1. aumento contínuo do
consumo de energia (sobretudo fóssil, mas não apenas)
2. aumento igualmente
contínuo da mineração, com inaceitáveis impactos ambientais
3. desestabilização do
sistema climático, sobretudo pela queima de combustíveis fósseis
4. desregulação dos ciclos
hidrológicos (secas e inundações) como efeito dessa desestabilização
5. elevação do nível do mar,
afetando infraestrutura, recursos hídricos e ecossistemas costeiros
6. substituição da
agricultura pelo agronegócio no âmbito da globalização do sistema alimentar
7. destruição e degradação
das florestas e demais mantas vegetais naturais pelo agronegócio
8. antropização,
artificialização e degradação biológica dos solos, sobretudo pelo agronegócio
9. maior risco de epidemias e
pandemias com maior extensão geográfica de seus vetores
10. facilitação de zoonoses
pela criação intensiva de animais para a alimentação humana
11. aumento explosivo da
geração de resíduos, inclusive na estratosfera
12. intoxicação
químico-industrial da biosfera, com adoecimento crescente dos organismos
13. diminuição acentuada da
fertilidade humana e de outras espécies
14. sobrepesca e destruição
generalizada da vida marítima
15. aumento das espécies
invasoras em escala global
16. empobrecimento genético
das espécies selecionadas pelo agronegócio
17. crescente resistência
bacteriana ao uso de antibióticos em humanos e em outros animais
18. aniquilação da
biodiversidade decorrente dos 16 fatores precedentes
19. riscos crescentes de
novas tecnologias (geoengenharia, nanotecnologia, nuclear etc.)
20. opacidade e transferência
crescente de poder decisório aos algoritmos de IA
21. emprego desses algoritmos
para a substituição e a precarização do trabalho
22. manipulação de
comportamentos por esses algoritmos, exacerbando o individualismo
23. emprego desses algoritmos
para fomentar o descrédito à ciência e à democracia
24. surtos de irracionalismo
e, em particular, do fanatismo religioso
25. aumento das desigualdades
e da concentração de poder nas mãos de oligarquias econômicas
26. financeirização extrema
da esfera econômica
27. preponderância da
economia como critério de avaliação do sucesso das sociedades
28. redução dos Estados à
função de facilitadores e gestores das demandas do mercado
29. recrudescimento do
patriarcalismo, do racismo e de ideologias nacionalistas e nazifascistas
30. proliferação de guerras e
de conflitos armados, decorrente dos 29 fatores precedentes

Embora de tipos e naturezas
muito diversas, essas crises representam facetas interligadas de uma única
crise planetária da civilização a que se dá o nome de capitalismo globalizado
(aí incluídas, obviamente, a Rússia e a China). Essa crise planetária pode ser
melhor caracterizada como a crise de nossa civilização termo fóssil, uma
civilização baseada na queima de carbono, na destruição da biosfera, na
acumulação e na concentração de capital por megacorporações, na dissociação
homem-natureza, na ilusão da potenciação energética ilimitada e na ideologia de
que não há outro mundo possível.
No quadro geral desse elenco
de crises, a emergência climática, a aniquilação da biodiversidade, a
intoxicação planetária e as guerras (com risco agora extremo de uma guerra
nuclear entre a Rússia e a OTAN) têm potencial, mesmo consideradas
isoladamente, para ameaçar existencialmente as civilizações humanas e a
sobrevivência de milhões de espécies, a nossa incluída. Mas elas estão
associadas entre si e agem em sinergia com as demais crises acima enunciadas,
de modo que o caos irreversível que elas estão em vias de engendrar torna-se
uma quase certeza. Ocorre que há um bloqueio cognitivo, ideológico, emocional e
psicológico das sociedades em aceitar e compreender essa quase certeza. E esse
bloqueio, vale dizer, o negacionismo contemporâneo em todas as suas facetas e
gradações, é, ele próprio, o fator decisivo na passagem da quase certeza para a
certeza. O negacionismo contemporâneo torna-se, assim, o fator decisivo a nos
precipitar nesse caos. Ele é o maior responsável pela baixa reatividade das
sociedades face à ruína que já começa a se abater sobre a vida na Terra. Se não
houver uma revolta política das sociedades à altura da extrema gravidade dessa
poliédrica crise planetária, a condenação ao pior num futuro cada vez mais
próximo é inapelável.

A recusa da guerra e a
revalorização da política
As torres gêmeas de 2001, a
guerra do Afeganistão (2001-2020), os massacres da OTAN no Kosovo e sua
expansão em direção ao leste europeu (1999-2009) e, sobretudo, a invasão do
Iraque em 2003 pelos EUA, que engendrou as guerras sucessivas do autodenominado
Estado Islâmico (2004-2019), encerraram de vez o período em que o capitalismo
globalizado podia gerar ao menos a ilusão de que algum consenso político era
possível. Nesse contexto de guerras, o triênio 2006-2008 vê a conjunção de três
grandes crises intimamente interligadas:
(1) A ultrapassagem do pico
da curva ascendente de oferta do petróleo convencional em 2006. Como afirma a
Agência Internacional de Petróleo (AIE) em seu relatório de 2010: “a oferta de
petróleo cru atinge um platô ondulante entre 68 e 69 milhões de barris por dia
(mb/d) até 2020, mas nunca mais ultrapassa seu pico de 70 mb/d atingido em
2006, enquanto a produção de gás natural líquido (NGLs) e de petróleo não
convencional cresce fortemente”. A ultrapassagem desse pico da curva de oferta
de petróleo convencional representa o fim da era do petróleo barato e
facilmente acessível, com duas implicações: (a) um EROI (Energy Returned on
Investement, ou seja, a taxa de energia recuperada por energia investida) cada
vez mais desfavorável e (b) crescentes emissões de gases de efeito estufa por
cada barril de petróleo não convencional extraído. Entre outros fatores mais
conjunturais, a percepção do fim dessa era do petróleo barato e facilmente
acessível causou um salto sem precedentes dos preços do barril do Brent (US$
146,00 em julho de 2008). A crise financeira de 2008, em parte causada por
esses preços estratosféricos, precipitou uma queda não menos brutal desses
preços e, sucessivamente, uma crônica instabilidade nesse mercado, como mostra
a Figura 1.

Figura 1 – Preços do barril
de petróleo cru (Brent) em dólares entre 2006 e 2022.
(2) A crise dos “subprimes”
nos EUA foi o estopim de um colapso financeiro mundial e possivelmente de uma
desestabilização irreversível da ordem financeira global, assim como um ponto
de não retorno no processo de concentração de capital e renda. Nos EUA, desde
2008, como bem salienta Victoria Finkle:
“O fosso entre os ricos e
todos os outros também aumentou. O 1% mais rico dos americanos controla agora
[em 2018] quase 40% da riqueza do país, enquanto os próximos 9% controlam quase
a mesma quantidade. A grande maioria dos americanos, entretanto, viu a sua
quota cair desde a crise – os 90% mais pobres detinham pouco mais de 20% da
riqueza total em 2016, abaixo dos cerca de 30% no início da década de 2000”.
Outro efeito dessa crise foi
a maior polarização política na sociedade norte-americana, com seus reflexos
nos estados satélites da Europa. A incapacidade das sociedades de vislumbrar
uma alternativa sistêmica e radical ao capitalismo causou o paradoxo maior
dessa crise no âmbito político e ideológico: os protagonistas do neoliberalismo
mais predatório assumiram aos olhos de segmentos importantes da sociedade a
imagem salvífica de políticos “anti-sistema”. Em alguma medida, Trump, o Tea
Party e a extrema-direita europeia e latino-americana (Bolsonaro, Milei etc.)
são o resultado último da crise de 2008 ou, mais precisamente, do rancor das
sociedades em face de um capitalismo financeiro globalizado incapaz de atender
às suas mínimas expectativas de segurança econômica. Neste terceiro decênio,
cresce entre os analistas do sistema financeiro internacional o temor de uma
próxima crise financeira de magnitude igual ou superior à de 2008.
(3) Em 2007-2008, registra-se
um primeiro surto nos preços dos alimentos, repetido em 2011, decorrente de
secas exacerbadas pela emergência climática, de especulação financeira sobre as
“commodities” agropecuárias e de cartelização dos insumos agrícolas por
megacorporações agroquímicas, surto este que gerou as revoltas da fome em mais
de 40 países e a chamada primavera árabe. A Figura 2 mostra esses dois saltos
(2008 e 2011) nos preços dos alimentos.

Figura 2 – Índice de preços
dos alimentos da FAO (FFPI) entre 1990 e 2013.
Observação: o FFPI é uma
medida da variação mensal dos preços internacionais de uma cesta de produtos
alimentares.
A proliferação de guerras no
segundo decênio
Em parte, como resultado
desses três fatores, rebentam a partir de 2011 as guerras ainda em curso na
Síria, na Líbia (com o massacre da população civil por 7 mil incursões de
bombardeio da OTAN em 2011), no Iêmen (a partir de 2014) e em diversos países
da África subsaariana. Segundo a FAO, após decênios de progressos contínuos na
diminuição da insegurança alimentar, inverte-se após 2014 essa tendência com
maior generalização da fome, intensificada por governos neoliberais e, mais
recentemente, pela pandemia, pela guerra da Ucrânia e demais guerras. A partir
do terceiro decênio, guerras e conflitos armados internos ou entre dois ou mais
estados nacionais alastram-se ainda mais pela África, pela Ásia e pela Europa.
Alguns exemplos disso são as guerras que eclodiram entre 2021 e 2023 em
Mianmar, Ucrânia, Sudão e Etiópia, bem como o genocídio do povo palestino pelo
Estado de Israel com armas e apoio dos EUA e da Europa e com a mais completa
indiferença dos países árabes (2023-2024). Essas guerras e as tensões
crescentes entre Israel e o Irã adicionam ainda mais instabilidade à segurança
energética e alimentar. O Stockholm International Peace Research Institute
(SIPRI) inventariou 56 Estados nacionais em conflito armado em 2022, cinco a
mais do que em 2021. O relatório de 2024 do SIPRI registra despesas militares
globais de mais de US$ 2,4 trilhões em 2023, um aumento de 6,8% em termos reais
em relação a 2022 e o maior aumento desde 2009. As despesas em “defesa” dos EUA
montam a US$ 916 bilhões em 2023 (US$ 778 bilhões em 2020), e dos 31 países da
OTAN, a mais de US$ 1,3 trilhão ou 55% das despesas militares globais. E uma
vez que armas pedem guerras, a Figura 3 mostra o alastramento global de
conflitos armados a partir do segundo decênio.

Figura 3 – Número de
conflitos armados em escala global entre 1990 e 2022
Guerras entre humanos e
guerra contra a natureza são as duas faces interligadas do desastre planetário
em curso, com suas vítimas cada vez mais numerosas. O Internal Displacement
Monitoring Centre (IDMC), de Genebra, contabiliza apenas em 2023 deslocamentos
internos de 75,9 milhões de pessoas no mundo todo, o que representa um novo
recorde mundial, sendo que, desse total, 68,3 milhões perderam seus locais de
residência por causa de guerras e conflitos armados, e 7,7 milhões em
decorrência de desastres, a maior parte deles causados ou exacerbados pela
emergência climática e pelo desmatamento. O número de deslocados internos
cresceu 50% nos últimos cinco anos. De seu lado, o Global Report on Food Crises
2024 contabiliza 90,2 milhões de pessoas desalojadas em 2023, sendo 64,3
milhões em deslocados internamente em 38 países ou territórios e 26 milhões de
refugiados em busca de abrigo em outros países, um aumento ininterrupto de
vítimas desde 2013, conforme mostra a Figura 4.

Figura 4 – Deslocados (em
milhões) em 59 países/territórios, vítimas de crises alimentares entre 2013 e
2023.
O único denominador comum em
meio às guerras, ao imenso sofrimento e à destruição ambiental imperante é o
negacionismo, ou seja, a incompreensão de que o que está em jogo, aqui e agora,
é nossa sobrevivência como sociedades organizadas e a de grande parte das
espécies (das quais, de resto, dependemos existencialmente). Dito em outras
palavras, as guerras e a energia dispendida em acusações mútuas e em retóricas
nacionalistas de confronto relegam às calendas gregas a aplicação dos acordos
globais para cessar a queima de combustíveis fósseis e a destruição da biosfera
pelo agronegócio e pela mineração. A brutalidade das guerras e a estupidez das
ideologias nacionalistas ocultam tragicamente a percepção do essencial: a
destruição vertiginosa das bases físico-químicas e biológicas planetárias que
viabilizam qualquer projeto social.
Contra essa engrenagem, que
nada tem de inevitável, é preciso reagir. É preciso revoltar-se contra o
negacionismo dos governantes e das corporações.

Antropoceno: ou mudamos nosso
estilo de vida, ou a Terra, como conhecemos, sucumbirá
É preciso afirmar que somos
capazes, como sociedades, de pôr um ponto final na procrastinação política e
nesse estado de guerra permanente. Essa revolta é uma aposta numa aliança
renovada entre princípios herdados da história e a imaginação de um planeta
futuro habitável para os jovens de hoje e para as gerações vindouras. Ela pode
se expressar em cinco pontos programáticos:
(a) a democracia, entendida
como soberania popular participativa e como controle efetivo dos governantes
pelos governados, tem o poder de vencer as oligarquias, sejam estas exercidas
por regimes ditatoriais ou pelas engrenagens corporativas e financeiras. A
política e a democracia são a única negação válida e possível da injustiça, da
anomia e da guerra;
(b) as sociedades têm a
faculdade de compreender seus próprios desafios, por mais complexos que sejam,
e essa compreensão é um passo fundamental no processo de seu enfrentamento.
Decisões coletivas racionais podem prevalecer sobre as pulsões agressivas de
nossa espécie;
(c) a questão social e a questão
ecológica são indissociáveis. No século XXI, elas se tornaram uma única e mesma
questão, ainda pouco assimilada por setores hegemônicos das esquerdas. Em
outras palavras, todo problema social só pode ser considerado resolvido se
redundar em diminuição do impacto antrópico sobre o sistema Terra e se redundar
também em diminuição das desigualdades entre os humanos e entre estes e as
demais espécies;
(d) resolver problemas da
magnitude dos que hoje nos confrontam supõe abandonar gradualismos e aceitar o
desafio de empreender uma mutação civilizacional, a qual requer rupturas
institucionais, com seus riscos altos e inevitáveis, dada a natureza
inerentemente conflituosa do processo histórico. Essas rupturas, contudo, só
serão possíveis e efetivas se forem políticas, isto é, sem intervenção de
militares, setor primitivo e parasitário (US$ 2,4 trilhões em 2023) da
sociedade, que pode e deve, enfim, se extinguir no curso dessa mutação
civilizacional.
(e) os que consideram essa
mutação civilizacional irrealista devem entender que não tentar realizá-la é
ainda mais irrealista, pois a trajetória atual, com suas mudanças cosméticas e
a passo de lesma, nos condena com certeza a um planeta inabitável no horizonte
dos próximos decênios.

Um delírio sobre o Colapso
planetário que se avizinha
Luiz Marques - Professor
aposentado e colaborador do Departamento de História do Instituto de Filosofia
e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. Atualmente é professor sênior da Ilum
Escola de Ciência do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais
(CNPEM). Pela Editora da Unicamp, publicou Giorgio Vasari, Vida de Michelangelo
(1568), 2011, e Capitalismo e Colapso Ambiental, 2015, 3ª edição, 2018. É
membro dos coletivos 660, Ecovirada e Rupturas. (ecodebate)