Para compreender as causas do
fracasso do Acordo de Paris e para reagir a ele, é necessária uma agenda
política à altura da emergência climática.
Supondo que as emissões
atinjam o pico e diminuam abaixo dos níveis atuais [2015] até 2030, e continuem
a partir de então em um declínio muito mais acentuado, o que seria
historicamente sem precedentes, mas consistente com um cenário de mitigação
ambicioso padrão (RCP2.6), tal suposição resulta em uma faixa provável de
aquecimento com pico de 1,2°C a 2°C acima de meados do século XIX. Se as
emissões de CO2 forem continuamente ajustadas ao longo do tempo para
limitar o aquecimento em 2100 a 1,5°C, com ambiciosa mitigação não-CO2,
é improvável que as emissões líquidas cumulativas futuras de CO2
sejam inferiores a 250 GtC e superiores a 540 GtC. Portanto, limitar o
aquecimento a 1,5°C ainda não é uma impossibilidade geofísica, mas
provavelmente exigirá o cumprimento de promessas reforçadas para 2030, seguidas
de uma mitigação desafiadoramente profunda e rápida. O fortalecimento das
reduções de emissões de curto prazo seria um escudo contra uma alta resposta
climática ou contra taxas de redução subsequentes economicamente, tecnicamente
ou politicamente inviáveis.
Richard Millar e colegas afirmavam, em suma, que reduções radicais das emissões de gases de efeito estufa (GEE) ofereceriam uma probabilidade de 66% de manter o aquecimento a menos de 0,6°C acima das temperaturas médias de 2015. Lembremos que em 2012 o aquecimento médio global girava em torno de 0,85°C (0,65 – 1,06°C) acima de 1880, conforme apontado em 2013 pelo quinto Relatório de Avaliação do IPCC (Painel Intergovernamental sobre as Mudanças Climáticas). Segundo dados do Goddard Institute for Space Studies (GISS/NASA), esse aquecimento viria a atingir 1°C em 2014 em relação ao período de referência 1880-1920. Os resultados da pesquisa de Millar e colegas pareciam, portanto, trazer ótimas notícias e não surpreende sua grande repercussão na imprensa.
É verdade que a comunidade científica recebeu o trabalho de Millar e colegas com reticências, que procurei registrar em dois artigos também de 2017, baseando-me sobretudo numa revisão de Jeff Tollefson, um articulista da Nature. Em todo o caso, a proposta do trabalho era alentadora: se as emissões de GEE diminuíssem ao longo do terceiro decênio do século abaixo de seu nível de 2015 e continuassem a decrescer vigorosamente após 2030, nada nas leis da física excluía ainda a possibilidade de se conter o aquecimento médio global em 1,5°C acima do período pré-industrial (1850-1900). Em 2019, cinco dos dez autores do artigo de 2017 voltaram à carga em outro trabalho, cujo primeiro autor era Christopher Smith, da University of Leeds. Publicado na revista Nature Communications, o artigo se intitulava: “A atual infraestrutura dos combustíveis fósseis não nos condena ainda a um aquecimento de 1,5°C”. Sua tese principal reforçava a ideia de que o limite de aquecimento de 1,5°C ainda estava ao nosso alcance:
Focamos no aquecimento
comprometido a partir dos atuais ativos de combustíveis fósseis. Aqui mostramos
que, se a infraestrutura com uso intensivo de carbono for descontinuada no
final de sua vida útil a partir do final de 2018, há uma chance de 64% de que o
pico de aumento da temperatura média global permaneça abaixo de 1,5°C. Atrasar
a mitigação até 2030 reduz consideravelmente a probabilidade de conter o
aquecimento em 1,5°C, mesmo que a taxa de diminuição do uso de combustíveis
fósseis seja acelerada. Embora os desafios estabelecidos pelo Acordo de Paris
sejam assustadores, indicamos que 1,5°C permanece possível e é alcançável com
redução de emissões ambiciosa e imediata em todos os setores.
1. A segunda fase da aceleração
do aquecimento após 2015
Por controversa que fosse a
tese de que um aquecimento médio global limitado a 1,5°C estava ainda no rol
das possibilidades geofísicas era talvez sustentável até 2019. Continuar
sustentando essa tese em 2022 seria totalmente descabido. Como dito acima,
vivemos hoje em outro planeta. Secas, enchentes, picos de calor, incêndios,
crises sanitárias e poluição, resultando em aumento da insegurança alimentar,
inclusive nos países ricos, tornam-se agora fenômenos cuja magnitude não tem
precedentes nos registros históricos. Tais catástrofes tornam-se dia a dia mais
intensas, mais frequentes e potencialmente mais letais, a exemplo do que
ocorreu no verão de 2021 e no verão atual, no hemisfério norte. Seus impactos
ocorrem agora em quase todas as latitudes do planeta, matando, ocasionando
sofrimento inaudito e destruindo infraestrutura de modo generalizado. Esses
impactos estão agora em uma curva muito mais agressiva de aceleração, e é
importantíssimo atentar para o fato de que a agressividade dessa curva não foi
prevista pelos modelos.
Não foi suficientemente destacada a afirmação do Sexto Relatório do IPCC: “A extensão e a magnitude dos impactos das mudanças climáticas são maiores do que as estimadas em avaliações anteriores (alta confiabilidade)”. De fato, ninguém previa que em 2021 o Canadá conheceria uma temperatura de 49,6°C. Não se previa tampouco que em 2022 grandes rios perenes como o Pó, o Reno, o Loire, o Ródano, o Danúbio, o Tâmisa, o Yang-Tsé na China (o maior rio da Ásia) e o Colorado nos EUA, entre muitos outros grandes rios, chegassem a níveis tão baixos ou viessem mesmo a secar completamente em longos trechos, comprometendo a navegação, o resfriamento dos reatores nucleares e o abastecimento de água. Ninguém previu, enfim, que os incêndios nos países da União Europeia em 2022 devastariam mais de 700 mil hectares até 19/08/2022, com prognósticos de 1 milhão de hectares queimados até o final do ano. A área queimada nesses países até meados de agosto é o dobro da área queimada na média do período 2006-2021, como mostra a Figura 1.
Figura 1 – Área queimada (ha) nos países da União Europeia até meados de agosto de 2022 (vermelho), média e áreas mínimas e máximas queimadas do período 2006-2021.
Na Rússia, a situação dos
incêndios piora ano a ano. Segundo dados oficiais, entre 1º de janeiro e
31/07/2022, ao menos 3,2 milhões de hectares de florestas foram consumidos pelo
fogo e o governo russo decretou estado de emergência em sete regiões do país.
Uma das causas principais desse agravamento generalizado dos desequilíbrios climáticos radica no fato de que desde 2016 evidencia-se uma segunda fase de aceleração do aquecimento, estampada na Figura 2.
Figura 2 – Temperaturas médias superficiais, terrestres e marítimas combinadas, em relação ao período de base 1880-1920, baseadas nos dados do GISTEMP. Médias anuais: curvas com quadrados pretos (azul); curvas médias a cada 11 anos (vermelho) e melhor tendência linear entre 1970 e 2015 (verde), com aquecimento médio de 0,18°C por década. As flechas assinalam os efeitos dos 2 “Super El Niños” de 1998 e 2016.
Na primeira fase da
aceleração do aquecimento, este evoluiu de uma taxa de 0,07°C por década
(1880-2018) para 0,18°C por década (1970-2015). A segunda fase dessa aceleração
mostra um salto para a taxa atual de 0,32°C por década, com tendência para uma
taxa média de 0,36°C por década entre 2016 e 2040. A Tabela 1 resume essas duas
fases da aceleração do aquecimento:
Tabela 1 – Taxas de aquecimento por década em três períodos (1880-2040), segundo a National Oceanic and Atmospheric Administration (NOAA) e o Earth Institute (EI).
Períodos |
1880/2018 |
1970/2015 |
2016/2040 |
Aquecimento/década |
0,07°C
(NOAA) |
0,18°C
(NOAA/EI) |
0,36°C
(EI) |
O planeta que suscitou os trabalhos de Millar, Smith e colegas passava por um período lento de aquecimento – entre 1999 e 2014 –, período este chamado por vezes de “hiato” no aquecimento global. Hoje, a realidade é outra. Como afirmam James Hansen e Makiko Sato: “Nossa expectativa é que a taxa de aquecimento global para o quarto de século 2015-2040 seja cerca do dobro da taxa de aquecimento de 0,18°C por década durante o período 1970-2015, a menos que se tomem medidas apropriadas”. Isso significa que conter o aquecimento em 1,5°C, tal como se propunham em 2015 os signatários do Acordo de Paris, não apenas se tornou impossível; significa também que esse limite deve ser rompido muito antes do previsto, ou seja, ainda neste terceiro decênio do século e talvez mesmo já no próximo El Niño. Em fevereiro/2022, Nafeez Ahmed publicou um artigo intitulado: “As promessas da COP26 terão consequências catastróficas, diz o ex-diretor da ciência climática da NASA”. Nele, Ahmed resume bem essa nova realidade, expressa em quatro declarações de James Hansen, segundo as quais não apenas ultrapassaremos o limiar de aquecimento de 1,5°C em algum momento deste decênio, como já estamos geofisicamente condenados a um aquecimento de ao menos 2°C:
1. “Não há chance de manter o
aquecimento global abaixo de 1,5 °C”. (“There is now no chance whatever of
keeping global warming below 1.5°C”)
2. “O teto de 1,5°C no
aquecimento global será rompido nesta década”. (“The 1.5°C global warming
ceiling will be breached this decade”)
3. “Um aquecimento global de
ao menos 2°C está agora incorporado ao futuro da Terra”. (“Global warming of at
least 2°C is now baked into Earth’s future”)
4. “Este nível de aquecimento
ocorrerá até meados do século”. (“That level of warmth will occur by
mid-century.”)
2. 2020, a data perdida
Para se manter uma chance qualquer de evitar um aquecimento médio global superior a 1,5°C teria sido necessário iniciar o processo de redução das emissões de GEE até 2020. Essa data emerge de um consenso científico consolidado em 2017 num artigo firmado por Christiana Figueres e por cientistas do Potsdam Institute for Climate Impact Research (PIK) e do Climate Tracker Initiative, entre outros, que o intitularam “Três anos para salvaguardar nosso clima”. Cientes dessa data limite, Christiana Figueres e outras lideranças climáticas criaram já em 2016 a “Missão 2020”, cujo objetivo era generalizar a percepção de que o ano de 2020 era, de fato, a data limite para o pico das emissões de GEE: “Se a proposta é atingir a neutralidade carbono até 2050, então precisamos virar o jogo até 2020”. No mesmo site da “Missão 2020”, Thomas Stocker, codiretor do IPCC (2008-2015) reforçava o mesmo veredito:
Mitigação retardada e
insuficiente impossibilita limitar o aquecimento global permanentemente. O ano
de 2020 é crucial para a definição das ambições globais sobre a redução das
emissões. Se as emissões de CO2 continuarem a aumentar além dessa
data, as metas mais ambiciosas de mitigação tornar-se-ão inatingíveis.
Já em 2017, Jean Jouzel,
ex-vice-presidente do IPCC, repisava a data limite de 2020 em uma entrevista:
“Para manter alguma chance de permanecer abaixo dos 2°C é necessário que o pico
das emissões seja atingido no mais tardar em 2020”. Em meados de 2019, Hans
Joachim Schellnhuber, fundador e diretor emérito do Potsdam Institute for
Climate Impact Research, voltava ao mesmo ponto: “A matemática do clima é
brutalmente clara: se é certo que o clima não pode ser curado em alguns poucos
anos, ele pode ser fatalmente ferido por negligência até 2020”. Finalmente, em
uma declaração de abertura da COP25, em dezembro de 2019, Hoesung Lee, diretor
do IPCC, alertava os delegados: “Permitam-me lembrá-los que nossas avaliações
mostram que a estabilização das mudanças climáticas requer que as emissões de
gases de efeito estufa atinjam seu pico no próximo ano”.
Justamente em 2020, a
pandemia derrubou as emissões globais de CO2 relacionadas à geração
de energia em 5,2%, segundo a Agência Internacional de Energia (AIE), e, de
forma geral, em 6,4%. Essa queda das emissões era sem precedentes e suscitou
esperanças de que as emissões houvessem atingido um pico. Esperanças totalmente
infundadas, porque o aumento das emissões de GEE é inevitável em um sistema
econômico cuja razão de ser é a acumulação do capital, de modo que qualquer
desestímulo externo, seja ele uma crise econômica, uma guerra ou uma pandemia,
age de modo apenas efêmero sobre esse sistema. Assim sendo, em 2021 as emissões
de GEE deram o maior salto após o de 2010, chegando quase aos níveis de 2019, e
as emissões de 2022 podem já ultrapassar as de 2019. No que se refere às
emissões de CO2 associadas à geração de energia, elas alcançaram,
segundo a AIE, “seu mais alto nível na história em 2021”.
3. A sociofísica do
aquecimento global
Seria interessante saber se
Richard Millar, Chris Smith e colegas, após cinco anos e quase 300 GtCO2-eq
emitidas desde 2018, ainda mantêm sua hipótese de que um aquecimento médio
planetário limitado a 1,5°C não é ainda uma “impossibilidade geofísica”. Não
parece provável que a mantenham, mas, a bem da verdade, sua resposta importa
pouco porque a questão da possibilidade ou impossibilidade geofísica de conter
o aquecimento global em certo patamar, seja ele 1,5°C ou 2°C, nunca foi a
questão central. A questão central, quando se fala em níveis de aquecimento
ainda evitáveis ou já inevitáveis, não é tanto entender as leis da física, mas
entender as interações entre a física, o sistema econômico e a ordem jurídica
que garante a permanência desse sistema. O Brasil é um caso exemplar de
interação entre física e sociedade.
Aqui, a destruição de todos
os biomas por incêndios reflete claramente a crise climática, dada as secas que
assolam recorrentemente o país, mas essa destruição resulta sobretudo da
atividade criminosa do agronegócio, que de há muito controla o Congresso
Nacional e se tornou o maior motor da ruína do país. Segundo o MapBiomas,
apenas nos primeiros sete meses do ano de 2022, quase 3 milhões de hectares
(2.932.972 ha) foram consumidos por queimadas. “Na Amazônia, o fogo atingiu uma
área de 1.479.739 hectares, enquanto que no Pampa foram 28.610 hectares
queimados entre janeiro e julho de 2022. Nesse período, foi registrado um
aumento de 7% (ou mais de 107 mil hectares) na Amazônia e de 3372% no Pampa
(27.780 ha)”.
Apenas para dar uma ideia da
magnitude da tragédia climática e dos crimes impunes do agronegócio, a área
queimada no Brasil entre janeiro e julho de 2022 é maior que a área do estado
de Alagoas (27,8 mil km2). Nessa interação entre física e sociedade,
o lado socioeconômico e político sempre foram mais decisivos do que o lado
geofísico e tal é a razão por que a resposta à questão do aquecimento
inevitável em cada momento histórico deve emergir de um diálogo entre saberes.
Para fazer avançar esse novo
e imprescindível diálogo, os economistas devem entender que suas fórmulas de
crescimento econômico “sustentável” só servem para agravar o problema, pois
ainda muito raros são os que admitem que a economia é apenas um subsistema da
biosfera e, em geral, do sistema Terra, o qual de há muito lhe dita, mas em
vão, seus limites. Os sociólogos e politólogos, por sua vez, devem sair de suas
zonas de conforto e se alfabetizar em ciências do sistema Terra, pois nenhum
programa político pode mais ignorar essas ciências. Não faz sentido, por
exemplo, lutar por uma reforma agrária democrática, ignorando que o sistema
climático está muito rapidamente inviabilizando a agricultura. Por isso, todo
programa político digno desse nome deve hoje ser um programa sociofísica, vale
dizer, um programa que associe aceleração da mudança social e desaceleração
igualmente drástica da mudança do clima, da perda de biodiversidade e da
poluição.
De seu lado, os cientistas
precisam entender o absurdo de preconizar a mitigação das emissões de GEE nos
quadros de uma civilização termo fósseis, destruidora e poluidora de habitats e
dos organismos. E entender esse absurdo implica, para eles, assumir posições
políticas radicalmente anticapitalistas. Pois o funcionamento elementar do
capitalismo globalizado implica a disjuntiva crescimento-ou-crise, e ambas as
situações só fazem aumentar as pressões antrópicas sobre o sistema Terra. A
recente “Carta aberta a todos os cientistas do clima” escrita por um eminente
cientista como Bill McGuire, exortando-os a assumir suas responsabilidades
políticas e a dizer as coisas como eles sabem que elas de fato são, é apenas o
último exemplo de uma mudança de atitude que precisa se generalizar:
Enquanto nosso mundo está indo aos poucos para o inferno, muitos de vocês, estudando e registrando sua morte, nada tiveram a dizer sobre o assunto e permaneceram nas sombras, quando era necessário que monopolizassem os holofotes. A justificativa comum é sempre a mesma: desculpas murmuradas sobre a necessidade de objetividade, sobre como não devem se envolver em política, sobre como são apenas fieis registradores de fatos; uma mentalidade de silo que os protege de ter que tomar decisões difíceis ou se envolver com outras pessoas fora de sua zona de conforto.
4. O fracasso do Acordo de Paris
A sociofísica é a ciência –
capaz de combinar pensamento quantitativo e pensamento crítico – requerido pelo
novo planeta em que vivemos. É a ciência, em suma, do Antropoceno. À luz da
sociofísica, a questão de saber quando a meta do Acordo de Paris foi definitivamente
perdida revela-se uma falsa questão, pois essa meta nasceu inalcançável. Não
porque em 2015 a ciência do clima a desautorizasse. Ao contrário, nada na
ciência implicava então a inviabilidade intrínseca das metas do Acordo de
Paris. Mas de que serve esse Acordo e toda a ciência do clima numa sociedade em
que, apenas para dar um exemplo, os bancos privados podem canalizar trilhões de
dólares para a indústria de combustíveis fósseis após o Acordo de Paris, em
flagrante escárnio das evidências científicas e em aberto desprezo pelas
condições de possibilidade de sobrevivência das sociedades? Falamos aqui de
recursos financeiros da ordem de US$ 4,6 trilhões apenas entre 2016 e 2021,
como mostra o “Banking Climate Chaos”:
Nos seis anos desde a adoção do
Acordo de Paris, os 60 maiores bancos privados do mundo financiaram
combustíveis fósseis com US$ 4,6 trilhões, sendo US$ 742 bilhões somente em
2021. O financiamento dos combustíveis fósseis em 2021 permaneceu acima dos
níveis de 2016, quando o Acordo de Paris foi assinado. De particular
importância é a revelação de que os 60 bancos descritos no relatório
canalizaram US$ 185,5 bilhões apenas no ano passado para as 100 empresas que
mais fizeram para expandir o setor de combustíveis fósseis.
O Acordo de Paris nasceu
morto porque sempre careceu das condições sociais e políticas para ser exitoso.
Portanto, a questão decisiva nunca foi o texto do Acordo de Paris. A questão
decisiva, o que se decide hoje, é a capacidade de mudarmos radicalmente a
sociedade, de modo a frearmos o aquecimento global e a perda de biodiversidade
em níveis ainda compatíveis com a adaptação humana e de outros milhões de
espécies. O que não se pode perder de vista resume-se, enfim, a esta premissa:
o Acordo de Paris ou qualquer outro Acordo não impedirá o sistema climático de
se aquecer além de nossa capacidade de adaptação. Ele continuará se aquecendo
enquanto o capitalismo continuar a existir, e isso por duas razões:
(1) não houve, não há e não
haverá num futuro discernível, no âmbito do sistema capitalista, transição em
direção a uma matriz energética descarbonizada. Em 2000, os combustíveis
fósseis satisfaziam 86,1% da demanda global de energia primária. Em 2020, essa
porcentagem caiu para 84,3% e em 2040, segundo projeções do World Economic
Forum, os combustíveis fósseis ainda satisfarão 77% dessa demanda.
É desnecessário lembrar que,
em números absolutos (e o sistema climático infelizmente só se interessa por
números absolutos), o volume de combustíveis fósseis queimados era muito maior
em 2020 do que em 2000, e será ainda maior em 2040. Mesmo que prováveis novas
pandemias e novas crises econômicas derrubem mais uma vez esse consumo, alguém
ainda acredita, após a recuperação desse consumo já em 2021, que as emissões de
CO2 cairão pela metade em 2030, em relação a 2010, 2017 ou a
qualquer data do gênero, tal como fingem se empenhar os signatários do Acordo
de Paris? A guerra da Ucrânia foi o último pretexto para jogar pelos ares o que
restava desse Acordo e o recente “Inflation Reduction Act” de Joe Biden nos EUA
foi celebrado pela indústria fóssil.
(2) Mesmo se uma transição
energética viesse a ocorrer, ela requereria aumento momentâneo do uso de
combustíveis fósseis para a mineração dos metais necessários à construção em
escala de torres eólicas e placas fotovoltaicas mantidas os atuais patamares de
consumo energético. Portanto, a única forma de nos desviarmos da trajetória de
colapso em que avançamos com sempre maior velocidade é diminuir drasticamente o
atual nível de consumo energético global da ordem de 580 milhões de Terajoules
(0,58 Zettajoules), ou cerca de 13,8 bilhões de toneladas de petróleo
equivalente por ano. E isso supõe, é claro, outra organização social, na qual
os mais ricos diminuam drasticamente sua pegada carbono para que os mais pobres
possam ter satisfeitas suas necessidades básicas. Os ricos terão sempre
dificuldade em aceitar isso, mas devem entender que essa diminuição é a única e
última tábua de salvação não apenas de sua riqueza, mas de suas vidas.
5. O que realmente importa
A discussão sobre a data em
que o aquecimento global superará, momentânea e/ou irreversivelmente, as metas
do Acordo de Paris (1,5°C – 2°C) pode ser interessante do ponto de vista
científico, mas, para as sociedades, o que realmente importa são três fatos
centrais:
1. Para a humanidade e demais
espécies são de mínima relevância saber se sofrerão os impactos brutais de
aquecimentos iguais ou superiores a 1,5°C até 2030 ou, na melhor das hipóteses,
alguns anos depois. Ao invés de tentar determinar a que velocidade estamos nos
aproximando do caos, o que realmente importa é entender a necessidade imperiosa
de mudar de trajetória, de modo a sofrer o menor aquecimento ainda possível em
termos geofísicos.
2. Para deter e reverter a
aceleração do aquecimento em tempo hábil é necessário romper com o sistema
capitalista, consubstanciado nos sistemas energético e alimentar vigentes,
ambos globalizados e agindo em sinergia. Será preciso, em suma, desglobalizar a
economia e globalizar a política nos marcos de uma nova democracia dos
territórios e de um novo cuidado com o patrimônio natural do planeta.
3. Aos que afirmam, enfim,
não ser realista consumar essa ruptura civilizacional neste decênio, é preciso
responder que é o realismo que nos trouxe a esta encruzilhada final.
Irrealistas são os profissionais do gradualismo. Desde 1990, sucederam-se 9
Relatórios do IPCC e 26 Conferências das Partes da Convenção-Quadro da ONU
sobre as Mudanças Climáticas (UNFCCC). E malgrado esses Relatórios e
Conferências, as emissões de GEE e suas concentrações na atmosfera não cessaram
de aumentar. Entre 2012 e 2019, elas aumentaram à taxa média de 1,1% ao ano, e
isso sem contar as emissões decorrentes da mudança de uso de solo, sobretudo
desmatamento! Em 2019, elas estavam cerca de 59% mais altas do que em 1990 e
44% mais altas do que em 2000. Se o capitalismo inviabilizou desde sempre o
Acordo de Paris, o realismo acobertou e retardou ao máximo a admissão de seu
fracasso congênito. As últimas duas COPs tiveram por agenda central estabelecer
o Rulebook do Artigo 6 do Acordo de Paris e a agenda da COP 27 no Egito será
implementar os mercados de carbono, a receita mágica para transformar a
emergência climática em oportunidades de negócios.
As sociedades estão hoje
exaustivamente alertadas pela ciência sobre o que os próximos anos deste
decênio e do próximo lhes reservam. Evitar o ainda evitável requer, doravante,
que elas tomem em mãos a governança do planeta, deixando de lado os
nacionalismos militaristas. Continuar a subestimar as ameaças existenciais que
pesam sobre todas as sociedades, ricas e pobres sem distinção, equivale a se
condenar ao suicídio.
Numa palavra, sobreviver neste novo planeta supõe a construção de uma sociedade ecodemocrática, na qual os direitos humanos sejam enfim compreendidos como uma dimensão dependente e indissociável dos direitos da natureza. Todo o resto, por importante que possa parecer, é ilusão. É apenas mais um avatar do “realismo”.
*Este texto serviu de base a uma apresentação no Fórum Permanente da Unicamp, A necessária aproximação da Engenharia com as Ciências Humanas, realizado em 18 e 19/08/2022.
Luiz Marques é professor
livre-docente do Departamento de História do IFCH /Unicamp. Pela editora da
Unicamp, publicou Giorgio Vasari, Vida de Michelangelo (1568), 2011 e
Capitalismo e Colapso ambiental, 2015, 3a edição, 2018. Coordena a coleção
Palavra da Arte, dedicada às fontes da historiografia artística, e participa
com outros colegas do coletivo Crisálida, Crises SocioAmbientais Labor Interdisciplinar
Debate & Atualização (crisalida.eco.br).
(ecodebate)
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