Seca no
Nordeste e as consequências da má gestão dos recursos hídricos
“A
prioridade no momento é fazer medidas de curto prazo, porque estamos
atravessando a maior seca do século, temos o maior problema de carro-pipa da
história, e esse já é um indicador da falência do sistema de abastecimento na
região”, adverte o engenheiro hidráulico.
O
primeiro diagnóstico acerca da seca mais intensa do último século que atinge o
Nordeste brasileiro, é de que existe água disponível para o consumo humano no
Ceará, na Paraíba e no Rio Grande do Norte, mas para ter acesso a ela é preciso
resolver o problema da má gestão dos recursos hídricos na região, afirma João
Abner Guimarães Júnior à IHU On-Line.
Na
entrevista a seguir, concedida por telefone, o engenheiro hidráulico explica
que a seca continua agindo na região, e os caminhões-pipa chegam a transitar
300 quilômetros para buscar água no litoral nordestino e abastecer as cidades
do interior do Rio Grande Norte, por exemplo, a um custo de até 100 reais o
metro cúbico da água.
Entre as regiões que enfrentam uma situação de
crise de abastecimento de água para o consumo humano, João Abner Guimarães
Júnior destaca a situação de Seridó, no sertão nordestino, que poderia ser
abastecida pela barragem Armando Ribeiro Gonçalves, que fica a 70 quilômetros
de distância. “As duas maiores cidades da região, entre elas, Caicó, que tem 50
mil habitantes, estão na iminência de colapso total de água, apesar de ter água
na região”, informa.
De
acordo com o professor, a situação de falta de acesso à água não é uma
peculiaridade do Rio Grande do Norte, ao contrário, “se repete na Paraíba e,
por incrível que pareça, no Ceará também, que é o estado que detém 50% das
reservas de água do Nordeste”.
Para
resolver esse quadro, o engenheiro hidráulico propõe a construção de adutoras
de caráter regional, “as quais seriam sustentadas pelos maiores reservatórios,
aqueles que têm reserva de água substancial apesar da seca”. Segundo ele, essas
obras tornariam a água que já está disponível nos estados acessível à
população. Contudo, lamenta, atualmente esses empreendimentos competem recursos
públicos da União com a obra da transposição do Rio São Francisco, “que, se
funcionar, só vai beneficiar menos de 5% do semiárido”, adverte.
João
Abner Guimarães Júnior é doutor em Engenharia Hidráulica e Saneamento,
professor nos cursos de Engenharia Sanitária e Engenharia Civil da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte – UFRN. Sobre a transposição do Rio São
Francisco, publicou diversos artigos, tais como A transposição do Rio São
Francisco e o Rio Grande do Norte, O lobby da transposição e O mito da
transposição.
IHU
On-Line - O senhor informa que hoje em Seridó, no Rio Grande do Norte, se enfrenta
a maior seca da história, mas, ao mesmo tempo, na região existe a segunda maior
reserva de água. Qual é o problema que faz com que na região muitas cidades
enfrentem uma crise de abastecimento hídrico?
João
Abner Guimarães Júnior – Exato. A 70 quilômetros da cidade de
Seridó, encontra-se a segunda maior reserva de água do Nordeste. A seca, na
verdade, atinge a agricultura, a pecuária e o consumo de água humano. Seridó
tem tradição na pecuária, e a economia da região está sofrendo um efeito
prolongado por causa da seca há quase quatro anos, e não adianta sugerir que
seja feito um processo de irrigação, porque não tem água para irrigação. Apesar
dessa situação, é preciso ter foco na questão do abastecimento humano. Hoje há
um recorde de caminhões-pipa circulando no Nordeste, e temos de enfrentar essa
questão, porque esse é o sistema de abastecimento mais absurdo do mundo, que
está entregando água no interior do estado do Rio Grande do Norte a um custo
que chega a até 100 reais o metro cúbico da água.
Esse
tipo de situação tem solução, porque tem água no Nordeste, e a seca está nos
mostrando isso. Mas, mesmo assim, 70% da população do Rio Grande do Norte é
abastecida pela água que vem do litoral, e 40% da população do interior tem à
sua disposição a segunda maior barragem acima do Rio São Francisco, a barragem
Armando Ribeiro Gonçalves. Além disso, existem outras duas reservas de água,
mais duas barragens menores, as quais têm boas reservas de água subterrânea.
Então, o primeiro diagnóstico é justamente esse, de que a seca está mostrando
que tem água no Nordeste, no Ceará, na Paraíba, mas o que existe é um problema
de gestão dessa água. Numa situação como essa que estamos enfrentando
atualmente, o consumo humano deve ser prioritário, e por isso precisamos de
estrutura para alocar essa água de modo que ela seja usada para o
abastecimento.
As
maiores cidades da região de Seridó ficam a 70 quilômetros dessa barragem, mas
elas não são abastecidas com a água da barragem. As duas maiores cidades da
região, entre elas, Caicó, que tem 50 mil habitantes, estão na iminência de
colapso total de água, apesar de ter água na região. Existem 700 milhões de
metros cúbicos de água armazenados, apesar da ausência de uma política de
gestão de água das barragens. A barragem se encontra com a comporta aberta, e
está liberando 5 mil litros de água por segundo, e o consumo do estado é de 6
ou 7 mil litros. Então, isso mostra que tem água para o abastecimento.
IHU
On-Line - Via
a barragem Armando Ribeiro Gonçalves, é possível abastecer a cidade, deixando
assim de utilizar os caminhões-pipa?
João
Abner Guimarães Júnior – Sim, via adutoras. Temos uma tradição de adutoras na
região. A maior delas tem 350 quilômetros e a segunda maior tem 250
quilômetros, e outra ainda tem 170 quilômetros. Então, se houvesse uma adutora
que capturasse a água dessa barragem e abastecesse essas cidades, ela seria a
quarta maior adutora do estado. Ela ainda não foi construída, mas não há um
problema técnico que impeça que isso seja feito.
Para
você ter uma ideia, essa barragem hoje está abastecendo cidades e comunidades
rurais da região mais alta do estado, que é a Chapada da Borborema, que tem um
desnível de 700 metros, ou seja, a água está sendo bombeada por cima dessa
chapada. Então, se há condições de levar água a essa região, também há
condições de levar água para Caicó, que está a 70 quilômetros de distância da
barragem. Então, tecnicamente é tudo muito viável e economicamente também. Uma
adutora que resolveria o problema de água em Caicó custaria em torno de 35 milhões,
ou seja, quase nada em relação ao que o governo federal vem investindo na área
de recursos no Nordeste.
“Quase toda a população das cidades urbanas do
interior que não tem acesso à água potável está comprando a água que vem de
Natal”
IHU
On-Line - E
qual é a distância que os caminhões-pipa percorrem para buscar água e abastecer
as cidades que estão enfrentando crise de abastecimento?
João
Abner Guimarães Júnior – O mais grave é que os caminhões-pipa estão pegando água
no litoral para abastecer as zonas rurais das cidades que vão entrar em colapso
por conta da falta de abastecimento. Às vezes, a distância entre a região em
que se pega água e onde se abastece chega a ser de até 300 quilômetros. Quer
dizer, o carro-pipa não está pegando água da barragem mais próxima, o que é um
absurdo. Por isso, o governo do estado tem de preparar uma infraestrutura para
que o carro-pipa pegue água das reservas do interior, porque isso geraria um
custo muito menor e seria possível abastecer as cidades num tempo menor também.
Alguns
caminhões-pipa particulares estão atendendo parte da população e cobrando 100
reais o metro cúbico da água, como eu disse antes. Quase toda a população das
cidades urbanas do interior que não tem acesso à água potável está comprando a
água que vem de Natal.
IHU
On-Line - Quantas
cidades do Rio Grande do Norte estão enfrentando esse problema de
abastecimento?
João
Abner Guimarães Júnior – Praticamente todas as cidades que estão fora dos
sistemas de adutoras. A estimativa é de que até o final do ano cerca de 40
cidades terão o sistema de abastecimento completamente comprometido; isso
representa 20% da população. Por sorte, temos uma grande rede de adutoras, que
se estendem por mais de dois mil quilômetros, e que atendem mais de 50% das
cidades do interior do estado.
Então,
hoje tem dois tipos de consumidores de água no interior do estado: os
consumidores privilegiados, que têm acesso à água potável, que é fornecida pelo
sistema de adutoras; e aqueles que estão fora do sistema e que estão
enfrentando o colapso do abastecimento de água.
Mas
essa situação do Rio Grande do Norte se repete na Paraíba e, por incrível que
pareça, no Ceará também, que é o estado que detém 50% das reservas de água do
Nordeste. No Ceará existem várias cidades que não estão sendo abastecidas pelos
maiores reservatórios de água e isso é uma grande contradição, porque os
maiores reservatórios de água atendem à irrigação para uso agrícola, embora,
com a crise, esteja sendo restringido o acesso hídrico aos pequenos
agricultores. As áreas de irrigação de maior escala estão sendo atendidas por
cinco metros de água por segundo, que está sendo liberada pela comporta da
barragem Armando Ribeiro Gonçalves, atendendo as exigências de irrigação para a
exportação, principalmente da banana.
De
outro lado, muitas cidades do Ceará também não têm acesso à água das grandes
barragens e são sustentadas por reservatórios menores, que já secaram. Essa é
uma realidade do Ceará, da Paraíba, do Rio Grande do Norte e do interior de
Pernambuco também.
“A estimativa é de que até o final do ano cerca de
40 cidades terão o sistema de abastecimento completamente comprometido; isso
representa 20% da população”
IHU
On-Line - A
solução do abastecimento de água para o consumo depende da construção de novas
adutoras?
João
Abner Guimarães Júnior – Sim, na prática seria preciso uma infraestrutura de
adutoras de caráter regional, as quais seriam sustentadas pelos maiores
reservatórios, aqueles que têm reserva de água substancial apesar da seca.
Defendo
que essa rede de adutoras deve se estender para a zona rural, porque a
população rural está cada vez menor, e corresponde a cerca de 20% dos
municípios do sertão. Como o consumidor rural consome menos que o consumidor
urbano, um acréscimo de 10% a mais nessas vazões que comprometem a reserva de
água da região resolveria o abastecimento de água rural. Defendo um programa de
água para todos, com adutoras, usando como exemplo o Programa Luz para Todos. O
custo para levar energia para todas as casas do Nordeste foi de aproximadamente
mil reais por pessoa e, segundo minha estimativa, com um valor menor do que
esse, entre 500 e mil reais, é possível levar água através de uma adutora para
todas as pessoas da região. Esse deveria ser o principal projeto do governo
federal para acabar com o carro-pipa do Nordeste.
IHU
On-Line
- Quantas adutoras seriam necessárias?
João
Abner Guimarães Júnior – Na verdade, as maiores adutoras no meu estado já estão
prontas, e a única região que não tem adutoras é a de Seridó. A outra
região que está numa situação de colapso de abastecimento, que é a região de
Alto Oeste, está quase concluindo o projeto de um grande adutor, que será
abastecido pela segunda maior barragem da região, e essa localidade resolverá o
problema em relação ao abastecimento urbano. O que defendo é que as adutoras
que hoje atendem a população urbana têm capacidade de atender a população
rural.
IHU
On-Line - E
qual tem sido o papel da indústria da seca nesse período de crise intensa?
João
Abner Guimarães Júnior – A indústria da seca está atuando como sempre atuou. Se
você for ver os investimentos do governo federal para o Nordeste, verá que
existe uma ampliação de recursos para infraestrutura hídrica para os períodos
de seca como esse que estamos enfrentando, e a indústria da seca atua nessa
plataforma. Nesse momento, a obra que o governo federal está desenvolvendo na
região é a transposição do Rio São Francisco, que está com muitas dificuldades
por conta da restrição de recursos que o governo está fazendo com todos os
investimentos, e isso vai atingir diretamente a obra da transposição.
De
outro lado, está havendo uma forte articulação das bancadas do estado da
Paraíba para pressionar o governo federal a retomar as obras da transposição do
Rio São Francisco, como se isso fosse uma prioridade. Mas a prioridade no
momento atual é fazer medidas de curto prazo, porque estamos atravessando a
maior seca do século, temos o maior problema de carro-pipa da história, e esse
já é um indicador da falência do sistema de abastecimento humano na região.
Então, a prioridade deveria ser insistir em tornar a água que já existe aqui,
acessível, ou seja, deveria se investir num projeto que permitisse que essa
água chegasse às pessoas de um modo que não seja através do carro-pipa, como
está chegando hoje.
“Nós estamos pagando o preço da obra da transposição
agora, com essa seca”
IHU
On-Line -
Como está acontecendo o debate público sobre essa proposta de construir
adutoras e encontrar outros meios de tornar a água existente acessível à
população? Como o poder público se manifesta?
João
Abner Guimarães Júnior – Tentei no ano passado dar início a esse debate, durante
o período eleitoral. À época, fizemos uma mobilização pedindo uma solução
definitiva para o abastecimento de água. A população se mobilizou, fechou as
duas principais ruas da cidade, e houve uma promessa do governo do estado de
resolver o problema, mas os recursos que deveriam ter vindo para a construção
da obra não estão chegando.
Para
se ter ideia, no Rio Grande do Norte está sendo construída a segunda maior
barragem do estado, que é a barragem de Oiticica, e a prioridade em relação às
verbas é para essa barragem. Há pouco tempo o Ministro da Integração esteve
aqui anunciando recursos para a seca, mas a maior parte dos recursos foi para a
barragem. Entretanto, o fato é que essa obra não vai resolver em nada o
problema da seca atual. Então, está faltando foco em soluções de caráter de
curto prazo e emergencial. O debate não é fácil, mas no próximo mês teremos uma
nova discussão na Assembleia para tratar desse assunto. Alguns deputados já
estão começando a se interessar por essa temática, mas a maioria deles quer
fortalecer o lobby para dar continuidade à transposição do Rio São Francisco.
IHU
On-Line - Como
a obra da transposição dificulta o enfrentamento da seca na região Nordeste?
João
Abner Guimarães Júnior – O principal problema é que esse é o único projeto que o
governo federal tem para o Nordeste e para o semiárido. Isso é o mais absurdo.
Já comprovamos a incapacidade dessa obra, porque ela terá uma influência de
apenas 5% no semiárido. Então, como um projeto que, se funcionar, só vai
beneficiar menos de 5% do semiárido, pode ser encarado como obra prioritária? E
como essa pode ser a única obra que o governo tem para a região em relação aos
recursos hídricos?
Essa
obra se transformou num grande atoleiro, porque consome muitos recursos
públicos. Para o Nordeste, teria sido melhor se essa obra já estivesse
concluída, porque pelo menos poderíamos comprovar logo a sua ineficiência, mas
enquanto a obra não for concluída, ela ainda vai continuar consumindo muitos
recursos e vai disputar recursos do orçamento da União, especialmente numa
época como essa, de crise, com todo e qualquer investimento que seja feito na
região. Por isso digo que, na hora em que o meu estado embarcou nesse projeto
da transposição, é como se ele tivesse vendido a alma ao demônio. Nós estamos
pagando o preço da obra da transposição agora, com essa seca. Mas, neste
momento, seria preciso foco e esforço para aplicar dinheiro em obras efetivas,
que tivessem um efeito imediato.
Não
tem como avaliar o malefício que uma obra dessas não só vem trazendo, como vai
trazer para o futuro. A transposição sinaliza a paralisação do Estado
brasileiro em adotar ações mais efetivas na região.
“A transposição sinaliza a paralisação do Estado
brasileiro em adotar ações mais efetivas na região”.
IHU
On-Line - Que
relação estabelece entre a Operação Lava Jato e a obra da transposição do Rio
São Francisco?
João
Abner Guimarães Júnior – Tudo faz parte da mesma conjuntura, não temos como
separar uma coisa da outra, porque os atores são os mesmos e os interesses
também. O primeiro ponto que deveríamos destacar é a falta de compromisso com
os aspectos técnicos, ou seja, como uma obra dessas, em seu laudo ambiental,
não detectou nenhum impacto ao rio.
Todas
as denúncias que foram feitas em relação à inviabilidade ambiental e econômica
da transposição, e em relação ao próprio custo da água, não foram consideradas.
Estima-se que a água oriunda da transposição vai custar 400 milhões de reais
por ano, só com a manutenção desse sistema. Mas quem vai pagar essa conta?
Para
essa obra poder continuar, ela tem de ter um interesse econômico e político,
nos moldes dos que estão sendo denunciados hoje na operação Lava Jato.
IHU
On-Line - Deseja
acrescentar algo?
João
Abner Guimarães Júnior – Teríamos de fazer justiça, porque estamos atravessando
um período de seca. Eu já passei outros períodos de seca, vi uma grande seca em
1958, depois em 1970, e assim por diante. Mas, apesar da dificuldade, outro
aspecto da seca que tem de ser evidenciado é a importância dos programas
sociais que o governo desenvolveu na região, como o Programa Bolsa Família, o
Programa Luz para Todos. Se não fossem esses programas sociais, a realidade
seria outra. Hoje não enfrentamos problemas relacionados a invasões e saques.
Por isso, é preciso avançar na questão do abastecimento de água para consumo humano.
É possível, factível e existem recursos para isso, mas é preciso de uma
articulação política para eliminar o carro-pipa do Nordeste. A última
seca mostra que nós temos condições de fazer isso, porque temos oferta hídrica;
ou seja, a seca nos mostra que a região tem água para o consumo humano, e se
nós gerirmos a água adequadamente em relação à população, a realidade da seca
será outra. (ecodebate)
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