Gostaria de desmistificar alguns
pontos sobre a crise hídrica em SP, assunto que tangencia minhas pesquisas
acadêmicas.
1- “Não choveu e por isso está
faltando água”. Essa conclusão é cientificamente problemática. Existem períodos
chuvosos e de estiagem, descritos estatisticamente. É natural que isso ocorra.
A base de dados de São Paulo possibilita análises precisas desde o século XIX e
projeções anteriores a partir de cálculos matemáticos. Um sistema de
abastecimento eficiente precisa ser projetado seguindo essas previsões (ex:
estiagens que ocorram a cada cem anos).
2- “É por causa do aquecimento
global”. Existem poucos estudos verdadeiramente confiáveis em São Paulo. De
qualquer forma, o problema aqui parece ser de escala de grandeza. A não ser que
estejamos realmente vivendo uma catástrofe global repentina (que não parece ser
o caso esse ano), a mudança nos padrões de chuva não atingem porcentagens tão
grandes capazes de secar vários reservatórios de um ano para o outro. Mais
estudadas são as mudanças climáticas locais por causa de ocupação urbana
desordenada. Isso é concreto e pode trazer mudanças radicais. Aqui o problema é
outro: as represas do sistema Cantareira estão longe demais do núcleo urbano
adensado de SP para sentir efeitos como de ilha de calor. A escala do
território é muito maior.
3- “Não choveu nas Represas”.
Isso é uma simplificação grosseira. O volume do reservatório depende de vários
fluxos, incluindo a chuva sobre o espelho d’água das represas. A chuva em
regiões de cabeceira, por exemplo, pode recarregar o lençol freático e assim
aumentar o volume de água dos rios. O processo é muito mais complexo.
4- “As próximas chuvas farão que
o sistema volte ao normal”. Isso já é mais difícil de prever, mas tudo indica
que a recuperação pode levar décadas. Como sabemos, quando o fundo do lago fica
exposto (e seco), ele se torna permeável. Assim a água que voltar atingir esses
lugares percola (infiltra) para o lençol freático, antes de criar uma camada
impermeável. Se eu fosse usar minha intuição e conhecimento, diria que São
Paulo tem duas opções a curto-médio prazo:
(a) usar fontes alternativas de
abastecimento antes que possa voltar a contar com as represas;
(b) ter uma redução drástica em
sua economia para que haja diminuição de consumo (há relação direta entre
movimento econômico e consumo de água).
5- “Não existe outras fontes de
abastecimento que não as represas atuais”. Essa afirmação é duplamente
mentirosa. Primeiro porque sempre se pode construir represas em lugares mais e
mais distantes (sobretudo em um país com esse recurso abundante como o Brasil)
e transportar a água por bombeamento. O problema parece ser de ordem econômica
já como o custo da água bombeada de longe sairia muito caro. Outra mentira é
que não podemos usar água subterrânea. Não consigo entender o impedimento
técnico disso. O Estado de São Paulo tem ampla reserva de água subterrânea
(como o chamado aquífero Guarani), de onde é possível tirar água, sobretudo em
momentos de crise. Novamente, o problema é custo de trazer essa água de longe
que afetaria os lucros da Sabesp.
6- “O aquífero Guarani é um
reservatório subterrâneo”. A ideia de que o aquífero é um bolsão d’água, como
um vazio preenchido pelo líquido, é ridiculamente equivocada. Não existe
bolsão, em nenhum lugar no mundo. O aquífero é simplesmente água subterrânea
diluída no solo. O aquífero Guarani, nem é mesmo um só, mas descontínuo. Como
uma camada profunda do lençol freático. Em todo caso, países como a Holanda
acham o uso dessas águas tão bom que parte da produção superficial
(reservatórios etc) é reinserida no solo e retirada novamente (!). Isso porque
as propriedades químicas do líquido são, potencialmente, excelentes.
7- “Precisamos economizar água”.
Outra simplificação. Os grandes consumidores (indústrias ou grandes
estabelecimentos, por exemplo) e a perda de água por falta de manutenção do
sistema representam os maiores gastos. Infelizmente os números oficiais parecem
camuflados. A seguinte conta nunca fecha: consumo total = esgoto total + perda
+ água gasta em irrigação. Estima-se que as perdas estejam entre 30% e 40%. Ou
seja, essa quantidade vaza na tubulação antes de atingir os consumidores. Água
tratada e perdida. Para usar novamente o exemplo Holandês (que estudei), lá
essas perdas são virtualmente 0%. Os índices elevados não são normais e são
resultados de décadas de maximização de lucros da Sabesp ao custo de uma
manutenção precária da rede.
8- “Não há racionamento”. O
governo está fazendo a mídia e a população de boba. Em lugares pobres o
racionamento já acontece há meses, dia sim, dia não (ou mesmo todo dia). É
interessante notar que, historicamente, as populações pobres são as que sempre
sentem mais esses efeitos (cito, por exemplo, as constantes interrupções no
fornecimento de água no começo do século XX nos bairros operários das várzeas,
como o Pari). A história se repete.
9- “É necessário implantar o
racionamento”. Essa afirmação é bem perigosa porque coloca vidas em risco. Já
como praticamente todas as construções na cidade têm grandes caixas d’água, o
racionamento apenas ataca o problema das perdas da rede (vazamentos). É tudo
que a Sabesp quer: em momentos de crise fazer racionamento e reduzir as perdas;
sem diminuição de consumo, sem aumentar o controle de vazamentos. O custo
disso? A saúde pública. A mesma trinca por onde a água vaza, se não houver
pressão dentro do cano, se transformará em um ponto de entrada de poluentes do
lençol freático nojento da cidade. Estaremos bebendo, sem saber água poluída,
porque a poluição entrou pela rede urbana. Por isso que agências de saúde
internacionais exigem pressão mínima dentro dos canos de abastecimento.
10- “Precisamos confiar na Sabesp
nesse momento”. A Sabesp é gerida para maximizar lucros dos acionistas. Não
está preocupada, em essência, em entregar um serviço de qualidade (exemplos são
vários: a negligência no saneamento que polui o Rio Tietê, o uso de tecnologia
obsoleta de tratamento de água com doses cavalares de cloro e, além, da crise
no abastecimento decorrente dos pequenos investimentos no aumento do sistema de
captação). A Sabesp é apenas herdeira de um sistema que já teve várias outras
concessionárias: Cantareira Águas e Esgotos, RAE, SAEC etc. A empresa tem hoje
uma concessão de abastecimento e saneamento. Acredito que é o momento de discutir
a cassação dessa outorga, uma vez que as obrigações não foram cumpridas. Além,
é claro, de uma nova administração no Governo do Estado, ao menos preocupada em
entregar serviços públicos e não lucros para meia dúzia apenas.
Enfim, se eu pudesse resumir minhas
conclusões: a crise no abastecimento não é natural, mas sim resultado de uma
gestão voltada para a maximização de lucros da concessionária e de um Governo
incompetente. Simples assim, ou talvez, infelizmente, nem tanto. (cosmopista)
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