatórios, hoje dedicados exclusivamente às
hidrelétricas, águas de uso misto. (nexojornal)
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