Pegada
hídrica e o uso consciente da água nas metrópoles
“O manejo
e a gestão da água nas metrópoles poderiam assumir uma nova dimensão ao
proporcionar uma reflexão sobre o modelo predominante utilizado hoje para
garantir a sua segurança hídrica e o acesso à água por seus habitantes e
atividades econômicas”, afirma a engenheira agrônoma.
Além
de ser um método para “identificar a quantidade de água alocada durante o
processo produtivo”, a pegada hídrica pode ser um instrumento importante no
sentido de “contribuir para uma reflexão diferente sobre a presença e a
utilização da água no contexto das metrópoles”, acentua Vanessa Empinotti
na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line. Nesse
sentido, pontua, a pegada hídrica “os auxilia a identificar as diferentes
fontes de água utilizadas ou disponíveis para utilização nas metrópoles. Hoje
em dia, o sistema de abastecimento de água depende de reservatórios que são
alimentados por rios e consequentemente pela chuva. Entretanto, existem outras
fontes que poderiam ser adicionadas a esta matriz de abastecimento, como a água
subterrânea e as águas provenientes das cisternas que coletam a água da chuva”.
A
crise hídrica de São Paulo, exemplifica, demonstra como os recursos locais, a
exemplo da água, “são desperdiçados devido à incapacidade de praticar o reuso e
reciclagem dos reciclagem dos recursos hídricos e de conciliar várias fontes de
água para abastecer uma área com altíssima concentração populacional”. No
contexto da metrópole, enfatiza, é essencial pensar em formas de reuso da água,
e “o tratamento do esgoto pode se tornar fonte de água para a metrópole,
diminuindo assim a dependência da área pela água localizada fora de seu
território”.
Vanessa
Empinotti é engenheira agrônoma, graduada pela Universidade Federal do Paraná –
UFPR, mestre pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS e doutora
em Ciência Ambiental e Geografia pela Universidade do Colorado, EUA. Atualmente
cursa o pós-doutorado na Universidade de São Paulo – USP.
IHU
On-Line - Do que trata o conceito de “Pegada Hídrica” e como podemos
compreendê-lo dentro do contexto das Metrópoles?
Vanessa
Empinotti – Enquanto o método da pegada hídrica se concentra
em identificar a quantidade de água alocada durante o processo produtivo, o
conceito de áiua virtual traz atenção aos fluxos globais de água como
consequência da exportação de bens ocorrendo hoje no mundo. Estes fluxos
ocorrem devido à exportação de alimentos e do seu impacto sobre a disponibilidade
hídrica dos países compradores e produtores desses produtos. Ou seja, o país
produtor aloca uma quantidade de água “x” na produção de um grão, por exemplo.
Por outro lado, o país que importa este mesmo grão não precisa alocar a sua
água para produzir o mesmo alimento uma vez que ele comprou o alimento. Dessa
forma, o país importador economizou a sua água e a utilizou em outras
atividades.
Assim,
é importante observar que não estamos falando do consumo da água ou do seu
desaparecimento, e sim de como a água é alocada para a produção de bens. Nesse
contexto a Pegada Hídrica se torna o instrumento para quantificar a água
alocada durante o processo produtivo, que considera a água proveniente não só
de rios, reservatórios ou aquíferos (corpos hídricos), mas também a água
proveniente da chuva e, por fim, a quantidade necessária de água para que os
índices de qualidade de água sejam respeitados.
No
seu cálculo, a Pegada Hídrica considera a água azul, a água verde e a água
cinza. A água azul corresponde ao consumo de água superficial e subterrânea, a
água verde ao consumo de água da chuva armazenada no solo e a água cinza à
quantidade de água necessária para diluir ou degradar a poluição produzida
durante o processo produtivo, dessa forma mantendo os níveis de qualidade de
água.
“Estrategicamente
pensando, quais as prioridades do uso da água?”
Pegada
hídrica na metrópole
No
contexto da metrópole, a pegada hídrica nos ajuda a entender como a população
dessa área não depende apenas da água física presente e disponível no local. Ao
consumirmos produtos agrícolas e industriais produzidos em outras regiões, a
água disponível nas metrópoles é principalmente alocada para o abastecimento
público e atividades econômicas localizadas em seu território. As metrópoles, em
geral, não são autossuficientes com relação à produção alimentar ou à geração
de energia. Tais recursos são produzidos em outros lugares. Assim as metrópoles
são dependentes da importação de água virtual que está presente nos produtos
produzidos em outras áreas.
Além
disso, a pegada hídrica nos auxilia a identificar as diferentes fontes de água
utilizadas ou disponíveis para utilização nas metrópoles. Hoje em dia, o
sistema de abastecimento de água depende de reservatórios que são alimentados
por rios e consequentemente pela chuva. Entretanto, existem outras fontes que
poderiam ser adicionadas a esta matriz de abastecimento como a água subterrânea
e as águas provenientes das cisternas que coletam a água da chuva. Dessa
maneira, a pegada hídrica contribui na observação e identificação de novas
fontes de água e na reflexão sobre o desenvolvimento de sistemas integrados que
consideram diferentes fontes de água e sua diferentes utilizações.
Por
fim, como a Pegada Hídrica também considera a quantidade de água necessária
para diluir os efluentes ou poluentes resultantes do processo produtivo, ela
traz a questão da água contaminada, como no caso do esgoto, para dentro da
discussão. O tratamento do esgoto pode se tornar fonte de água para a
metrópole, diminuindo assim a dependência da área pela água localizada fora de
seu território.
Assim,
a pegada hídrica pode contribuir para uma reflexão diferente sobre a presença e
a utilização da água no contexto das metrópoles, ao possibilitar a
identificação de fluxos de água reais e virtuais. Neste sentido, o manejo e a
gestão da água nas metrópoles poderiam assumir uma nova dimensão ao
proporcionar uma reflexão sobre o modelo predominante utilizado hoje para
garantir a sua segurança hídrica e o acesso à agua por seus habitantes e
atividades econômicas.
IHU
On-Line - Qual tipo de gestão o Brasil adota com relação à água? Qual a
importância da transparência da gestão pública nesse processo?
Vanessa
Empinotti – A transparência pode ocorrer em vários momentos da
gestão. Se a gestão for participativa e descentralizada, como definida pela Lei
das Águas 9.433, a transparência deveria se concretizar por meio da
disponibilização de documentos e informações que irão fundamentar o processo de
tomada de decisão. Após as decisões terem sido tomadas, a transparência pode
também proporcionar o acompanhamento do andamento das ações e atividades
escolhidas. Por outro lado, a transparência também possibilita ao usuário da
água acompanhar e monitorar a qualidade da água que ele está recebendo, assim
como a sua quantidade, o sistema de distribuição ou a execução do tratamento de
esgoto. Assim, é importante notar que a transparência na gestão dos recursos
hídricos ocorre em diferentes momentos e também tem funções
distintas. Com isso, a transparência não necessariamente pode levar à
influência do processo de tomada de decisão, mas pode servir como uma
ferramenta de monitoramento de ações propostas. O desdobramento de tais ações
poderá fundamentar reinvindicações pela melhora do acesso à água em quantidade
e qualidade igual para todos.
“É
importante pontuar que existe água suficiente no país, a questão agora é
garantir o seu acesso universal”
IHU
On-Line - De que forma crises hídricas da Metrópole, como no caso de
São Paulo, revelam a dimensão da problemática do tema em nossas sociedades?
Vanessa
Empinotti – No caso de São Paulo, a crise hídrica está
revelando o papel do governo como principal agente de tomada de decisão
juntamente com a empresa responsável pelo abastecimento de água. O sistema de
gestão participativo, baseado em comitês de bacias e conselhos de recursos
hídricos, não se tornou o espaço de tomada de decisão, o que é preocupante.
Mostra
também que a busca por água limpa está impulsionando obras de transposição de
rios entre bacias e reservatórios localizados cada vez mais longe da área da
metrópole, o que indica uma predileção por ações que garantam a oferta de água
sobre a redução do seu consumo. Por fim, está cada vez mais “caro” manter rios
mortos que se tornaram canais de esgoto a céu aberto, que cortam as áreas
urbanas. Ficou claro que, hoje, a água presente nos rios que atravessam a
cidade de São Paulo ou a precipitação que cai na região não são as principais
fontes de abastecimento de água da metrópole. Na verdade, esses recursos locais
são desperdiçados devido à incapacidade de praticar o reuso e reciclagem dos
recursos hídricos e de conciliar várias fontes de água para abastecer uma área
com altíssima concentração populacional.
Esta
crise evidencia os limites do modelo de abastecimento presente na metrópole,
mas até o momento não promoveu o seu ajuste.
IHU
On-Line - De que forma, ao exportar commodities agrícolas e minerais,
se está exportando também a riqueza hídrica do Brasil? Quais as implicações
éticas neste processo?
Vanessa
Empinotti – Na verdade não se está exportando água,
literalmente, quando exportamos commodities ou minerais, o que acontece é que
estamos alocando uma quantidade significativa de água para a produção de uma
commodity agrícola ou na extração de um mineral. Esta água alocada para
produção naquele momento, não será utilizada em outros usos. Então, quando
falamos em exportação de água virtual, o que estamos dizendo é que o país que
produziu a commodity agrícola alocou a sua água para esta produção naquele momento,
enquanto o país que importa o alimento utilizou a sua água em outras atividades
que não aquela para produzir o alimento importado. Ou seja, o país importador
economiza a sua água, uma vez que ele importa o alimento que vem de outro
lugar. Dessa forma o país exportador assume as consequências da utilização da
sua água, seja devido à poluição dos corpos hídricos durante o processo
produtivo, seja diminuindo a disponibilidade de água naquele momento.
Com
isso, se o país é capaz de produzir alimentos, commodities agrícolas ou extrair
minerais e ao mesmo tempo garantir a disponibilidade hídrica interna, a
exportação de bens que alocam água na sua produção não seria um problema. A
questão maior é pensar sobre as melhores maneiras de utilizar a água disponível
no país. Estrategicamente pensando, quais as prioridades do uso da água? Na
nossa lei (9.433) o uso prioritário é para consumo humano, dessedentação animal
e produção. Atualmente a questão hídrica no Brasil reflete a falta de execução
de planos elaborados e discutidos nos espaços de negociação participativos como
previstos pela lei 9.433. O Brasil é um dos poucos países no mundo que é capaz
de conciliar produção de alimentos e geração de energia sem sacrificar o
abastecimento humano. Se setores da sociedade não têm acesso à água, não é por
falta de legislação ou planos.
A
questão maior é refletir sobre a prioridade do uso da água e qual a sua
estratégia de alocação. Se a prioridade é o seu acesso democrático, que esse
seja o principal mote para orientar as políticas públicas e programas de
governo. É importante pontuar que existe água suficiente no país, a questão
agora é garantir o seu acesso universal. A produção pode conviver com o acesso
universal à água.
“É
interessante e triste notar que a agenda ambiental não está nas ruas”
IHU
On-Line - Que implicações pode haver na gestão de recursos hídricos
feitos por empresas de economia mista com ações no mercado financeiro? Que
contradições são evidentes nessa dinâmica?
Vanessa
Empinotti – No caso de abastecimento público e analisando o
que está ocorrendo em São Paulo hoje, podemos observar que o entendimento
predominante é que a distribuição da água é um negócio. Em consequência, existe
a contradição entre práticas que levem à redução do consumo e práticas que garantam
a disponibilidade do recurso, ou seja, de um lado garantir a oferta de água a
qualquer custo e do outro promover práticas de redução de demanda. Assim, uma
empresa na qual o seu negócio é distribuir água, sua principal estratégia será
a de garantir esta oferta por meio da construção de reservatórios, sistemas de
distribuição, transposição de águas, dessalinização de água e tratamento do
esgoto.
Por
outro lado, quando a água é entendida como um direito humano, o objetivo da sua
distribuição é torná-la disponível para todos e nas mesmas condições. Nesse
caso, a distribuição da água não é um negócio ou produto, onde quem tem
dinheiro compra, mas sim um direito que deve ser garantido a todos. Assim, não
só medidas para garantir a oferta seriam utilizadas, mas também para diminuir a
demanda, uma vez que o objetivo final é garantir que todos tenham acesso à agua
em primeiro lugar.
Ou
seja, no momento em que a água e sua distribuição são vistas como negócio, ela
seguirá as regras de mercado, que nem sempre priorizam a universalização do seu
acesso sobre os rendimentos e lucros.
IHU
On-Line - Quais são as particularidades do consumo de água no campo,
especialmente na agricultura, e na Metrópole?
Vanessa
Empinotti – A água é alocada de diferentes maneiras e depende
das características de produção e da matéria-prima utilizada. No caso dos
produtos agrícolas, a alocação de água será maior do que se comparado a algumas
práticas industriais ou à prestação de serviços. Isso porque a agricultura
produz alimentos por meio do cultivo de plantas, seres vivos que consomem água
durante a sua vida. Dessa forma, quando comparamos as diferentes etapas do
processo produtivo, a atividade agrícola terá uma pegada hídrica maior que o
processo de beneficiamento dos produtos.
Entretanto,
é importante observar que para promover a redução da necessidade hídrica das
plantas, um dos poucos caminhos é o melhoramento genético que leva ao
desenvolvimento de plantas que necessitem de menos água para produzir. Já a
metrópole se caracteriza por ter sua água alocada predominantemente para as
atividades de abastecimento público e industriais. Hoje, observamos que, das
outorgas de uso da água (licenças de uso da água expedidas pelo estado),
distribuídas na bacia hidrográfica do alto Tietê, 59% correspondem a licenças
para abastecimento público e lançamento de efluentes domésticos, enquanto 39%
correspondem à licença para uso da água pela indústria local.
“Questões
ambientais não são consideradas problemas enquanto as pessoas tiverem poder de
compra”
IHU
On-Line - Na sua avaliação, por que o tema dos recursos hídricos não
faz parte da agenda política nem do Estado nem da sociedade civil em larga
escala? Como avalia a ausência do tema nas manifestações da Multidão em Junho
de 2013?
Vanessa
Empinotti – É interessante e triste notar que a agenda
ambiental não está nas ruas. Não só a da água como também de nenhuma outra.
Questões ambientais não são consideradas problemas enquanto as pessoas tiverem
poder de compra. Quem não tem água ou energia é aquele que não pode pagar por
ela. Ao mesmo tempo as manifestações de 2013 indicaram um descompasso entre o
aumento da renda, a emergência de uma nova classe média, a diminuição da
pobreza com as condições de infraestrutura e serviços presentes no país. A
questão não era ambiental nem se preocupava com os níveis de consumo, mas sim
de qualidade de vida, sem reconhecer que uma está ligada à outra. A questão
ambiental ainda é vista como uma bandeira romântica, enquanto a perspectiva
econômica é a que prevalece.
Ainda
se dá preferência em garantir as necessidades básicas das pessoas, inclusive
água, mas sem pensar como isto está relacionado à forma como transformamos a
natureza. Nesse sentido vamos nos acostumando e aceitando a convivência com
passivos ambientais, como os rios poluídos que cortam áreas urbanas, a ponto de
essa realidade se tornar normal e aceitável. A referência se tornou um rio
sujo, e não o limpo.
IHU
On-Line - Frente a tal contexto, estamos diante de que tipos de
desafios? Que alternativas se tornam viáveis em um cenário social em que
aumenta a concentração populacional em Metrópoles que não são sustentáveis do
ponto de vista hídrico?
Vanessa
Empinotti – O desafio é romper com a maneira que pensamos o
manejo dos recursos hídricos hoje. A concentração populacional é uma realidade
e o modelo de gestão e abastecimento atual não conseguem garantir o acesso à
água em condições de seca. A oportunidade que temos agora é de refletir e
ajustar. Entretanto, com o aumento da incidência de eventos extremos em períodos
mais curtos, se insistirmos pelo modelo atual teremos uma nova crise em pouco
tempo. Talvez, agora, com a intensificação e alteração das dinâmicas de
precipitação, seremos obrigados a repensar as nossas práticas sob pena de
sofrermos cada vez mais. (ecodebate)
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