Plantação de cana-de-açúcar na Amazônia Legal: ‘O ciclo se
repete com novos desmatamentos’
O Projeto de Lei 626/2001 “poderá desencadear ou reforçar um
mecanismo semelhante ao do desmatamento ilegal realizado pela indústria
madeireira, que abre espaço para a criação de gado, que, por sua vez, dá lugar
à soja e esta à cana-de-açúcar” diz o geógrafo.

A aprovação do
Projeto de Lei 626/2001 pela Comissão de
Meio Ambiente, Defesa do Consumidor, Fiscalização e Controle do Senado, que
revê o Zoneamento Agroecológico – ZAE da cana-de-açúcar e autoriza seu plantio
em áreas alteradas e nos biomas Cerrado e Campos Gerais na Amazônia Legal, “é
um fato lamentável, que demonstra o comprometimento com agentes econômicos,
sustentado por um discurso totalmente equivocado”, diz João Humberto Camelini
à IHU
On-Line. Segundo ele, “é possível alcançar o desenvolvimento de
uma região por meio de um planejamento integrado, que envolva, entre outros
fatores, a instalação de usinas de açúcar e etanol, mas a ideia que se propaga
erroneamente é que a mera presença de uma usina conduz ao desenvolvimento”.
Na entrevista a
seguir, concedida por e-mail, o geógrafo esclarece que as questões em discussão
são muito mais “complexas do que sugere a abordagem apresentada no Projeto de
Lei”. Ele explica: “Quando uma cultura regulamentada como a cana-de-açúcar
recebe autorização formal e incentivos para ocupação, isto implica no uso
exclusivo de grandes porções de terras no entorno das usinas, dentro de um raio
aproximado de 40 a 50 quilômetros, o que leva à rápida e agressiva substituição
das atividades existentes, deslocando-as para áreas inalteradas”.
O Projeto de Lei,
acentua, tem como objetivo expandir a produção de etanol para suprir a demanda
externa, “que atualmente é potencial, mas que pode tornar-se real se o etanol
passar a se comportar formalmente como uma commodity. Na verdade é uma aposta,
pois a atual relação custo/benefício para produção de açúcar é muito melhor que
a do etanol, mas este pode dar acesso a um mercado promissor no futuro. Hoje
sua função é atender o mercado interno e equilibrar o preço da gasolina. A
impressão geral dos produtores é que ele foi colocado em segundo plano após a
descoberta do Pré-sal”.
João Humberto Camelini é mestre em Geografia com dissertação
intitulada Regiões competitivas do etanol e vulnerabilidade territorial no
Brasil: o caso emblemático de Quirinópolis-GO, apresentada no Instituto de
Geociências – IG, da Universidade Estadual de Campinas. Atualmente é doutorando
na mesma área de concentração, atua como Coordenador Técnico para
Geotecnologias e Infraestruturas na Tecgraf Tecnologia em Computação Gráfica e
como Professor Assistente na Faculdade Politécnica de Campinas e Faculdade de
Jaguariúna.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como o senhor vê a aprovação do
Projeto de Lei 626/2011 pela Comissão de Meio Ambiente, Defesa do Consumidor,
Fiscalização e Controle do Senado, que revê o Zoneamento Agroecológico – ZAE da
cana-de-açúcar e autoriza seu plantio em áreas alteradas e nos biomas Cerrado e
Campos Gerais na Amazônia Legal? O que esta expansão significa e demonstra
sobre a agenda ambiental brasileira?
João Camelini – A meu ver, esta aprovação é um fato
lamentável que demonstra o comprometimento com agentes econômicos, sustentado
por um discurso totalmente equivocado. É possível alcançar o desenvolvimento de
uma região por meio de um planejamento integrado que envolva, entre outros fatores,
a instalação de usinas de açúcar e etanol. Porém, a ideia que se propaga
erroneamente é que a mera presença de uma usina conduz ao desenvolvimento.
A questão é muito
mais complexa do que sugere a abordagem apresentada neste Projeto de Lei. Não
devemos apenas pensar na ocupação direta das áreas como a causa dos
desmatamentos; este processo é muito mais sutil e gradual do que pode perceber
o senso comum.
Quando uma cultura
regulamentada como a cana-de-açúcar recebe autorização formal e incentivos para
ocupação, isso implica o uso exclusivo de grandes porções de terras no entorno
das usinas, dentro de um raio aproximado de 40 a 50 quilômetros, o que leva à
rápida e agressiva substituição das atividades existentes, deslocando-as para
áreas inalteradas. Isso gera grandes pressões por desmatamentos clandestinos e
de difícil fiscalização.
É um mecanismo
semelhante ao do desmatamento ilegal realizado pela indústria madeireira, que
abre espaço para a criação de gado, que, por sua vez, dá lugar à soja e esta à cana-de-açúcar.
O ciclo se repete com novos desmatamentos, mas a sua relação com as etapas
finais é de difícil percepção.
IHU On-Line – A crítica à aprovação do
Projeto de Lei refere-se especialmente à plantação de cana-de-açúcar na
Amazônia Legal, porque o zoneamento ecológico da Embrapa não prevê o plantio de
cana na região. Quais as implicações em expandir a produção de cana-de-açúcar
para essa região? Como essa produção modifica a geografia da Amazônia?
João Camelini – No caso da ocupação da Amazônia, é
necessário compreender que haverá grandes implicações associadas à logística,
conceito que a geografia reinterpreta e utiliza para captar a essência de
grande parte das movimentações políticas e corporativas. Por exemplo, será
necessário estabelecer conexões entre a Amazônia e outras regiões para que a
produção tenha fluidez e isso poderá conduzir ao surgimento de uma rede de
transportes corporativa financiada com dinheiro público para servir a clusters
de usinas. Muitos grupos usineiros têm participação de empresas multinacionais.
Então, há o risco de este processo se destinar essencialmente à transferência
de lucro para estes agentes.
A produção
sucroenergética demanda especialização produtiva, ela promove o “alisamento”
das áreas ocupadas, eliminando a diversidade das atividades. Nesse sentido, sua
inserção na Amazônia pode ser algo extremamente perigoso, dando início a um
processo de descaracterização da região. Além das questões ambientais e
econômicas, há também os aspectos culturais, que não podem ser ignorados. O
Projeto de Lei se refere à presença de mão de obra barata como um atributo de
competitividade. Trata-se de um ensaio do discurso que prega o ingresso da
região amazônica no leilão, que é a disputa por investimentos dos grupos
usineiros. O próximo passo será conceder benefícios fiscais e reproduzir a
ideia de que a usina é igual a desenvolvimento. Triste fim para uma região de
potencial tão elevado.
IHU On-Line – Um dos argumentos utilizados
para a aprovação do Projeto de Lei é o de que o plantio de cana-de-açúcar no
Cerrado e na Amazônia Legal irá estimular a produção de biocombustíveis no
país. Qual a atual situação da produção de biocombustível no país? Quais os
objetivos de aumentá-la?
João Camelini – O principal objetivo de expandir a produção
de etanol é suprir a demanda externa, que atualmente é potencial, mas que pode
tornar-se real se o etanol passar a se comportar formalmente como uma
commodity. Na verdade, isso é uma aposta, pois a atual relação custo/benefício
para produção de açúcar é muito melhor que a do etanol, mas este pode dar
acesso a um mercado promissor no futuro. Hoje sua função é atender o mercado
interno e equilibrar o preço da gasolina. A impressão geral dos produtores é
que ele foi colocado em segundo plano após a descoberta do pré-sal.
Eu não acredito que o
plantio de cana-de-açúcar no Cerrado e na Amazônia seja necessário para
estimular a produção de biocombustíveis, porque existem várias alternativas que
podem ser exploradas antes de se iniciar (ou intensificar, no caso do Cerrado)
a ocupação destas regiões. Com a crescente adoção da chamada agricultura de
precisão, a produtividade das áreas atualmente ocupadas pode aumentar
significativamente, bem como o raio de influência das usinas, que poderão
buscar matéria-prima em locais mais distantes devido à diminuição do tempo e
custos envolvidos no corte, carregamento e transporte da cana. O
desenvolvimento de novas variedades, muito mais produtivas, associadas à
diminuição do pisoteio pelo uso racional da irrigação em lugar da circulação de
veículos para aplicar corretivos no solo, poderá resultar em talhões com ciclos
de vida muito mais longos, reduzindo sensivelmente o investimento em reformas.
Além disso, é
possível utilizar técnicas e equipamentos para recuperação de solos degradados
e implementos de sulcação profunda, elementos estes que permitem melhor
retenção da água e aproveitamento dos nutrientes, viabilizando a eliminação de
terraços e novos traçados das linhas de cana, aumentando o rendimento por
hectare plantado. Desse modo, áreas mal aproveitadas e próximas às existentes
serão ativadas e o financiamento destinado à fluidez da produção poderá ser bem
inferior, reduzindo a ociosidade das estruturas produtivas e de transporte.
IHU On-Line – Para quais regiões do país a
cana-de-açúcar está sendo expandida nos últimos anos?
João Camelini – Com a saturação das terras no estado de São
Paulo, o processo de desconcentração espacial direcionou a expansão da produção
de cana-de-açúcar para o Centro-Oeste do país, especialmente para Goiás e Mato
Grosso do Sul. Também há vetores de ocupação em direção ao Triângulo Mineiro e
norte do Paraná. Isso se deve principalmente à proximidade com o grande mercado
consumidor paulista, para o qual as bases de distribuição foram inicialmente posicionadas,
mas também tem relação com o grande potencial de exportação do etanol. Esta
expectativa pela consolidação de um mercado externo vem atraindo investimentos
em infraestruturas para possibilitar a fluidez da produção até os portos.
IHU On-Line – Quais são as alternativas
econômicas e produtivas mais adequadas e adaptadas à Amazônia e ao Cerrado?
João Camelini – Ao contrário do que se pode imaginar, estas
regiões possuem enorme potencial econômico e podem ser aproveitadas de forma
bastante lucrativa, beneficiando a sociedade sem que isso represente grandes
impactos sobre o meio ambiente. O caminho para isso não tem necessariamente que
passar pelo modelo agrícola uniforme adotado no restante do país. Isso porque é
preciso respeitar as particularidades destas áreas preservadas. Acho que é
fundamental a elaboração de políticas públicas que estimulem a pesquisa da
biodiversidade, o que poderia resultar em muitas inovações de grande vulto.
Para isso, é preciso que sejam oferecidas condições para assegurar e
desburocratizar o direito à propriedade intelectual, privilegiando investidores
brasileiros. Isso é fundamental porque nestas regiões há grandes oportunidades
para a obtenção de produtos com alto valor agregado, como fármacos inovadores,
cosméticos e outros itens diferenciados com selos de indicações geográficas.
Estes poderiam ser exportados por via aérea e o investimento nesse modal
resultaria em melhores condições para expandir e profissionalizar o turismo.
Estas medidas poderiam trazer a sinergia necessária para inibir práticas
ilegais, já que a fiscalização pública destas regiões é inviável devido às suas
dimensões.
IHU On-Line – Como a produção de
biocombustíveis a partir da produção de cana-de-açúcar é abordada no Plano
Nacional de Energia – PNE para 2030?
João Camelini – Espera-se que a participação da
cana-de-açúcar e derivados na matriz energética brasileira chegue a 19%,
ficando somente atrás do petróleo. Fica evidente a intenção de dimensionar o
potencial produtivo para alcançar excedentes destinados à exportação de etanol,
que está qualificado como alternativa aos combustíveis fósseis, especialmente
após o surgimento dos veículos flex fuel. Gostaria de salientar o
aumento da importância da bioeletricidade como produto, que pode justificar a
formação de clusters de usinas e viabilizar sua conexão com redes de
distribuição. Também é importante ressaltar a preocupação do documento com as
rotas de abastecimento, já que as condições logísticas são determinantes para a
competitividade do etanol.
O PNE apresenta
alguns benefícios estratégicos, sociais e ambientais do aumento da produção de
etanol, mas é preciso lembrar que o modelo de ocupação com cana-de-açúcar pode
expor os municípios, especialmente os pequenos, a condições de vulnerabilidade
territorial. Por exemplo, recentemente os municípios de Santa Helena-GO
e Espírito
Santo do Turvo-SP passaram por grandes dificuldades quando suas
respectivas usinas faliram. Não pretendo afirmar que a cana-de-açúcar é
necessariamente um mal, pelo contrário, ela pode colaborar para o
fortalecimento econômico regional, mas é preciso harmonizar a instalação de
novas usinas a um planejamento mais amplo. É preciso ter um plano B. (EcoDebate)