Ao
longo da atual crise de abastecimento de água, temos presenciado o lançamento
de propostas de soluções que nem sempre estão fundamentadas em conhecimentos
científicos já disponíveis. Não há surpresa alguma quanto a este fato, já que
ainda há um distanciamento, no Brasil, entre a academia e o público que tenta
resolver questões práticas. Na hidrologia isso é mais do que evidente, pois o
tratamento matemático que predomina nos trabalhos científicos torna a teoria
muito complexa para a maioria dos técnicos de campo. Daí as tecnologias
adotadas ficarem mais na esperança de um sucesso que poderá se transformar em
futuras frustrações. Há, também, o risco das generalizações em situações cheias
de especificidades locais e regionais, onde receitas de bolo não dão garantias
de qualidades dos produtos. O “ouvir dizer” e o excesso de informações, que são
usadas antes de se transformarem em conhecimentos, provocam riscos iminentes de
fracassos.
Tenho
visto constantemente em artigos, entrevistas e debates pessoas pregando o
reflorestamento como única solução para aumentar a produção de água de
mananciais de abastecimento. É um erro não considerar outras opções que tenham
potenciais para produzir resultados em curto prazo. A princípio pode até haver
uma lógica no raciocínio sobre os reflorestamentos, mas algumas pesquisas já
realizadas no Brasil, contendo dados sobre produtividades de água em bacias
hidrográficas florestadas, merecem consideradas. E é sobre isso que passarei a
falar nos parágrafos seguintes.
Vou
tomar como exemplos dois estudos feitos em áreas florestadas. Duas teses: a
primeira de doutorado na USP (Câmpus de São Paulo, capital), defendida por
Valdir de Cicco, em 2009, e a segunda de mestrado, também na USP (Campus de Piracicaba),
defendida por Paulo Sant’Anna e Castro. As duas, ainda que com objetivos
diferentes, mediram produções de água (deflúvios) em bacias hidrográficas
florestadas. A segunda mediu, também, a produção em uma outra bacia vizinha da
florestada e usada para exploração agropecuária.
O
Valdir de Cicco (CICCO, 2009) estudou duas pequenas bacias hidrográficas:
1) A
primeira de 36,7 ha, dentro do Parque Estadual da Serra do Mar, Núcleo de
Cunha- SP (Mata Atlântica); com floresta secundária formada a partir de 1974,
quando a área de pastagem foi incorporada ao Parque, que tem área total atual
de 315.000 ha. A rocha predominante é o gnaisse , o solo classificado como
latossolo vermelho amarelo câmbico e a conformação geomorfológica de mares de
morros; o clima é o Cwb (Köppen), com temperatura máxima media de 260, mínima
de 160 e precipitação anual média de 1.646 mm.
2) A segunda de 59 ha, dentro do
Parque Estadual das Fontes do Ipiranga ( Mata Atlântica) que tem área total de
526,38 ha, encravado na Região Metropolitana de São Paulo, com rochas, solos e
clima muito próximos aos da bacia de Cunha. A produtividade de água no mês de
agosto (mês mais seco) foi de 15,13 L/Km2.s, em Cunha, e de 6,26 L/Km2.s, em
Ipiranga. Com base em discussão do autor da tese, é possível justificar as
diferenças de produtividades de água entre as duas bacias por duas razões:
1) A
bacia do Ipiranga está sob influência da ilha de calor da área metropolitana,
que transfere energia para a área do Parque, possibilitando maiores taxas de evapotranspiração
e, consequentemente, menores produtividades superficiais de água;
2) A bacia de
Cunha convive com elevada umidade do ar e presença de nevoeiros, o que concorre
para menores taxas de evapotranspiração e maiores produtividades superficiais
de água.
O
Paulo Sant’Anna e Castro (CASTRO, 1980) estudou duas pequenas bacias
hidrográficas na região de Viçosa-MG (Mata Atlântica). A primeira com 114 ha,
coberta com floresta secundária formada a partir da década de 1960, quando a
área foi entregue à regeneração natural. E a segunda com 192 ha, vizinha da
primeira, com exploração agropecuária e pequenos capões de matas que, somados,
não passavam de 25% da área. Em ambas, a rocha predominante é o gnaisse e os
solos são argilosos e foram classificados como latossolo vermelho amarelo
distrófico, nas seções côncavas, convexas e nos topos; já nos terraços,
receberam a classificação de podzólico vermelho amarelo câmbico. A
geomorfologia é de mares de morros, a precipitação de 1.880 mm no período de
estudo (1978/1979), temperatura média máxima de 260, mínima de 150 e clima Cwb
(Köppen). A produtividade superficial de água do mês de agosto foi de 2,4
L/km2.s, na bacia florestada, e de 8,5 L/km2.s, na com exploração agropecuária.
E foi um ano hidrológico com precipitação acima da média para a região de
Viçosa que é de 1340 mm/ano. Passados 35 anos, a floresta está mais densa, com
árvores maiores e a produtividade superficial de água do mês de agosto, para a
bacia florestada, tem sido nula. A explicação para as diferenças de
produtividades pode estar no fato de que a bacia florestada comporta-se como
uma ilha de atração de energia, rodeada por áreas secas e que por deficiência
de umidade na região das raízes das plantas, menos profundas. É importante
lembrar que a evapotranspiração depende da disponibilidade de água e de
energia.
Usando
estes dados de pesquisa na prática de produção de água, vale a pena discutir,
como exemplo, a situação do Sistema Cantareira, que está presente
cotidianamente na mídia e é responsável pelo abastecimento de grande parte da
Região Metropolitana de São Paulo. Algumas pessoas e entidades têm sugerido,
como solução, o reflorestamento de entornos de corpos d’água componentes do
Sistema. Chegam a citar números, como 400 ha, por exemplo. Ora, como as bacias
que compõem o Cantareira somam 2.280 km2, a área recomendada representa apenas
0,17 % do total. Além do mais, mesmo que tais matas ciliares viessem a se
comportar como produtoras de quantidade de água, conforme o imaginário de
muitos hidrologicamente desavisados, e com valores médios entre Cunha e
Ipiranga, ou seja, 10,78 L/km2/s, nas épocas de estiagens, isso representaria
um acréscimo de apenas 0,12 % da vazão outorgada, que é de 36.000 L/s.
Para
ir um pouco mais além na análise do possível efeito do aumento da cobertura
florestal em áreas das bacias contribuintes do Cantareira, poderão ser usados
dados da Fundação SOS Mata Atlântica, mostrando que as florestas ocupam 21,5 %
da área total das bacias e que são 5.000 km de cursos d’água, com parte deles,
1.190 km, já protegidos por matas ciliares, computadas nos 21,5 %. Como, em
grande maioria, são cursos d’água com até 10 m de largura e em áreas com usos
consolidados, pode-se adotar, para cumprimento do Código Floresta em vigor, uma
faixa média de 40 m (20 m de cada lado dos cursos d’água) para recomposição da
mata ciliar. Isso representaria um acréscimo de 152,4 km2, ou seja, 6,7 % da
área de 2.280 km2, elevando a cobertura para 28,2 %. Mesmo que tais matas
ciliares viessem a ter efeito positivo na produção de água, como acreditam
muitos, e usando os 10,78 L/km2/s, o acréscimo não passaria de 4,56 % da vazão
outorgada.
O
mais certo, entretanto, e com base em fundamentos hidrológicos da produção de
água na região Sudeste, é que, pelo menos nos primeiros 30 anos após os
reflorestamentos, o aumento de cobertura florestal, através das matas ciliares,
acarretaria uma diminuição das vazões de estiagens. Isso porque as árvores
estariam em franco crescimento e com altas taxas de transpiração, pois ocupariam,
em grande parte, áreas de contribuição dinâmica que tendem a ficar sempre
úmidas; isso por serem zonas de ligação dos aquíferos subterrâneos com as
nascentes e cursos d’água. Tal comportamento é corroborado por simulações
feitas pelo pesquisador Paulo Guilherme Molin, (MOLIN, 2014) para a bacia
hidrográfica do rio Piracicaba. Ele simulou, para sua tese de doutorado na
ESALQ-USP, o aumento da cobertura florestal da bacia e sua ação na produção de
água. Os estudos mostraram que, tomando por base o ano de 2010 e como horizonte
o de 2050, quaisquer aumentos de cobertura florestal no intervalo considerado
resultaria em redução das vazões dos cursos d’água, nos períodos de estiagens.
As
informações apresentadas mostram, portanto, que é temerária a certeza, expressa
com certa frequência, que o reflorestamento é a única alternativa para aumentar
a oferta de quantidade de água de nossas bacias hidrográficas. Um horizonte de
30 anos talvez seja o mínimo para um equilíbrio ambiental floresta/hidrologia
capaz de apontar uma produtividade de água em média confiável. Mas como a
demanda é a curtíssimo prazo, teremos que adotar alternativas de manejo dos
volumes de água recebidos pelas chuvas, conduzindo boa parte deles para os
aquíferos subterrâneos e armazenando outros em represas e em reservatórios
urbanos. Para privilegiar o armazenamento subterrâneo, há de se trabalhar com
tecnologias alternativas ao reflorestamento e que aumentem a rugosidade das
superfícies das bacias hidrográficas, dificultando a formação de enxurradas e
favorecendo a infiltração de água no solo. Tais tecnologias já existem,
comprovadas e economicamente viáveis. (ecodebate)
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