Ela não sabe se é
relevante a sua contribuição para a redução do efeito estufa ao absorver e
fixar o gás carbônico da atmosfera com a vegetação da pequena horta que cultiva
na varanda e das samambaias penduradas pelo apartamento, que não podem ser
encostadas por ninguém. Ela, e só ela, quem aduba e rega. Com quem conversa
quando está sozinha.
Pensou em arrumar
tempo e plantar árvores nos finais de semana na Serra do Mar para zerar o seu
débito com o planeta. O problema é que sabe que não pode simplesmente pegar um
carro, parar no acostamento de uma estrada ou do Rodoanel e jogar sementes de
árvores da mata atlântica, que seriam rapidamente devoradas pela pequena fauna
local.
Sem contar que
calculou o CO2 lançado à atmosfera pelo deslocamento até lá e descobriu que seu
débito só aumentaria.
Ela procura fazer a
sua parte. Eliminou o amaciante da dispensa, apesar da grita conjunta da
família, que reparou que a roupa não chega mais macia e perfumada como antes.
Amaciantes são os maiores inimigos de rios, lagos e do lençol freático,
explicou. Amaciantes e detergentes. Sim, a família lava a louça agora com sabão
de pedra e veste roupas ásperas que parecem de papel.
As sacolinhas
plásticas estavam abolidas antes mesmo das leis que as proíbem. Usou fraldas de
pano na infância dos filhos? Não. E como se arrepende... Se pergunta onde estão
as muitas fraldas usadas que levarão anos para se desintegrar. Se culpa por ter
jogado fora sem qualquer consciência ambiental. Descobriu tarde demais que uma
fralda descartável leva 500 anos para se decompor, já que possui plástico e
polímeros em grande quantidade.
Faz tempo que leva
pilhas e baterias a coletores credenciados, usa lâmpadas fluorescentes que
gastam menos e tira da tomada equipamentos eletrônicos sem uso que têm relógios
ou luzinhas de standby piscando. Sem contar que as opções de energia dos
computadores e monitores de toda família estão configuradas para a maior
economia possível. Sim, os computadores antigos são reutilizados, levados a
ONGs em favelas que inserem socialmente crianças pobres.
Doa roupas e
sapatos para a igreja do bairro. Livros para bibliotecas de escolas públicas.
Os didáticos passam de filho para filho. Costuma pagar contas sem imprimir
boletos, digitando pacientemente o aparentemente infindável número do código de
barras.
Garrafas pet são
proibidíssimas. Deprime-se muito quando vê imagens de enchentes em subúrbios
das grandes cidades e repara na infinidade de garrafas verdes, laranja,
transparentes, desses malditos refrigerantes que como abelhas parecem se juntar
apenas para entupir bueiros e sujar rios. Se houvesse um movimento para
proibi-las da face da Terra e pedir a volta das ecológicas garrafas de vidro
ela seria a primeira aderir.
Seu lixo é uma obra
de logística e estratégia. Separa em lixeiras diferentes os papéis usados de
computador dos de papelão e jornal. Lava latas antes de reciclá-las. O mesmo
com garrafas e vasilhames plásticos. Jamais mistura lixo orgânico com
reciclável. Um simples guardanapo de papel sujo pela marca de uma boca limpa de
molho de tomate causa uma crise. Insiste com a família o que deve ser jogado no
lixo orgânico. Gasta momentos preciosos do dia explicando as diferenças entre
as lixeiras e o que deve ser colocado onde. Ensinamento que a família custa a
absorver, tamanha a complexidade.
Há muito evita
frango de bandeja. Não só porque a bandeja de isopor é um dos maiores inimigos
do meio ambiente, mas também por causa dos boatos de que a carne branca que vem
nela é contaminada por uma infinidade de hormônios de origem desconhecida que
são absorvidos pelo nosso organismo e, claro, pela natureza. Desconfia que a
menstruação precoce da menorzinha seja resultado da irresponsabilidade e da
falta de controle das granjas da região.
Evita atum em lata
que não informa se de suas redes os golfinhos estão salvos. Carne? Biológica.
Vinho? Orgânico. Frutas e verduras? Sem agrotóxico. Apaga as luzes da casa como
uma neurótica. Seus filhos vivem dando topadas por causa da escuridão. Estão
sempre com a testa roxa ou galos.
Banho, barba e
escovar dentes seguem uma rotina detalhada que foi calculadamente planejada
como a invasão de um país vizinho para se resgatar reféns das mãos de
terroristas. Da pia, jamais escapa água não utilizada.
Banho: abrir o
chuveiro, fechar, xampu, ensaboar, abrir, enxaguar, fechar. Sempre preocupados
em fazer xixi no ralo para economizar a água de uma descarga. E que ninguém
ouse jogar papel na privada.
Os filhos vão a pé
para a escola. Sim, ela escolheu aquela para a qual não precisa de transporte
que poluiria mais ainda a cidade. Obrigou o marido a trocar a pick-up por um
carro a álcool e vendeu o seu carro. Pois descobriu que uma pessoa que utiliza
carro a gasolina em seus deslocamentos rodando em média 30 quilômetros diários
em área urbana tem um débito de carbono elevado de 1.763 kg/ano. Já o uso de
caminhonetes em área urbana resulta num débito de carbono péssimo de 2.781
kg/ano.
Enumera diariamente
se faz tudo corretamente. E se desespera ao ver pela janela a mancha escura que
cobre a cidade, a quantidade de carros que entopem as ruas próximas, o lixo nas
calçadas. Sente raiva e culpa. Isso mesmo, aquele sentimento que deprime os
incompreendidos: muita culpa. Culpa por não poder fazer mais pelo planeta
querido, ameaçado, único. O que a leva a, nervosa, sozinha em casa, acender um
cigarro na varanda, fumar até o talo e jogar a bituca no lixo. Orgânico. E se
lavar toda, já que fuma escondida da família.
Nunca parou para
pensar por que fuma eventualmente, gesto que não combina com ela. Certamente
para não se sentir à parte numa cidade com tantos vícios. E para não ter pena
de si mesma, o que só aumentaria a angústia, a solidão, e a tornaria incapaz de
agir. Nem vem: desse cigarrinho ela não abre mão. (OESP)
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