São Paulo: Número de
tempestades registrado nos últimos 20 anos já é maior do que nas seis décadas
anteriores.
Dados de duas estações
meteorológicas confirmam o que muitos paulistanos já vêm sentindo na pele há
alguns anos: a ocorrência de eventos climáticos extremos na Região
Metropolitana de São Paulo (RMSP) aumentou muito nas últimas duas décadas.
O fenômeno mais impactante é
o aumento da intensidade das chuvas. O número de eventos de precipitação
extrema, com chuva acima de 100 milímetros/dia, já é maior nos últimos 20 anos
do que no acumulado das seis décadas anteriores — e olha que 2020 está só
começando. O evento mais recente desse tipo foi a tempestade de 114 milímetros
que paralisou São Paulo em 11/02/20, causando deslizamentos e inundações em
várias regiões da metrópole. Isso equivale a metade da quantidade de chuva
esperada para todo o mês (cerca de 220 mm, em média), despencando sobre a
cidade num único dia.
Os dados são da estação
meteorológica que o Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas
(IAG) da USP mantém em operação desde 1932 no Parque de Ciência e Tecnologia
(CienTec), em frente ao Zoológico de São Paulo, no bairro da Água Funda —
compilados por um grupo de pesquisadores para um estudo que acaba de ser publicado
na revista Annals of the New York Academy of Sciences.
Os números não deixam dúvida
sobre o aumento da ocorrência de tempestades na metrópole paulistana: foram 11
acima de 100 mm nos últimos 20 anos (período 2001-2020), comparados a 10 na
somatória dos 60 anos anteriores (período 1941-2000). No caso das chuvas acima
de 80 mm (também consideradas extremas), o aumento é ainda mais chocante: foram
25 eventos nos últimas duas décadas, comparados a 19 nas seis décadas
anteriores.
Dados de outra estação meteorológica, operada
pelo Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet), no Mirante de Santana, contam
uma história semelhante, ainda que com números distintos — o que é normal,
visto que uma estação está na zona norte e outra, na zona sul da cidade,
sujeitas a condições ambientais e meteorológicas distintas. Nesse caso, as
mudanças começam a se destacar um pouco mais cedo ainda, com um aumento
expressivo da ocorrência de tempestades com mais de 80 mm de chuva a partir da
década de 1990 (veja gráfico abaixo).
O volume total de chuvas que
caem sobre a RMSP também vem aumentando gradualmente nos últimos 80 anos: da
faixa de 1.000 a 1.500 mm/ano nas décadas de 1940 e 1950 para 1.500 a 2.000
mm/ano, nos últimos 20 anos. Este mês, por exemplo, é o fevereiro mais chuvoso
dos últimos 77 anos em São Paulo, segundo o Inmet. Mas isso não é o pior. Mais
preocupante do que o aumento da precipitação acumulada é como essas chuvas se
distribuem no tempo e no espaço ao longo de cada mês.
Se chove um pouco todo dia,
tudo bem. Era o que acontecia antigamente, quando São Paulo ainda fazia jus ao
apelido de “terra da garoa” — por causa da tradicional chuvinha que caía nos
fins de tarde. O problema maior é quando a chuva desaba concentrada, em grandes
volumes, na forma de tempestades. Em vez de 200 milímetros distribuídos em
várias parcelas ao longo de 30 dias, por exemplo, agora chove 100 milímetros
num dia, 80 milímetros em outro, e 20 milímetros no restante do mês —
resultando num cenário de poucos dias com muita chuva, intercalados por muitos
dias com pouca ou nenhuma chuva. Aí mora o perigo, pois é nesses dias de muita
chuva que acontecem enchentes e deslizamentos que matam pessoas, desabrigam
famílias e destroem a infraestrutura da cidade.
Vários estudos realizados nos
últimos anos vêm apontando para um aumento de precipitação sobre grandes
centros urbanos do Sudeste brasileiro — incluindo São Paulo, Campinas, Santos e
Rio de Janeiro —, assim como um aumento do número de dias secos consecutivos,
“sugerindo que os eventos de chuva intensa estão concentrados em menos dias,
com períodos mais longos de tempo seco entre eles”, escrevem os pesquisadores.
O novo estudo é uma iniciativa do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de
Desastres Naturais (Cemaden), coordenado pelo meteorologista José Marengo, com
apoio do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), Inmet e IAG-USP.
“A temperatura média da Terra está aumentando,
isso é um fato incontestável; e a atmosfera está reagindo a esse aquecimento
por meio de extremos”, diz o pesquisador Tércio Ambrizzi, professor titular do
IAG e coautor do trabalho. Quando um sistema é tirado do seu equilíbrio
natural, diz ele, isso gera oscilações para cima e para baixo. No caso do
sistema climático, essas oscilações resultam em extremos de temperatura (tanto
de calor quanto de frio) e de precipitação (muita ou pouca chuva). A grande
estiagem de 2013-2014, que quase secou todos os reservatórios de água da RMSP,
também faz parte desse cenário, segundo o pesquisador.
Tércio Ambrizzi é professor
titular do Departamento de Ciências Atmosféricas do IAG-USP.
“À medida que a temperatura
aumenta, aumenta também o gradiente dos extremos”, alerta Ambrizzi. A
tendência, portanto, é que a situação piore ainda mais nos próximos anos e
décadas — considerando que a tendência de aquecimento do planeta não deve ser
revertida tão cedo.
O aquecimento global, causado
pelo aumento das emissões de gases do efeito-estufa para a atmosfera, está em
curso desde meados do século 19, deflagrado pela Revolução Industrial, mas se
acelerou principalmente a partir da década de 1980, por conta do aumento no uso
de combustíveis fósseis e na derrubada de florestas tropicais. Os últimos cinco
anos (2015 a 2019) foram os mais quentes do Planeta já registrados pelo homem.
Péssima notícia para quem
vive nas cidades — mais de 80% da população brasileira —, em especial para as
populações mais pobres e vulneráveis, que vivem nas regiões de maior risco para
enchentes e deslizamentos. Afinal, as chuvas não matam por conta própria. “Um
evento de precipitação extrema não é um desastre natural por si só”, dizem os
pesquisadores. Os chamados “desastres naturais”, na verdade, resultam de uma
combinação de fatores climáticos, meteorológicos, urbanos, econômicos e
sociais. Ou seja, são também “desastres antrópicos”, resultantes de ações
humanas, e não apenas do clima. Os deslizamentos de terra só matam pessoas
porque essas pessoas são forçadas a viver em áreas de risco, onde não deveriam.
As ruas só enchem de água porque os rios foram canalizados e as cidades,
impermeabilizadas, cobertas de asfalto e concreto.
É verdade que tempestades,
enchentes e deslizamentos sempre existiram e continuarão a existir, como sempre
fazem questão de ressaltar os céticos das mudanças climáticas. O que mudou
foram a frequência e a intensidade com que esses eventos estão ocorrendo, com
um poder cada vez maior de destruição. E isso, garante Ambrizzi, é uma anomalia
gerada pelo homem.
Efeitos climáticos globais,
segundo ele, são exacerbados por fatores urbanos locais, como o efeito “ilha de
calor”, gerado pelo excesso de concreto e pelo déficit de áreas verdes nas
cidades. O aumento da temperatura média da Terra no último século foi de 1°C -
o que já é muito grave -, mas na cidade de São Paulo esse aumento chega a 4°C,
por causa dessa “ilha de calor”. O concreto absorve calor durante o dia e
libera essa energia térmica durante a noite, aumentando tanto a temperatura
diurna quanto a noturna. Isso favorece a formação de nuvens mais profundas, que
produzem chuvas mais fortes e mais concentradas sobre a cidade.
É por isso, também, que São Paulo não é mais a
terra da garoa: “A brisa que trazia a garoa no fim de tarde continua entrando,
mas a umidade que vem junto com ela agora evapora antes de cair na cidade”,
explica Ambrizzi. “A própria cidade contribui para aumentar sua vulnerabilidade
climática”, resume o professor.
Mudança climática nas
cidades: “Precisamos ficar preparados para o pior”
“O Estado de São Paulo e a
Região Metropolitana de São Paulo estão diante de um grande desafio”, escrevem
os pesquisadores. “O grande objetivo, efetivamente, é proteger a população”,
concluem eles, ressaltando a necessidade de mais pesquisas, mais
responsabilidade e melhor planejamento por parte dos gestores públicos frente
às mudanças climáticas que já estão em curso — e que só devem piorar nos
próximos anos.
“É fundamental entender a
dinâmica subjacente da variabilidade climática em suas várias escalas
espaço-temporais na RMSP. Com isso, a vulnerabilidade climática pode ser
avaliada e estratégias de adaptação propostas”, alertam os pesquisadores. E
para que isso possa ser feito, por fim, é preciso fortalecer as instituições de
pesquisa – como INPE e Cemaden – que são responsáveis por esse trabalho, mas
que tiveram seus orçamentos severamente reduzidos nos últimos anos, apesar do
aumento na ocorrência de eventos extremos, ressalta Marengo, do Cemaden.
Criado em 2011, em resposta
aos eventos de chuva extrema que mataram quase mil pessoas na região serrana do
Rio de Janeiro no início daquele ano, o Cemaden combina informações
meteorológicas com dados ambientais para emitir alertas de risco de desastres
geo-hidrológicos (como enchentes, enxurradas e deslizamentos de terra) para a
Defesa Civil do Ministério de Desenvolvimento Regional. “As Defesas Civis
emitem os alertas para as populações, que poderão ser evacuadas caso elas morem
em áreas de risco”, explica Marengo. Além disso, diz ele, o centro atua nas
escolas, para educar a população, e treina equipes da Defesa Civil “para
minimizar a perda de vidas humanas e de propriedades em todo o Brasil”.
Também assinam o estudo os
pesquisadores Lincoln Alves (CCST/INPE), Andrea Young (Cemaden), Naurinete
Barreto (CCST/INPE) e Andrea Ramos (Inmet). (ecodebate)
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