Há quase duas décadas se
dedicando a estudar o comportamento do fogo na Amazônia a diretora de Ciência
do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), Ane Alencar, monitora e
estuda a relação entre mudança do uso da terra, incêndios florestais e clima.
A Casa Ninja Amazônia, rede
da Mídia Ninja, perguntou à cientista de fogo, o que é preciso fazer para mudar
a realidade da devastação ambiental causada pelo fogo.
Para reduzir o fogo do Brasil
é preciso que algumas medidas sejam tomadas. A principal, eu diria, seria
combater o desmatamento. O fogo está intimamente relacionado com o
desmatamento. O fogo é usado na etapa final do desmatamento, quando as árvores
derrubadas são queimadas e convertidas em cinzas, preparando o solo para o
plantio, principalmente, de gramíneas. Sendo assim, reduzir o desmatamento
significa também reduzir o fogo.
Um segundo ponto é a garantia
de apoio a programas ou iniciativas de boas práticas na agropecuária de forma a
reduzir o fogo como ferramenta de manejo.
Ela exemplifica que no caso
de um sistema de pecuária extensiva em áreas de pasto plantado, que não é
nativo, e representa grande parte da pecuária praticada na Amazônia, o uso do
fogo é constante. Isso acontece, pois o gado é solto de qualquer forma em áreas
muito grandes de pasto e isso acaba favorecendo o pisoteio e sobre pastejo em
lugares mais acessados e mais agradáveis para o gado. Essas áreas acabam tendo
o solo mais expostos favorecendo o crescimento de plantas e arbustos não
desejável para o consumo do gado deixando o pasto com cara de “sujo”.
“O fogo é a principal
ferramenta utilizada em um pasto mal manejado. Ele acaba sendo a forma mais
fácil e barata de “limpar” as plantas não palatáveis e revigorar o pasto para o
gado”.
Então, segundo Ane, se o
rebanho for dividido em pastos menores, fazendo a rotação entre estes pastos em
um curto período de tempo, isso evitará que haja sobre-pastejo irregular, que o
solo apareça e que as plantas indesejáveis para o gado não se multipliquem.
“Só que para que esse manejo
aconteça os produtores precisam de incentivos, como investimento em cerca para
compartimentar melhor o pasto e favorecer a rotação e mais mão de obra para dar
conta de fazer a rotação. O retorno é maior e o fogo reduz consideravelmente da
paisagem”.
Segundo a cientista, o grande
vilão do fogo na Amazônia é mesmo o desmatamento e o que se estabelece
pós-desmatamento.
Uma floresta média na
Amazônia tem em torno de 260 toneladas de biomassa, podendo alcançar mais que
isso em algumas partes da região. Isso significa que, quando essa quantidade de
biomassa é derrubada tem que haver uma forma mais eficiente de transformar esse
material em cinzas para nutrir o solo. “Essa forma é o fogo. Sendo assim, uma
vez que uma floresta é derrubada, pode contar que ela será queimada, e, às
vezes, uma só queimada não é suficiente para queimar essa área”.
Já sobre a diferença entre queimadas e incêndios, Ane diz que a queimada resulta de uma ação intencional, enquanto o incêndio, é algo que sai do controle, de maneira acidental. Não estava previsto para queimar. Nesse caso o fogo decorrente das queimadas em áreas recém desmatadas ou da limpeza de pastagens, acabam sendo fontes para incêndios florestais, estes cada vez mais frequentes.
Desmonte de crime organizado na Amazônia é desafio do próximo governo
Sob a iminência do fim de um
governo marcado pelo desmonte ambiental, perguntamos à Ane quais deveriam ser
as medidas para reverter o dano gerado nos últimos anos. Ela desabafa:
“Imagina! A gente vai
construir uma casa, dependendo do tamanho da casa tem gente que demora anos
para construí-la. Aí vem um furacão, um terremoto e rapidamente destrói isso
tudo. Isso parece ser o que aconteceu com a política ambiental no Brasil
recentemente. Todo o esforço de construção da governança ambiental que começou
a ser construído a partir da Eco 92 e culminou com a redução de cerca de 80% do
desmatamento entre 2005 e 2012, foi posto a prova e desconstruído”.
Em sua opinião, mesmo com um
governo mais progressista – que ela espera que seja isso que aconteça -, vai
ser difícil reconstruir a casa. “Até porque tem coisas que se estabeleceram na
Amazônia que não existiam lá com tanta força antes”, como o crime organizado.
“O crime organizado está mais
forte na Amazônia, e isso vai ser difícil combater em curto prazo. Hoje ele
ocupa terras de forma irregular e as vende ilegalmente como uma de suas
estratégias de negócio, junto com a exploração madeireira ilegal, garimpo
ilegal, drogas. Hoje parece ser bem menos arriscado investir em práticas
ilegais na Amazônia, infelizmente”. Então, ela espera que o próximo governo dê
o tom, faça uma força-tarefa para interromper as ações dessas quadrilhas.
“Elas têm ocupado a Amazônia
de forma descabida, e um choque de governança nessas quadrilhas será um alerta
para quem está agindo ilegalmente. Para parar de agir assim e desestimular
outros grupos não tão organizados a agirem de forma ilegal também”.
Ane avalia que antes desse
governo o país estava focado em discutir uma agenda positiva. “De como podemos
fazer melhor, como podemos engajar mais pessoas em práticas de uso da terra
mais sustentáveis, mas infelizmente retrocedemos de uma agenda propositiva para
uma agenda reativa. Talvez demore um pouco, mas é possível trazer de novo as
pessoas para o lugar aonde paramos”.
Fogo experimental em laboratório a céu aberto
Pesquisa passou por várias fases: do uso experimental do fogo à observação da resiliência da floresta.
Ane coordena um grupo de
pesquisa que atua em uma estação que fica em uma fazenda no município de
Canarana, no norte de Mato Grosso. É lá que esse grupo de pesquisadores têm
estudado as características do fogo no bioma. A pesquisa que começou em 2004 já
passou por várias fases, do uso experimental do fogo à observação da
resiliência da floresta.
“Nesse laboratório a céu
aberto, tivemos a oportunidade de testar algumas hipóteses”. Ela conta que
foram separados três blocos de 50 hectares de floresta submetidos a variadas
condições para testar, entre outras hipóteses, a resiliência ao fogo.
“Como se comporta uma
floresta queimada em situação de seca extrema, ou de queimas consecutivas, se a
borda queima mais que o interior, se o uso da terra vizinho influencia no tipo
e intensidade de fogo afetando as florestas adjacentes. Essas são algumas
perguntas que o grupo de pesquisa tem se debruçado para responder”.
Além de condições diversas,
foram realizadas análises com base nos tipos de árvores, densidade, tamanho,
plantas do sub-bosque e espécies afetadas sob as diversas condições de fogo.
“Medimos as emissões de gases do efeito estufa, o efeito dessas queimadas na
quantidade de água e nitrogênio no solo, a taxa de evapotranspiração,
diversidade de espécies. Medimos tudo antes e depois do fogo experimental”.
Seria difícil uma pesquisa nesses moldes sem o uso experimental do fogo pois
cientistas levariam muito mais tempo para detectar o impacto das florestas
queimadas múltiplas vezes.
Na estação de pesquisa, uma
parcela de floresta era queimada todo ano; outra a cada três anos e uma
terceira, não era queimada. “E fizemos isso durante um período de dez anos nos
meses de agosto e setembro, seguindo as regras legais para o uso do fogo para
fins de pesquisa. Agora estamos observando o processo de recuperação, avaliando
a capacidade da floresta se recuperar desse impacto”.
Um dos grandes achados do
experimento, segundo Ane, é que pelo menos durante o período do fogo, a área
que queima todo o ano e a área que queima a cada três anos, ambas têm
mortalidade muito alta.
“Tem um impacto muito grande
na biomassa, ou seja, na quantidade de carbono. Mas a área que queima a cada
três anos ela sofre um impacto um pouco maior, porque a tempo do material
combustível se acumular e aí o fogo fica mais intenso”, descreve.
Como aquela floresta já não é
mais fechada, já não retém mais tanta umidade. “Então o fogo fica mais intenso
e aí acaba causando um dano maior, então, isso tudo está reportado na
literatura científica. E agora estamos identificando como essas florestas
conseguem se regenerar”.
A pesquisa também verifica
qual o papel da biodiversidade na dispersão de sementes fundamentais para a
regeneração dessas áreas, e como uma floresta que se recupera emite e absorve
CO2. Para isso foram instaladas torres para medir o fluxo de emissão
de gases do efeito estufa nas áreas queimadas e na área não queimada.
E então, verificou-se uma
diferença muito grande entre elas.
“Apesar das áreas queimadas estarem se regenerando e isso significa tendo certo acúmulo de carbono, ainda tem muitas árvores ali que estão mortas e estão emitindo, que estão se decompondo. Isso é um indicador importante que o balanço de carbono dessas áreas está positivo. Ou seja, essas florestas ainda estão emitindo mais do que absorvendo mesmo depois de 10 anos de recuperação”.
Mesmo árvores que não caem emitem gases carbônicos; permanecem em pé, mas com “feridas”.
Nessa decomposição gradativa,
vai emitindo, além de CO2, outros gases de efeito estufa. Assim, as
árvores morrem e continuam emitindo gases. E as que estão se recuperando, vão
absorvendo gás carbônico.
“As árvores da Amazônia não
são adaptadas ao fogo. Com a casca muito fina, o calor acaba impactando os
vasos que conduzem água de cima para baixo, e o fogo pode gerar feridas nessas
árvores que afetam esses vasos condutores impedindo a passagem de água das
raízes para as folhas”, exemplifica.
Desta forma, com o passar do
tempo elas vão morrendo, porque necessitam dessa comunicação dos vasos. “Ou às
vezes essas feridas são impactadas por patógenos, fungos e isso também leva à
mortalidade”.
Ela explica que grande parte
do carbono estocado na Amazônia está nessas árvores. “E quando elas morrem,
caem, aquele carbono que está preso ali, vai ser decomposto e é emitido”.
Os resultados mostram então,
que a floresta na Amazônia, demora muito mais para se recuperar.
“Não é adaptada ao fogo, não
tem a qualidade de lidar com esse distúrbio, sendo assim acaba tendo impacto
maior e uma capacidade regenerativa bem menor”.
Ela dá como base, o fogo no
Cerrado, Pantanal e no Pampa. “São biomas que evoluíram historicamente com o
fogo. O fogo acontece de forma natural nesses biomas, mas infelizmente o padrão
de fogo natural também tem sido impactado nessas regiões, pois o que temos
observado é que ele tem acontecido de forma mais intensa, em um período que não
é natural e várias vezes no mesmo lugar”.
Mas ela alerta que mesmo os
biomas mais resilientes sofrem com a queima fora de controle. O Cerrado, por
exemplo, tem sido bastante impactado pelo desmatamento e pelas queimadas. Esse
bioma é o que mais queimou nos últimos 36 anos de acordo com os dados do
Mapbiomas Fogo.
Muita gente aposta nesse
poder de regeneração e difunde a informação de que o “Cerrado” queima
naturalmente. “Não é normal o Cerrado queimar todo ano no mesmo lugar. O
cerrado também tem seu regime de fogo peculiar, tem que ter a intensidade,
frequência e intervalo de fogo suficiente para que aquele tipo de vegetação se
perpetue, consiga crescer, se estabelecer”.
Cientista do fogo explica que
se queimar todo ano se manterão apenas as espécies que conseguem brotar de
novo, aquelas espécies mais adaptadas. “E se queimar todo ano, aquelas espécies
que conseguem suportar um fogo a cada 6, 12 anos, recebendo fogo a cada ano
também vão desaparecer. Então, tem que ter muito cuidado quando se fala em fogo
no Cerrado, fogo no Pantanal, no Pampa”.
Sobre as características do fogo na Amazônia, ela descreve que os incêndios florestais na região em geral não são muito altos, não chegam a copa das árvores. É um fogo baixo e lento, então, combater esse tipo de fogo, segundo Ane, é um pouco mais fácil, quando combatido diretamente. “A não ser que seja um ano muito seco que o fogo fica mais alto e assim de fato tem que fazer outra abordagem para conter esse tipo de fogo”.
Mas como já foi dito, a floresta é muito mais frágil. E sua devastação está quase que inteiramente associada ao desmatamento. Então, mudar esse cenário é o primeiro grande passo. (ecodebate)
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