terça-feira, 15 de novembro de 2016

Doenças Tropicais e Mudanças Climáticas


Dengue, malária, doença de chagas, leishmaniose. Essas são apenas algumas das doenças tropicais negligenciadas que atingem mais de um bilhão de pessoas no mundo todo e causam cerca de 500 mil mortes anualmente. Com as mudanças climáticas, esse número vai aumentar e essas doenças atingirão uma faixa geográfica muito maior. A Organização Mundial de Saúde (OMS) já alertou que as mudanças de temperatura podem promover a propagação de doenças infecciosas, especialmente as chamadas doenças tropicais negligenciadas. Isso porque um clima mais quente pode elevar a concentração de poluentes no ar, comprometer a qualidade da água e ainda aumentar a disseminação de vetores causadores de doenças, como o mosquito da dengue.
Além disso, o aumento da temperatura, doenças que antes estavam restritas à faixa tropical do globo podem chegar a outras regiões. “Apesar do papel das mudanças climáticas dentro desse contexto ainda ser controverso e não ser consenso na comunidade científica, é inegável o conceito de que os ciclos de vida e transmissão de muitos agentes infecciosos estão intimamente ligados ao clima, e, portanto, o risco do aumento dessas patologias é real”, afirma o infectologista Alexandre Naime Barbosa, professor do Departamento de Doenças Tropicais da Faculdade de Medicina da Universidade Estadual Paulista (Unesp).
Doenças tropicais
Como o próprio nome diz, as doenças tropicais negligenciadas são doenças presentes em regiões mais quentes do planeta, que, em geral também são as regiões onde estão países com maior fragilidade social e econômica. Além disso, não recebem a devida atenção dos programas de saúde: são poucos os investimentos em pesquisas e o desenvolvimento de novos medicamentos para combater essas enfermidades em comparação com outras. A pobreza, o acesso limitado à água limpa e ao saneamento contribuem para a propagação dessas doenças. “A falta de investimento por parte da indústria farmacêutica é gritante: somente 18 medicamentos foram feitos para essas doenças em 30 anos, enquanto que para doenças globais, como câncer, doenças cardiovasculares e endócrinas, mais de 1.400 medicamentos foram lançados no mercado mundial”, aponta o infectologista José Angelo Lauletta Lindoso, pesquisador do Instituto de Medicina Tropical de São Paulo.
A OMS lista em seu site 17 doenças tropicais negligenciadas: úlcera de Buruli, doença de Chagas, cisticercose, dengue, dracunculíase, equinococose, fasciolíase, tripanossomíase humana africana, leishmaniose, hanseníase, filariose linfática, oncocercose, raiva, esquistossomose, solo transmitida helmintíase, tracoma e bouba. Essas doenças estão presentes em 149 países e atingem 15% da população mundial. Além de serem um preocupante problema de saúde, essas doenças também são grave problema social, pois contribuem para a perpetuação do ciclo de pobreza, desigualdade e exclusão. “As doenças tropicais estão associadas à pobreza, ao descuido sanitário, à má qualidade da habitação e à desnutrição. Esses aspectos foram melhorados em muitos locais, mas ainda restaram muitos bolsões de pobreza. É um círculo perverso de desinteresse, porque  na maioria das regiões o problema foi controlado, existem drogas que parecem ser eficientes e o número de afetados é menor do que antes, mas em outras o problema persiste”, aponta o patologista Heitor Franco de Andrade Junior, chefe do Laboratório de Protozoologia do Instituto de Medicina Tropical de São Paulo e professor do Departamento de Patologia, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP).
Novas configurações
Mas o mapa das doenças tropicais pode mudar. Essas doenças são provocadas por vírus, bactérias e parasitas, e muitas delas são transmitidas por vetores, como mosquitos, besouros e caracóis, como é o caso da dengue, da doença de Chagas e da esquistossomose. E esses vetores são diretamente afetados por mudanças em seu habitat, especialmente mudanças de temperatura e umidade. Além disso, as mudanças climáticas afetam a qualidade da água, o que aumenta a incidência de doenças transmitidas por água contaminada. “O aquecimento global favorece o ciclo de vida de vetores como o Aedes aegypti. Com isso, o número de casos das diversas doenças transmitidas por ele - como dengue, febre amarela, chikungunya e zika – pode aumentar nos países já atingidos e  ainda migrar para locais onde a temperatura está aumentando. Além disso, com mais chuvas e inundações, doenças como cólera, esquistossomose, leptospirose e diarreias infecciosas em geral tendem a ficar mais comuns”, explica Barbosa.


Clima e saúde
De acordo com o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas Globais (IPCC), a temperatura média do planeta subiu 0,7ºC ao longo do século 20. E não é só: esse aquecimento vem ocorrendo de maneira mais rápida nos últimos 25 anos, o que está desencadeando várias alterações em todo o planeta, como mudança no regime das chuvas; elevação do nível do mar; e aumento na frequência de eventos climáticos extremos, como enchentes, tempestades, furacões e secas.
Além disso, as mudanças climáticas podem expandir a faixa tropical fazendo com que as doenças tropicais passem a atingir países que estão hoje na região temperada. “Esse ponto não está bem definido, porém alguns reflexos já podem ser sentidos. Por exemplo, até pouco tempo não imaginávamos que a leishmaniose visceral pudesse ocorrer em climas mais frios, como no sul do país, entretanto, hoje, há ocorrência dessa doença na região e também na Argentina e até no Uruguai”, afirma Lindoso. “Esses dados sugerem que a mudança da temperatura, aliada à migração populacional favorece a emergência e reemergência de doenças tropicais em áreas antes livres dessas doenças”, completa o pesquisador.
Segundo o Departamento de Vigilância Epidemiológica do Ministério da Saúde, em 1999, 92,9% dos casos de leishmaniose visceral estavam concentrados na região Nordeste e apenas 2,6% no Sudeste; com a expansão territorial da doença em 2011, a distribuição de casos humanos passou no Sudeste passou para 15%. Em seu documento Casos confirmados de Leishmaniose Visceral, Brasil, Grandes Regiões e Unidades Federativas, 1990 a 2011, o departamento aponta que em 2009 foi registrado o primeiro caso de leishmaniose visceral em humano na região Sul do país. Desde então, novos casos vem sendo relatados anualmente no Rio Grande do Sul e no Paraná. Além disso, em 2000 foi identificado o primeiro caso humano em Assunção, no Paraguai, e até 2006, foram identificados 126 casos no país. Também em 2006 começou um surto da doença na Argentina.
A revista médica inglesa The Lancet publicou este ano uma projeção apontando que cerca de 50% a 60% da população mundial viverá em áreas de alto risco de transmissão de dengue até 2085. Outro estudo, realizado pela Escola Médica de Harvard, dos Estados Unidos, apontou que 60% da população mundial viverá em área de risco de malária. Hoje, já é possível notar que a doença está ficando mais frequente onde antes era praticamente inexistente, como os Estados Unidos. De acordo com o Centro de Prevenção e Controle de Doenças (CDC) do país, cerca de duas mil pessoas foram diagnosticadas com a doença no país em 2011 – maior surto da doença em 40 anos. Em 2013, o Estado da Flórida sofreu com um surto de dengue, com 28 casos registrados da doença. Nos últimos 10 anos, o país teve cerca de 10 mil casos notificados da doença – a maioria deles registrados em regiões próximas ao México, como o Texas.


Buscando soluções
De acordo com a OMS, seria necessário investir US$ 2,9 bilhões anualmente, até 2020 para combater as doenças tropicais negligenciadas. A organização fez um apelo no início deste ano para que seus países membros fizessem maiores investimentos no combate a essas doenças. No entanto, ainda há um longo caminho a percorrer. Para mudar esse quadro, é preciso um esforço coletivo para combater não apenas as mudanças climáticas, mas também a pobreza. Melhorar a condição de vida das pessoas que habitam essas regiões é fundamental para barrar o avanço dessas doenças e diminuir consideravelmente sua mortalidade. “As medidas sanitárias clássicas são a melhor barreira preventiva. Ações como reduzir os focos de mosquitos e o cuidado com a qualidade da água consumida podem poupar milhões de vidas”, afirma Barbosa.
Além disso, distribuição de medicamentos e programas de vacinação são muito importantes, assim como melhorias no diagnóstico e disponibilidade do tratamento. Programas educacionais para a sociedade para controle dos vetores também podem fazer toda a diferença no combate a muitas dessas doenças. “Exemplos claros dessas ações são vistos na redução dos casos de malária, ausência da transmissão da doença de Chagas e redução dos casos de oncocercose e filariose linfática no Brasil. Essas reduções são reflexo de ações de controle vetorial por parte dos órgãos governamentais e da melhoria no diagnóstico e disponibilidade no tratamento”, finaliza Lindoso. (drbarbosa)

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