Dengue, malária, doença
de chagas, leishmaniose. Essas são apenas algumas das doenças tropicais
negligenciadas que atingem mais de um bilhão de pessoas no mundo todo e causam
cerca de 500 mil mortes anualmente. Com as mudanças climáticas, esse número vai
aumentar e essas doenças atingirão uma faixa geográfica muito maior. A
Organização Mundial de Saúde (OMS) já alertou que as mudanças de temperatura
podem promover a propagação de doenças infecciosas, especialmente as chamadas
doenças tropicais negligenciadas. Isso porque um clima mais quente pode elevar
a concentração de poluentes no ar, comprometer a qualidade da água e ainda
aumentar a disseminação de vetores causadores de doenças, como o mosquito da
dengue.
Além disso, o aumento da
temperatura, doenças que antes estavam restritas à faixa tropical do globo
podem chegar a outras regiões. “Apesar do papel das mudanças climáticas dentro
desse contexto ainda ser controverso e não ser consenso na comunidade
científica, é inegável o conceito de que os ciclos de vida e transmissão de
muitos agentes infecciosos estão intimamente ligados ao clima, e, portanto, o
risco do aumento dessas patologias é real”, afirma o infectologista Alexandre
Naime Barbosa, professor do Departamento de Doenças Tropicais da Faculdade de
Medicina da Universidade Estadual Paulista (Unesp).
Doenças tropicais
Como o próprio nome diz,
as doenças tropicais negligenciadas são doenças presentes em regiões mais
quentes do planeta, que, em geral também são as regiões onde estão países com
maior fragilidade social e econômica. Além disso, não recebem a devida atenção
dos programas de saúde: são poucos os investimentos em pesquisas e o
desenvolvimento de novos medicamentos para combater essas enfermidades em
comparação com outras. A pobreza, o acesso limitado à água limpa e ao
saneamento contribuem para a propagação dessas doenças. “A falta de
investimento por parte da indústria farmacêutica é gritante: somente 18
medicamentos foram feitos para essas doenças em 30 anos, enquanto que para
doenças globais, como câncer, doenças cardiovasculares e endócrinas, mais de
1.400 medicamentos foram lançados no mercado mundial”, aponta o infectologista
José Angelo Lauletta Lindoso, pesquisador do Instituto de Medicina Tropical de
São Paulo.
A OMS lista em seu site
17 doenças tropicais negligenciadas: úlcera de Buruli, doença de Chagas,
cisticercose, dengue, dracunculíase, equinococose, fasciolíase, tripanossomíase
humana africana, leishmaniose, hanseníase, filariose linfática, oncocercose,
raiva, esquistossomose, solo transmitida helmintíase, tracoma e bouba. Essas
doenças estão presentes em 149 países e atingem 15% da população mundial. Além
de serem um preocupante problema de saúde, essas doenças também são grave
problema social, pois contribuem para a perpetuação do ciclo de pobreza,
desigualdade e exclusão. “As doenças tropicais estão associadas à pobreza, ao
descuido sanitário, à má qualidade da habitação e à desnutrição. Esses aspectos
foram melhorados em muitos locais, mas ainda restaram muitos bolsões de
pobreza. É um círculo perverso de desinteresse, porque na maioria das
regiões o problema foi controlado, existem drogas que parecem ser eficientes e
o número de afetados é menor do que antes, mas em outras o problema persiste”,
aponta o patologista Heitor Franco de Andrade Junior, chefe do Laboratório de
Protozoologia do Instituto de Medicina Tropical de São Paulo e professor do
Departamento de Patologia, da Faculdade de Medicina da Universidade de São
Paulo (USP).
Novas configurações
Mas o mapa das doenças
tropicais pode mudar. Essas doenças são provocadas por vírus, bactérias e
parasitas, e muitas delas são transmitidas por vetores, como mosquitos,
besouros e caracóis, como é o caso da dengue, da doença de Chagas e da
esquistossomose. E esses vetores são diretamente afetados por mudanças em seu
habitat, especialmente mudanças de temperatura e umidade. Além disso, as
mudanças climáticas afetam a qualidade da água, o que aumenta a incidência de
doenças transmitidas por água contaminada. “O aquecimento global favorece o
ciclo de vida de vetores como o Aedes aegypti. Com isso, o número de casos das
diversas doenças transmitidas por ele - como dengue, febre amarela, chikungunya
e zika – pode aumentar nos países já atingidos e ainda migrar para locais
onde a temperatura está aumentando. Além disso, com mais chuvas e inundações,
doenças como cólera, esquistossomose, leptospirose e diarreias infecciosas em
geral tendem a ficar mais comuns”, explica Barbosa.
Clima e saúde
De acordo com o Painel
Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas Globais (IPCC), a temperatura
média do planeta subiu 0,7ºC ao longo do século 20. E não é só: esse
aquecimento vem ocorrendo de maneira mais rápida nos últimos 25 anos, o que
está desencadeando várias alterações em todo o planeta, como mudança no regime
das chuvas; elevação do nível do mar; e aumento na frequência de eventos
climáticos extremos, como enchentes, tempestades, furacões e secas.
Além disso, as mudanças
climáticas podem expandir a faixa tropical fazendo com que as doenças tropicais
passem a atingir países que estão hoje na região temperada. “Esse ponto não
está bem definido, porém alguns reflexos já podem ser sentidos. Por exemplo,
até pouco tempo não imaginávamos que a leishmaniose visceral pudesse ocorrer em
climas mais frios, como no sul do país, entretanto, hoje, há ocorrência dessa
doença na região e também na Argentina e até no Uruguai”, afirma Lindoso.
“Esses dados sugerem que a mudança da temperatura, aliada à migração
populacional favorece a emergência e reemergência de doenças tropicais em áreas
antes livres dessas doenças”, completa o pesquisador.
Segundo o Departamento de
Vigilância Epidemiológica do Ministério da Saúde, em 1999, 92,9% dos casos de
leishmaniose visceral estavam concentrados na região Nordeste e apenas 2,6% no
Sudeste; com a expansão territorial da doença em 2011, a distribuição de casos
humanos passou no Sudeste passou para 15%. Em seu documento Casos confirmados
de Leishmaniose Visceral, Brasil, Grandes Regiões e Unidades Federativas, 1990
a 2011, o departamento aponta que em 2009 foi registrado o primeiro caso de
leishmaniose visceral em humano na região Sul do país. Desde então, novos casos
vem sendo relatados anualmente no Rio Grande do Sul e no Paraná. Além disso, em
2000 foi identificado o primeiro caso humano em Assunção, no Paraguai, e até
2006, foram identificados 126 casos no país. Também em 2006 começou um surto da
doença na Argentina.
A revista médica inglesa The Lancet publicou este
ano uma projeção apontando que cerca de 50% a 60% da população mundial viverá
em áreas de alto risco de transmissão de dengue até 2085. Outro estudo,
realizado pela Escola Médica de Harvard, dos Estados Unidos, apontou que 60% da
população mundial viverá em área de risco de malária. Hoje, já é possível notar
que a doença está ficando mais frequente onde antes era praticamente
inexistente, como os Estados Unidos. De acordo com o Centro de Prevenção e
Controle de Doenças (CDC) do país, cerca de duas mil pessoas foram
diagnosticadas com a doença no país em 2011 – maior surto da doença em 40 anos.
Em 2013, o Estado da Flórida sofreu com um surto de dengue, com 28 casos
registrados da doença. Nos últimos 10 anos, o país teve cerca de 10 mil casos
notificados da doença – a maioria deles registrados em regiões próximas ao México,
como o Texas.
Buscando soluções
De acordo com a OMS,
seria necessário investir US$ 2,9 bilhões anualmente, até 2020 para combater as
doenças tropicais negligenciadas. A organização fez um apelo no início deste
ano para que seus países membros fizessem maiores investimentos no combate a
essas doenças. No entanto, ainda há um longo caminho a percorrer. Para mudar
esse quadro, é preciso um esforço coletivo para combater não apenas as mudanças
climáticas, mas também a pobreza. Melhorar a condição de vida das pessoas que
habitam essas regiões é fundamental para barrar o avanço dessas doenças e
diminuir consideravelmente sua mortalidade. “As medidas sanitárias clássicas
são a melhor barreira preventiva. Ações como reduzir os focos de mosquitos e o
cuidado com a qualidade da água consumida podem poupar milhões de vidas”,
afirma Barbosa.
Além disso, distribuição
de medicamentos e programas de vacinação são muito importantes, assim como
melhorias no diagnóstico e disponibilidade do tratamento. Programas educacionais
para a sociedade para controle dos vetores também podem fazer toda a diferença
no combate a muitas dessas doenças. “Exemplos claros dessas ações são vistos na
redução dos casos de malária, ausência da transmissão da doença de Chagas e
redução dos casos de oncocercose e filariose linfática no Brasil. Essas
reduções são reflexo de ações de controle vetorial por parte dos órgãos
governamentais e da melhoria no diagnóstico e disponibilidade no tratamento”,
finaliza Lindoso. (drbarbosa)
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