“Numa situação de crise aguda, que poderemos ter num futuro próximo, já
que a possibilidade de colapso ainda não foi descartada, temos de optar por
fontes não potáveis para fins não potáveis”, sugere o especialista em
engenharia de Saneamento e ex- tecnólogo da Sabesp.
Os
dados divulgados pela Companhia de Saneamento Básico do Estado de São
Paulo – Sabesp, de que o índice de volume útil de água é de 15,3% no
Sistema Cantareira, “consideram tanto a primeira quanto a segunda fase volume
morto. Na realidade, se fosse considerado só o volume útil, como se utilizava
antes, o volume de água hoje seria 13,9% negativo”, ou seja, há um déficit de
“14 mil litros por segundo”, diz Marzeni Pereira à IHU On-Line. De acordo com
ele, atualmente a região. De acordo com ele, atualmente a região
Metropolitana de São Paulo tem um “déficit de mais de 30 mil litros por
segundo, porque a entrada de água nas represas é muito menor do que sai para o
tratamento”.
Na
entrevista a seguir, concedida por telefone, o ex-tecnólogo da Sabesp, que
atuou na empresa durante 23 anos, conta os detalhes da crise hídrica que
assusta a região metropolitana de São Paulo e diz ter sido demitido da empresa
por conta do seu “ativismo”, ao dar detalhes da crise de abastecimento para a
imprensa.
Segundo
ele, o déficit dos sistemas de abastecimento em São Paulo já estava sendo
observado há mais de uma década, em 2004 o Cantareira quase secou e chegou a
1,6% de sua capacidade. Em 2009, o Sistema Cantareira estava
com um nível de água de 99,7%, em 2010 o pico baixou para 93%, em 2011, para
66%, em 2012 caiu para 62% e desde então só vem caindo. “Nesses períodos a
quantidade de água que se distribuía era maior do que a quantidade de água que
chegava aos reservatórios”, relata.
Apesar
da situação de crise ter sido demonstrada em estudos da Secretaria de Meio
Ambiente, Pereira frisa que “a Sabesp e o governo do estado de São Paulo
optaram por adotar uma política de expansão de venda de água”. Na avaliação
dele, “o governo deveria ter tomado medidas para evitar que a crise de
abastecimento ocorresse, mas elas não foram tomadas. Pelo contrário, a situação
foi negligenciada”.
Pereira
disse ainda que a crise de abastecimento poderia ter sido evitada se as perdas
de 30% de água do sistema de distribuição tivessem sido controladas. “Esse
valor é o quanto o Sistema Cantareira fornece de água, hoje. Logo, seria
possível termos evitado essa situação se tivesse se reduzido pelo menos metade
dessas perdas. Se isso tivesse sido feito, de 2009 para cá, teríamos minimizado
a crise”.
Marzeni
Pereira é graduado em tecnologia e pós-graduado em Engenharia de Saneamento
Básico pela Universidade de São Paulo – USP. Ele integra o Coletivo Água Sim,
Lucro Não!
IHU
On-Line - Qual é a atual situação do Sistema Cantareira? Ainda há risco
de crise de abastecimento em São Paulo?
Marzeni
Pereira – A Companhia de Saneamento Básico do Estado de São
Paulo – Sabesp divulga um índice de 15,3% de volume útil de água no Sistema
Cantareira, só que esse volume considera tanto a primeira quanto a segunda fase
volume morto. Na realidade, se fosse considerado só o volume útil, como se
utilizava antes, o volume de água hoje seria 13,9% negativo. Essa é a atual
situação do Sistema Cantareira: 13,9% negativo. Apesar do Sistema Cantareira
ser o maior, o que mais preocupa hoje, não é ele, mas, sim, o Sistema do Alto
Tietê, que vive uma situação dramática, porque foi utilizado para socorrer o Sistema
Cantareira. Hoje, o Alto Tietê está apenas com 13,5% de sua capacidade, já
considerando uma pequena reserva de volume morto, de 6,9%. Se não chover nos
próximos 90 dias — esperamos que chova — o Sistema Alto Tietê entrará em
colapso, acaba a água.
IHU
On-Line - Por que, quando se fala da crise de abastecimento em São
Paulo, se dá mais evidência ao Sistema Cantareira do que ao do Alto Tietê?
Marzeni
Pereira – O Sistema do Alto Tietê abastece cerca de 4,5
milhões de pessoas, e o Cantareira abastecia, antes da crise, 9 milhões de
pessoas, por isso se dá tanta importância para ele. Mas o Alto Tietê também é
muito importante e, se ele secar, teremos um grave problema de abastecimento.
Recentemente, passou a ser tirada uma vazão maior do Sistema Cantareira do que
estava sendo retirada no início do ano. Como ele foi poupado durante um
período, voltou a ser usado com mais intensidade e está tratando cerca de 15
mil litros de água por segundo. Ontem (02-09-2015), por exemplo, o Sistema
Cantareira tratou 17,2 mil litros de água por segundo; só que no Cantareira
entraram, pelos rios — ou seja, pela afluência —, 6 mil litros por segundo, e
saíram, no tratamento, 17 mil litros por segundo. Além disso, foi dada uma
descarga de 3 mil litros por segundo para a região de Campinas. Então, houve
uma entrada de 6 mil litros de água e uma saída total de 20 mil litros. Isso
mostra que há um déficit de 14.000 litros por segundo.
A
entrada de água no Alto Tietê foi de 5 mil litros por segundo, enquanto a saída
foi de 15 mil litros por segundo, ou seja, teve um déficit de 10 mil litros. Em
todos os sistemas que existem em São Paulo, o Alto Tietê, Alto Cotia,
Cantareira, Rio Grande, Rio Claro, Guarapiranga, a entrada
total de água foi de 26 mil litros por segundo e o tratamento, de 58 mil litros
por segundo. Então, há um déficit de mais de 32 mil litros por segundo, porque
a entrada de água é muito menor do que é tratado e distribuído. Essa
situação é insustentável e pode se tornar ainda pior nos próximos meses, se não
chover. Pois, teremos meses mais quentes, aumentando a evaporação, a
infiltração no solo, bem como o consumo.
IHU
On-Line - Se esses dois sistemas maiores, Alto Tietê e Cantareira, colapsarem,
os demais sistemas de abastecimento teriam condições de abastecer o restante da
cidade?
Marzeni
Pereira – Se eles entrarem em colapso, os outros sistemas que
existem não têm condições de manter o abastecimento. Rio Claro, por exemplo,
ontem, tinha 8 bilhões de litros d’água, Rio Grande tinha 90 bilhões, o Cotia tinha
8,75 bilhões de litros, o Guarapiranga, 115 bilhões, o Alto Tietê tinha 70
bilhões de litros, e o Cantareira, que só tem o volume morto, 349 bilhões. A
capacidade do volume morto do Cantareira é maior do que a soma dos sistemas
Guarapiranga, Alto Cotia, Rio Grande e Rio Claro. A capacidade dele só não é
maior do que a do Alto Tietê, que tem 520 bilhões de litros, em oposição a 510
bilhões do volume morto do Cantareira.
“O déficit desses sistemas está sendo observado
desde 2010”
IHU
On-Line - Desde quando os sistemas de abastecimento de água vêm atuando
com déficit?
Marzeni
Pereira – O déficit desses sistemas está sendo observado há
mais de uma década, mas desde 2010 a queda foi constante. Em 2009, eles
chegaram a 100%, e a partir de 2010 o nível de água começou a cair e já havia
indícios de que haveria uma crise. Em 2009, o Sistema Cantareira estava com um
nível de água de 99,7%, em 2010 o pico baixou para 93%, em 2011, para 66%, em
2012 caiu para 62% e desde então só vem caindo. Nesses períodos a quantidade de
água que se distribuía era maior do que a quantidade de água que chegava aos
reservatórios. Ou seja, pelo menos, desde 2010 a contabilidade não estava
fechando, mas a Sabesp e o governo do Estado de São Paulo optaram por adotar
uma política de expansão de venda de água e começaram a procurar mais clientes,
como indústrias, que foram convencidas a comprar água da Sabesp.
Muitas dessas empresas utilizavam água de poços, mas foram convencidas a
comprar água da Sabesp, com preços mais baixos. Mas o problema não foi só esse.
De outro lado, também houve uma expansão do consumo, se estendeu mais redes de
água e, em contrapartida, não houve expansão dos mananciais.
IHU
On-Line - A crise poderia ter sido evitada? Que percentual da crise
pode ser atribuído à falta de chuvas e que parte da crise está relacionada a
problemas técnicos ou de gestão?
Marzeni
Pereira – Aí está a questão. Muitas pessoas dizem que não era
possível evitar a crise, mas se não era possível antes, não será possível fazer
nada daqui para frente. Mas o fato é que já existiam vários estudos mostrando
que haveria problemas de abastecimento. Vou citar um estudo que o próprio
governo do Estado de São Paulo tem desde 2009, o qual foi elaborado pela
Secretaria do Meio Ambiente, intitulado Cenários Ambientais 2020, que traçava
três cenários: o cenário de referência, que é o mais provável de acontecer; o
cenário alvo, que é aquele que se almeja; e o cenário ideal, que é aquele em que
é aquele em que não haveria problema algum. O cenário de referência da
Secretaria de Meio Ambiente já apontava que entre 2015 e 2018 haveria uma
guerra pela água em São Paulo. Inclusive, a página 39 desse documento traça um
cenário catastrófico. Esse cenário era o mais provável de acontecer, e o
governo — a instituição, não estou falando de uma gestão específica — já tinha
esse estudo na mão, porque inclusive, foi ele quem o encomendou.
Nesse
sentido, o governo deveria ter tomado medidas para evitar que a crise de
abastecimento ocorresse, mas elas não foram tomadas. Pelo contrário, a situação
foi negligenciada. Então, a crise de abastecimento poderia ter sido evitada até
este momento. Por exemplo, a perda no sistema de água, por causa do vazamento,
é de 30% em São Paulo. Esse valor é o quanto o Sistema Cantareira fornece de
água, hoje. Logo, seria possível termos evitado essa situação se tivesse se
reduzido pelo menos metade dessas perdas. Se isso tivesse sido feito, de 2009
para cá, teríamos minimizado a crise.
IHU
On-Line - Quais são as causas da perda de água na distribuição?
Marzeni
Pereira – As perdas na distribuição de água de água
têm algumas causas, e a primeira delas é o serviço mal feito. A Sabesp poderia
fazer esse serviço com mão de obra própria, mas opta por terceirizar essa
atividade, embora muitas empresas não tenham mão de obra qualificada para a
realização do serviço, acrescente aí redução de custo pelas empreiteiras e
serviço feito às pressas. O segundo problema é o uso dos materiais: ainda se
usa materiais ultrapassados, como PVC e Ferro Fundido, que a cada seis metros
tem um ponto vulnerável de vazamento. Hoje já existem materiais mais modernos,
que têm menos emendas. Tudo isso poderia evitar os vazamentos da água. Com
certeza se os vazamentos fossem controlados, não teríamos a crise de
abastecimento que existe hoje.
Então,
diria que a crise é, em parte, um problema de má gestão, somada com o problema
climático, e ainda com o desmatamento em larga escala, do Cerrado, da Amazônia,
que também, é um problema de gestão federal. Tudo isso somado acabou
acarretando a crise de abastecimento de água em São Paulo.
“Se o vazamento fosse controlado, não teríamos a
crise de abastecimento que existe hoje”
IHU
On-Line - Você faz algumas críticas à política da Sabesp de vender água
com um valor reduzido a grandes empresas que utilizavam água de poços. Que
alternativas poderiam ter sido adotadas nesse sentido? Que percentual de água
essas empresas utilizam?
Marzeni
Pereira – Muitas das empresas tinham poços e várias ainda
continuam usando poços. O consumo de água do setor industrial não é igual ao
residencial: o consumo residencial na região metropolitana de São Paulo é
responsável por cerca de 80% da água que a Sabesp vende, e os outros 20% são
divididos entre o consumo industrial, público e comercial. Mas mesmo que esses
grandes consumidores utilizassem poços, isso tem impacto na quantidade de água
reservada nas represas, porque à medida que se retira água do subsolo, parte da
recarga do subsolo é feita pelas represas. Então, se a Sabesp
não vendesse a água, essas empresas iriam utilizar a água do subsolo do mesmo
jeito.
Os
grandes consumidores que compram água num valor abaixo daquele vendido
normalmente, não causam grande impacto, o problema é moral: como se vende água
para grandes consumidores utilizarem para fins não potáveis, como dar descarga
em banheiros, e se vende água num valor maior para as escolas, que vão usar
para fins potáveis?
Do
ponto de vista das residências, também tiveram políticas para aumentar o
consumo. Antes de 1990, era comum as pessoas terem poços rasos em casa, mas foi
desenvolvida uma política do Estado, nos últimos 20 anos, para que as pessoas
fechassem os poços, com a justificativa de que eles estariam contaminados. Mas
não foram feitas análises da água para verificar se de fato a água de todos os
poços estava ou não contaminada. Eu acredito que grande parte da água
estivesse, sim, contaminada, mas só é possível afirmar isso depois de fazer
análise da água. Mas por que houve esse empenho em fechar os poços? Porque
havia uma política de aumento da venda de água para aumentar a lucratividade,
ou seja, aumentar a arrecadação da empresa.
IHU
On-Line - Valeria a pena tratar a água dos poços ou utilizá-las de
algum modo?
Marzeni
Pereira – Poderia usar a água dos poços para fins não
potáveis. Numa situação de crise aguda, que podemos ter num futuro próximo, já
que a possibilidade de colapso ainda não foi descartada, temos que optar por
fontes não potáveis para fins não potáveis, ou seja, fontes de água que as
pessoas podem utilizar para regar plantas e jardins, para dar descarga no vaso
sanitário, etc. Nesses casos, a água não precisa ser potável. Até mesmo para
lavar roupa, não precisa ser água potável, tem que ser limpa, do mesmo modo que
para tomar banho. Nós tomamos banho em rios e no mar e a água não
necessariamente é potável.
Não
estou dizendo que não temos que tomar cuidado com a qualidade das águas, mas
numa situação de crise, temos que optar. Em minha casa tenho captação da água
das chuvas, mas filtro, trato e faço o controle do PH dessa água, e a utilizo
para tomar banho, lavar roupa. Claro que nem sempre teremos água de chuva, mas
muitas vezes tenho mais água da chuva do que da rede pública.
IHU
On-Line - Esse tipo de reutilização da água faz parte de uma política
de reuso de água?
Marzeni
Pereira – Não consideramos a utilização da água da chuva
como reuso, porque a água de reuso é aquela que já foi utilizada uma vez, por
exemplo, a água do banho que se coleta e se joga no vaso sanitário, ou a água
que é acumulada na máquina de lavar roupa e é reutilizada. Só que o reuso de
água pode ser feito em grande escala também. Em São Paulo há um volume enorme
coletado de esgoto, mas o tratamento é muito pequeno, de cerca de 18 mil litros
por segundo, enquanto o tratamento de água, em tempos normais, é de cerca de 73
mil litros por segundo. Então há uma diferença muito grande em relação ao que
se trata de água e de esgoto.
Agora,
parte ou a totalidade da água tratada de esgoto poderia ser utilizada para fins
não potáveis. Uma indústria poderia utilizar a água do esgoto tratada, não
potável, para dar descarga no vaso sanitário ou refrigerar equipamentos, por
exemplo. Isso representaria uma redução na captação de água em novos
mananciais. Imagina quanto não aumentaríamos de disponibilidade de água.
Ao
invés de buscar novos mananciais para serem explorados, poderíamos criar
alternativas que já estão na região metropolitana de São Paulo. Para você ter
uma ideia, somente aqui nessa região, temos uma capacidade de coletar, em média
anual, 15 mil litros de água de chuva por segundo. Isso representa o que já
está tratando no Cantareira hoje. Entretanto, a coleta e uso das águas das
chuvas não podem ser feitam sem técnicas e critérios. É necessário um programa
governamental para isso, com verba, técnicos e projeto. Caso contrário, a
população fazer coleta de água de chuva sem critérios podem ser gerados outros
problemas de saúde pública, como epidemia de dengue, leptospirose, por exemplo.
“Somente na região metropolitana de São Paulo, temos
uma capacidade de coletar, por ano, 15 mil litros de água de chuva por segundo.
Isso representa o que já está faltando no Cantareira hoje”
IHU
On-Line - E qual é a viabilidade de tornar um sistema de reuso de água
disponível para a população?
Marzeni
Pereira – Isso é perfeitamente possível, de forma planejada,
só é preciso fazer tubulações das estações de tratamento de esgoto para postos
de gasolinas, empresas, ou seja, basta ter uma tubulação exclusiva de água de
reuso para isso. A utilização de carro-pipa também é uma alternativa que já
existe, e a prefeitura de São Paulo já lava as ruas da cidade com água de
reuso. O Polo Petroquímico do ABC também utiliza água de reuso, 500 litros por
segundo fornecida pela Sabesp, para atividades não potáveis. Mas ainda é muito
tímida a utilização. Soluções existem, o problema é que não querem gastar
dinheiro, porque o interesse econômico fala mais alto do que os interesses
ambientais e sociais.
IHU
On-Line - Em que outros mananciais o Estado de São Paulo e a Sabesp
estão buscando água para conter a crise de abastecimento?
Marzeni
Pereira – Já está em construção o sistema chamado São
Lourenço, que trará água do Vale do Ribeira, que dará um fôlego de 5 mil litros
por segundo, a um custo de R$ 2,2 bilhões. Mas se esse dinheiro fosse investido
nessas alternativas que mencionei, poderia haver uma maior disponibilidade de
água.
Outra
possibilidade encaminhada pelo governo, que já está em fase de licitação, é
trazer em torno de 5 mil litros por segundo de água do Rio Paraíba do Sul e
interligar à represa Atibainha no Sistema Cantareira. Essas são obras
extremamente caras, que causam um impacto ambiental grande e que poderiam ser
evitadas se cuidássemos melhor das águas que temos, porque existem muitos rios
em São Paulo, mas estão todos poluídos.
Em
São Paulo existem muitos rios, e a incidência de chuvas no estado é boa: chove
quase três vezes o que chove no Sertão Nordestino. Só que esses rios são
abastecidos, essencialmente, por esgotos. Se parar de chover dois meses, por
exemplo, os córregos continuam tendo fluxo e isso significa que são abastecidos
por esgotos. Mas a questão é: quem joga esgoto nesses córregos? São as
companhias de saneamento e, em São Paulo, a Sabesp contribui muito com a vazão
dos córregos.
Os
nossos rios poderiam ser utilizados como mananciais, mas não são utilizados
porque não cuidamos deles. Não vou atribuir a culpa disso somente a essa gestão
atual do governo e da Sabesp, claro que não, isso seria leviandade. Pois houve
sempre uma política de desprezo em relação aos rios; eles eram vistos como algo
sem importância, mas agora estamos pagando essa conta pela negligência.
IHU
On-Line - De quem é a responsabilidade pelo saneamento dos rios?
Marzeni
Pereira – Existem vários níveis de responsabilização. O
governo federal deveria ter uma política de recursos hídricos mais séria,
deveria atuar mais através da Agência Nacional de Águas – ANA. Os governos
estaduais, especialmente São Paulo, têm a política de saneamento e gestão sobre
as águas, só que essa gestão não é eficiente. Em São Paulo existe a Agência
Reguladora de Saneamento e Energia do Estado de São Paulo - Arsesp, que deveria
fiscalizar e proibir que se jogasse esgoto nos córregos. Os municípios, que são
os poderes concedentes, também deveriam atuar, fiscalizar e exigir que as
empresas tratassem os esgotos antes de lança-los nos rios.
No
entanto, vários municípios também têm suas empresas de saneamento, algumas têm
o departamento de água e esgoto, que são os DAE, outros têm serviços autônomos
de água e esgoto e, no caso de São Paulo, vários municípios não são geridos
pela Sabesp, pela administração estadual. Então, grande parte desses municípios
não trata seus esgotos em quantidade e qualidade suficiente para que os corpos
d’água não sejam poluídos. Em Guarulhos, por exemplo, pouco se trata esgoto. Em
Mogi das Cruzes, no Alto Tietê, jogam esgoto in natura nos rios. Mas, a maior
parte, a responsabilidade é do governo do Estado, que tem a Sabesp como empresa
de saneamento e tem recursos.
“A Sabesp tem de voltar a ser uma empresa pública,
ela tem que ser reestatizada”
IHU
On-Line - Em que consiste o plano de rodízio da Sabesp? Ele é uma
alternativa adequada ou não?
Marzeni
Pereira – O rodízio da Sabesp — que ela não assume — foi um
dos motivos da minha demissão, depois de atuar na empresa por 23 anos, porque
eu disse aos órgãos de imprensa — fui entrevistado pelo El País — que a Sabesp
estava fazendo um rodízio, ou seja, a Sabesp fecha a saída do reservatório e
faz o rodízio.
O
rodízio é uma forma de segurar mais água. Caso a Sabesp não tivesse feito o
rodízio, a água não teria sido suficiente para abastecer a população até o mês
de fevereiro, que foi quando começou a chover. O rodízio, infelizmente, foi
utilizado muito tardiamente.
A
Sabesp tinha um plano de rodízio já no início de 2014, mas em função das
pressões eleitoreiras – tinha uma eleição no meio do caminho – e em função de
uma Copa do Mundo, o rodízio foi postergado, porque não queriam mostrar que o
estado mais rico do Brasil, em um dos países mais ricos em água do mundo,
estava enfrentando um problema de abastecimento de água em pleno período de
Copa. Portanto, para evitar isso, não fizeram o rodízio como deveria ter sido
feito. À época, o rodízio era necessário para garantir uma gestão segura do
abastecimento, do ponto de vista da quantidade de água.
Problemas
do rodízio de água
Por
outro lado, fazer rodízio também é um problema, porque pode contaminar a rede
de abastecimento. Toda vez que se paralisa uma rede de abastecimento de água,
aquele volume que tem dentro da rede precisa ser ocupado, pode ser por meio de
ar ou qualquer outra substância que estiver fora, qualquer outro fluido, se a
rede tiver vazamento. Onde tiver vazamento, há risco de água contaminada entrar
na rede e contaminar, por exemplo, a água que está na caixa d’água, nas
residências.
O
rodízio, além do problema da qualidade da água, pode trazer outros problemas.
Por exemplo, uma informação que é pouco veiculada na mídia: toda vez que se faz
rodízio, entra ar na rede, e esse ar, depois, tem que sair e sairá no cavalete
das pessoas e fará o hidrômetro girar favorável ao aumento da conta de água.
Então, se todos os dias o abastecimento de água é paralisado, significa que
todos os dias haverá mais ar na rede.
Além
disso, também se gera um problema na estrutura de rede. Imagina que todos os
dias uma rede de água tem uma pressão de 50 metros de coluna água (mca), ou
seja, a água está pressurizando a rede e quando falta água, o que acontece? A
pressão vai para zero. Esse processo causa, na rede, um efeito chamado de
“efeito fadiga”, que é uma hora a incidência de pressão alta e, em outra, de
pressão baixa. Se isso acontece com frequência, com o tempo a rede será
comprometida, porque esse aumento e queda abrupto de pressão danificará a rede.
Se continuar por mais tempo com o rodízio, a Sabesp terá que trocar toda a sua
rede, porque estourará tudo, tanto a rede de ferro quanto a rede de PVC. É um
problema sério para o futuro.
Falta
d’água
Atualmente,
a Sabesp está deixando muitos lugares sem água durante 13, 15, até 16 horas. Em
alguns locais, esse tempo chega até 18 horas todos os dias. Mas como Em São
Paulo, mais de 80% da população tem caixa d’água em casa, parte dessa população
normalmente não percebe quando falta água, porque se chegar água em casa
durante seis horas do dia, com exceção de quem fica em casa, poucos percebem
que está faltando água.
Mas
há um lado positivo no rodízio: Imagina que falta água 15 horas por dia, nesse
período não tem vazamento, o que significa também, que nesse período não tem
perda. Com esse rodízio, a Sabesp conseguiu reduzir significativamente suas
perdas, porque o tempo de pressurização da rede é muito menor. Então, isso
justifica, por exemplo, por que ainda temos água hoje. Poderíamos não termos
mais água se não tivesse sido feito o rodízio.
Assim,
toda vez que se paralisa a rede de água, há o risco de contaminação. Nesse
sentido, o rodízio é um problema, mas em última análise, ele foi necessário.
Fazer o rodízio foi uma atitude acertada, o que não foi acertada foi a política
de orientação do governo do Estado de São Paulo, que não deixou a Sabesp fazer
o rodízio antes e não é transparente. Se a Sabesp tivesse autonomia para atuar
desde o início de 2014, a situação hoje seria mais confortável; não estou
dizendo que seria segura, mas seria mais confortável.
“Se a Sabesp tivesse autonomia para atuar desde o
início de 2014, a situação hoje seria mais confortável”
IHU
On-Line - Como se deu seu processo de desligamento da Sabesp?
Marzeni
Pereira – Eu era empregado público, mas não era
estatutário, pois a Sabesp é uma empresa de economia mista, então a admissão se
dá pelo concurso público, mas os funcionários trabalham sob o regime da CLT.
Por isso, a Sabesp pode demitir, desde que tenha a justificativa adequada. Eles
fizeram um corte de 604 trabalhadores no início deste ano. Eu já havia sido
avisado no final do ano passado que seria demitido neste ano, por conta do meu
ativismo e da minha forma de atuar. Internamente, eu deixei muito claro que a
transparência é essencial, que tem que falar a verdade, porque a população
precisa saber o que está acontecendo. Muitas pessoas sentem medo de falar
alguma coisa, apesar de saberem, por medo de sofrer retaliações.
Quando
comecei a dar entrevistas, evitava falar de questões que são segredos de
empresa, aliás, nem existem muitos segredos, até porque uma empresa que presta
serviço público nem deveria ter segredo, deveria ser totalmente aberta em
relação às suas atividades, além disso, não tem concorrente. De todo modo, eu
evitava falar de questões muito específicas, mas mesmo assim isso provocou uma
ira muito grande na direção da empresa e do governo do Estado.
Estou
entrando na justiça agora por conta da minha demissão. Saiu uma liminar dizendo
que não deveria haver mais demissões, só que a liminar caiu e a Sabesp voltou a
dizer que não irá readmitir ninguém. Minha demissão foi justificada como
redução do fluxo de caixa, ou seja, eles dizem que houve uma redução do fluxo
de caixa e por isso eles me demitiram. Ocorre que minha avaliação interna
sempre foi muito boa, chegava próximo de 100%. Mas, enfim, eu não perdi horas
de sono por causa disso; já estava preparado psicologicamente. Claro que eu não
queria ser demitido, mas me preparei psicologicamente para não ficar abatido.
Minha demissão é um caso claro de perseguição!
IHU
On-Line - Além do controle na perda da distribuição, das políticas de
reuso e do rodízio, que medidas poderiam ajudar a resolver o problema da crise
hídrica?
Marzeni
Pereira – Não há ações imediatas que possam resolver a crise.
Por exemplo, se não chover até o final do ano e prosseguir essa estiagem por
mais dois ou três anos, com chuvas muito abaixo da média, teremos um caos em
São Paulo. Para os próximos três ou quatro anos, é possível ter algumas opções
de atuação. Por exemplo, se não chover nos próximos três ou quatro meses, o
sistema Alto Tietê, Cotia e Rio Claro, irão secar e, com certeza, o Cantareira
também. Nós não teremos água na região metropolitana para 20 milhões de
pessoas, o que seria um caos, uma catástrofe.
Mas
vai chover, pode ser abaixo da média, mas vai chover, então teremos água para
mais uns meses. O que poderia ser feito para minimizar? Primeiro, temos de ter
um programa ousado de coleta e uso da água de chuva. É preciso também que o
governo abra mão da necessidade de arrecadação, porque aí também cai a
arrecadação da empresa de saneamento, da Sabesp — o Estado usa parte dessa
arrecadação até para as receitas estaduais, o que é um erro, pois o dinheiro do
saneamento deveria ser utilizado no saneamento, mesmo o excedente.
Alternativas
Ainda
no curto prazo, dependendo da situação, é preciso abrir poços em larga escala.
O próprio governo deveria fazer isso para que a população não fique totalmente
sem água. Além disso, a Sabesp tem de voltar a ser uma empresa pública, ela
precisa ser reestatizada, só que não pode ser estatizada na forma como era
antes, em que o governo tinha a maioria das ações, mas as empreiteiras
continuavam mandando por dentro e dando as ordens de como e quais obras
deveriam ser feitas. Tem que haver controle social dessa empresa. Nós estamos
falando do setor de saneamento, que atinge diretamente a saúde das pessoas. O
Ministério da Saúde divulgou que cerca de 80% das internações hospitalares vêm
da falta de saneamento. Portanto, esse é um setor que está ligado diretamente à
saúde pública.
Também
é preciso um programa agressivo de preservação e recuperação de mananciais. Os
mananciais que existem hoje têm que ter suas áreas preservadas, mas, mais que
isso, é preciso fazer o reflorestamento com espécies nativas. Além disso, é
preciso retirar os esgotos dos mananciais. Tem mananciais em São Paulo, como é
o caso da represa Billings, do Guarapiranga, que estão em estado deplorável. A
qualidade da água da Billings é pior que a qualidade da água do volume morto do
Cantareira, muito pior. Então, é necessário retirar o esgoto dos mananciais, há
a necessidade de tratar o esgoto urgentemente, não dá para jogar o Rio
Pinheiros na Billings, na qualidade em que está hoje. Em médio e longo prazo
seria indispensável esse tipo de atuação.
Também
precisamos combater a especulação imobiliária, porque as áreas de mananciais
são ocupadas ou pela especulação imobiliária para fazer novos loteamentos ou
pelas populações mais pobres, que não conseguem comprar casas nas regiões mais
centrais.
Atuação
no médio e longo prazo
Em
médio e longo prazo existe uma folga maior para atuar. Agora, o problema
principal é no curtíssimo prazo. Inclusive uma das minhas críticas mais fortes
na Sabesp era de que o governo estava fazendo uma administração de alto risco,
porque já havia avisos e previsões mostrando que era preciso fazer algo com
urgência. Inclusive à época da renovação da outorga do Sistema Cantareira, em
2004, já havia a previsão de que o governo do Estado deveria reduzir perdas e
tratar esgotos para que se reduzisse a dependência do Cantareira, e isso não
foi feito.
“Brasil exportou em 2013 o equivalente em água que
poderia abastecer a região de São Paulo por 100 anos”
Mas
para reduzir perdas é preciso ter pessoas qualificadas para fazer os serviços,
não dá para contratar uma empreiteira e depois de dois anos contratar outra,
com pessoas que nunca trabalharam no setor. Os funcionários da Sabesp têm 10,
15, 20 anos de trabalho na área e conhecem tudo de saneamento. Então esse
profissional precisa ser preservado. É preciso também ter um combate ao lobby
das empresas que vendem materiais, e não dá para submeter o interesse coletivo
da população em geral aos interesses individuais, tanto das prestadoras de
serviços, das empreiteiras, quanto das empresas que vendem materiais.
No
meu ponto de vista, essa crise de abastecimento de água que sofremos que é
essencialmente é uma crise de gestão, tem que servir como balizador do que não
deve ser feito, ou seja, não podemos deixar acontecer no futuro o que está
acontecendo agora. Como é que vamos deixar uma região com 20 milhões de
pessoas, correr o risco de ficar totalmente sem água? Não tem cabimento.
O
problema não é só a questão da falta de chuva, é questão de gestão. Devemos
tomar medidas que sirvam de precaução, e o princípio da precaução tem de estar
sempre pautado. Se nós não temos certeza de que irá chover no ano que vem, o
que vamos fazer? Vamos preparar a população, vamos pensar alternativas.
Gostaria
ainda de lembrar que nós também temos um problema sério no uso da água no
Brasil em relação à agricultura, que utiliza 70% da água hoje. Só para termos
uma ideia — fiz um cálculo rápido com dados do Ministério do Desenvolvimento e
Comércio —, só com quatro produtos — soja, carne, café e milho —, o Brasil
exportou em 2013 o equivalente em água que poderia abastecer a região de São
Paulo por 100 anos. (ecodebate)
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