As áreas úmidas do Cerrado
podem ser entendidas como “coração” deste que é o bioma berço das águas do
Brasil. São ecossistemas que ficam entre ambientes aquáticos e terrestres e que
alagam durante a estação chuvosa.
O IPAM (Instituto de Pesquisa
Ambiental da Amazônia) destaca veredas e campos úmidos que, singulares, inspiram
nomes de livro e poesia, sendo fonte de água e de vida para milhões de seres.
Com alta biodiversidade e papel
fundamental na recarga de recursos hídricos, as áreas úmidas ocupam 6 milhões
de hectares no Cerrado, área maior que a do Estado da Paraíba. Grande parte
desse tipo de vegetação no bioma concentra-se em imóveis rurais privados (59%)
e em terras indígenas (27%, especialmente na região do Araguaia), e apenas 5%
está dentro de Unidades de Conservação.
De acordo com dados do MapBiomas, o Cerrado perdeu 970 mil hectares de vegetação típica das áreas úmidas entre 1985 e 2021 — principalmente para pastagem — o equivalente a 12% de todas as áreas úmidas do bioma. Por outro lado, o bioma também viu surgir 780 mil hectares de vegetação secundária de áreas úmidas, aquela que nasce depois da perda da vegetação original. Desse total, 25% cresceram em áreas antes cobertas por superfície d’água – indicando que secaram.
Pela característica de sua distribuição, mais presente em áreas privadas, as áreas úmidas dependem do que está definido no Código Florestal Brasileiro para continuar existindo. A lei estabelece regras para imóveis rurais particulares destinarem áreas de Reserva Legal – equivalentes a 20% da propriedade no Cerrado. O Código Florestal também dispõe sobre as APPs (Áreas de Preservação Permanente), de forma a regular o processo de ocupação da terra e garantir a conservação de riquezas naturais em propriedades privadas. À parte do importante papel da legislação para a conservação de florestas, pesquisadores identificam lacunas que resultam na insuficiência de proteção a outros tipos de ecossistemas, como as áreas úmidas encontradas no Cerrado.
“O Código Florestal exclui do
regime de proteção as áreas úmidas de várzea e os campos úmidos ao considerar
apenas a calha do leito regular do curso d’água na delimitação de APPs – e não
sua variação. É um artefato que favorece a degradação da maior parte das áreas
úmidas e coloca o Brasil na contramão dos compromissos assumidos na convenção
de Ramsar”, avalia Dhemerson Conciani, pesquisador no IPAM. A Convenção sobre
Zonas Úmidas de Importância Internacional foi adotada em 1971 na cidade de
Ramsar, no Irã, e tem 172 países-membros. O Brasil é signatário desde 1993.
“Para manter o funcionamento desses ecossistemas tão importantes para a
sociobiodiversidade e para a segurança hídrica, é fundamental o fortalecimento
da legislação e a ampliação de investimentos em monitoramento e fiscalização”,
completa o pesquisador.
Além de garantir o
abastecimento de água no país, esses ecossistemas são lar de povos e
comunidades tradicionais que habitam o Cerrado de maneira ancestral há pelo
menos 12 mil anos. As áreas úmidas beneficiam a irrigação de suas lavouras de
subsistência e levam água para seus territórios, que retribuem cultivando uma
relação de harmonia com a natureza.
Dos 9 milhões de hectares ocupados por 211 territórios tradicionais oficialmente reconhecidos no Cerrado, 95% são cobertos por vegetação nativa, indica o MapBiomas. Outros 88 territórios ainda não reconhecidos, mapeados no aplicativo Tô no Mapa, ocupam 472 mil hectares com 90% de cobertura de vegetação nativa.
Os veredeiros
Os veredeiros são pessoas que
vivem em comunidades próximas às áreas úmidas e das chapadas do Cerrado, de
onde extraem alimentos para sua sobrevivência. Fazem uso das terras úmidas e da
flora desses ecossistemas para produções agroextrativistas e criação de
animais.
Até o momento, são 11
comunidades veredeiras mapeadas no aplicativo Tô no Mapa, de auto mapeamento de
povos, comunidades tradicionais e agricultores familiares. Há muito mais a
consolidar: um levantamento da iniciativa revelou lacunas nos dados oficiais
sobre territórios tradicionais ao identificar, em parte do Cerrado, 3,5 vezes
mais comunidades do que os registros nos órgãos competentes. No país, o Tô no
Mapa já mapeou 207 comunidades de mais de 15 segmentos. O objetivo é construir
um mapa que reflita a realidade dos territórios para subsidiar a formulação de
políticas públicas de garantia de direitos sociais e territoriais.
Para Jaime Alves dos Santos,
morador da vereda Grande de São Joaquim, na comunidade de Capoeirão Barra de
Brejinho, no município de Januária (MG), as veredas têm um papel sociocultural
importante em sua comunidade e abastecem umas série de práticas tradicionais em
seu cotidiano
“A vereda tem um significado
muito importante, é trabalho, alimento, água! É vida! Eu me sinto privilegiado,
me considero um guardião e de onde tiro meu sustento, também”, diz.
O modo de vida dos veredeiros é
um dos mais vulneráveis às perturbações e aos ressecamentos das áreas úmidas.
Segundo o veredeiro, a chegada de indústrias tem agravado o ressecamento da
vegetação, inclusive da vereda de Buriti Grosso, bem como impactado a segurança
alimentar e a cultura das comunidades da região.
“As veredas sofrem muito com a
chegada das grandes empresas. Chegaram na vereda mãe, Buriti Grosso, e matou
muitas outras, porque plantaram monocultura. Muitos veredeiros tiveram que ir
embora”, conta.
Dados do MapBiomas mostram que a
superfície de água no município de Januária (MG) encolheu 52% entre 1985 e
2021, passando de 6.334 hectares para menos da metade, 3.304 hectares.
Para preservar as veredas,
Jaime defende a investigação dos responsáveis pelo financiamento do
desmatamento do bioma e a retomada da fiscalização ambiental. Além disso, o
veredeiro acredita que os moradores da comunidade deveriam ser consultados nas
decisões que dizem respeito às áreas úmidas que habitam.
“A comunidade deve participar das tomadas de decisões das associações. Podemos contribuir com conhecimentos tradicionais e entender o que as empresas estão fazendo, porque o desmatamento, geralmente, visa o lucro acima do bem estar de quem vive ali”, conclui.
Mapa da região norte do município de Januária (MG) destacando, em tons de rosa, áreas que perderam superfície de água entre 1985 e 2021. A imagem de satélite (Planet – 12/2022) revela extensas áreas úmidas (veredas) severamente degradadas e com exposição de areia. Observa-se também a fronteira de avanço da monocultura (sul) e a formação de estradas e glebas sobre as áreas úmidas secas. (ecodebate)
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