Uma cena
que pode ter acontecido na Cueva del Milodon, atual Chile: um Mylodon observa
uma onça-patagônica Panthera onca mesembrina (uma forma extinta) atacar um
grupo de cavalos também extintos (Hippidion).
“Vivemos
em um mundo zoologicamente empobrecido, de onde todas as formas mais imensas e
ferozes e estranhas desapareceram recentemente”.
Em
24 de agosto de 1832 o HMS Beagle chegou a Bahia Blanca, 650 km ao sul de
Buenos Charles Darwin, seu mais ilustre passageiro, dedicou sua estadia para
explorar a região.
Ali
Darwin encontrou ossos de nove espécies de grandes mamíferos extintos,
incluindo uma preguiça gigante terrícola que acabou batizada como Mylodon
darwini, e de seu primo ainda maior, o megatério Megatherium.
Muito
depois, em 1895, ossos, esterco e, incrivelmente, pele de Mylodon foram
encontradas na hoje famosa Cueva del
Milodon, no Chile. A condição aparentemente fresca dos restos
levou alguns cientistas a acreditar que o
bicho ainda vivia por ali. Resumindo uma longa novela, na verdade os
últimos Mylodon chilenos morreram há mais de 9 mil anos.
Os
ossos descobertos por Darwin, estudados pelo grande anatomista Richard Owen,
tornam-se provas adicionais da existência de animais extintos. Isso numa época
onde muitos acreditavam que a Bíblia provava que a Terra fora criada em 4004 AC
e que a extinção era algo impossível, pois Deus não permitiria que meros
humanos apagassem sua criação.
O
Mylodon era um gigante de 2,5 toneladas que viveu em
diferentes habitats no que é hoje o Chile, Argentina, Paraguai, Bolívia e
sul do Brasil. Poderia estar pastando no pampa gaúcho até hoje, mas foi extinto
uns 8 mil anos atrás.
Há
poucos milhares de anos, menos do que a idade de cidades como Jericó
(estabelecida em 9.000 AC), mega-animais – Mylodons, mamutes,
tigres-dentes-de-sabre, pássaros-trovão - viviam tranquilos sobre a Terra. Até
nós nos tornarmos humanos.
Nossa
espécie surgiu em algum lugar da África a c. 200 mil anos. Mais um entre vários
bichos do gênero Homo que viviam naquela época, todos usando
ferramentas, e a maioria o fogo, os sapiens não eram nada muito
diferente até algo acontecer há uns 70 mil anos.
Nesse
período ocorreu uma revolução cognitiva. Pela primeira vez surgem evidências de
arte, pensamento simbólico, imaginação, linguagem complexa e – seu resultado –
novas tecnologias. Algo mudou a natureza humana e nos tornou capazes de
cooperar em uma escala muito além de nosso círculo pessoal. Algo associado a
crenças – memes - que criam identidades comuns entre pessoas que não são
relacionadas e a linguagem necessária para espalhar estas crenças. A mesma
fonte das religiões e estados nacionais.
A
causa provável deste flip mental foi uma mutação
que deflagrou um processo de coevolução gene-cultura e se espalhou
rapidamente em uma população até então pequena. Mas não é possível desprovar
que um certo monólito
negro ou outro fator externo tenha tido um papel nisso.
Há
70 mil anos grupos de Homo sapiens deixaram a África e partiram para
conquistar o mundo. Dez mil anos depois haviam chegado à China e Coréia, mas a
então gélida Europa só seria ocupada a partir de 45-50 mil anos atrás.
Na
mesma época, antigos marinheiros colonizaram a Austrália, continente onde
primata algum havia colocado os pés. Nas Américas, há certeza de que 15 mil
anos atrás já haviam populações humanas estabelecidas, talvez também
descendentes de navegadores. É provável que tenham chegado muito antes.
Nossa
rápida ascensão como espécie dominante não foi acompanhada por nossa
psicologia. Quem já encontrou um leão, tubarão branco ou crocodilo sabe a
auto-confiança que milhões de anos de domínio deram a eles. Segundo o historiador
Yuval Harari, nós continuamos cheios de medos e ansiedades e nos
comportamos como ditadores de repúblicas de bananas, rápidos em optar pelo
extermínio do que nos amedronta ou incomoda. Seja uma lagartixa no banheiro ou
uma harpia
na praça.
Talvez
isso explique porque nossa expansão foi acompanhada pelo fim dos outros humanos
que já ocupavam as novas posses.
Antecipando
o que viria depois, das Guerras dos
Bárbaros no nosso nordeste ao genocídio
dos Iarumá pelos Kuikúru do Xingu, a expansão dos sapiens coincide com o
fim dos neandertais da Eurásia, erectus e hobbits da Indonésia, denisovas da
Sibéria e outros que sabemos terem existido graças a genes
perdidos entre os nossos. Se a história recente é exemplo, lembranças tanto
de encontros amorosos como de violência.
Aqui existiam dragões
A Austrália
antes da chegada dos sapiens. Um leão-marsupial (Thylacoleo) defende sua presa
de um dragão (Megalania) enquanto um diprotodon, um canguru-gigante e dois
tilacinos observam. Um mihirung (Genyornis) foge pela esquerda.
A
invasão dos sapiens não obliterou apenas outros humanos. O mundo encontrado
pelos exploradores que deixaram a África era um mundo de criaturas fantásticas
(a BBC fez uma série sobre
elas).
Entre
Portugal e a Sibéria viviam manadas de mamutes, cervos gigantes, rinocerontes
lanudos, unicórnios (Elasmotherium), saigas, auroques, onagros, renas
e bois-almiscarados, caçados por leões, hienas, leopardos e gatos-cimitarra.
Após
alguns milênios de atrito estes animais estavam reduzidos a refúgios ou
extintos, os últimos mamutes morrendo em sua derradeira
ilha ao redor de 1.700 AC, quando as pirâmides já eram velhas.
Na
isolada Austrália havia pelo menos 54 espécies de grandes mamíferos (mais
de 40 kg), além de mihirungs, crocodilos terrestres e dragões. Todos extintos
entre a chegada dos primeiros humanos e a do Capitão Cook em mais um processo
de atrição que levou milhares de anos.
A
extinção de grandes herbívoros - que convertiam biomassa vegetal em carne - e o
uso do fogo pelos aborígenes favoreceram espécies pirófilas como os eucaliptos.
O continente ganhou vastas
regiões sujeitas a incêndios catastróficos, que todo ano assistimos nos
noticiários.
Na
América do Norte, 34 gêneros de grandes mamíferos foram eliminados, enquanto a
América do Sul perdeu 52 gêneros entre a primeira ocupação humana e a chegada
de Colombo.
O
Brasil de então, com várias espécies de preguiças gigantes variando de maiores
que um elefante ao tamanho de um carneiro, gliptodons, mastodontes,
macrauquênias, cavalos, lhamas, toxodons, etc., etc., etc., humilharia qualquer
savana africana de hoje.
Alguns
bichos, como Mylodons, gliptodontes e tigres-dentes-de-sabre persistiram até
7-8 mil anos atrás, 5 mil anos após humanos
se tornarem evidentes no registro paleontológico.
Como
na Austrália, há evidências de mudanças profundas nos ecossistemas após sua
extinção, incêndios mais frequentes e intensos deixando seus
rastros nos sedimentos. A paleontologia e comparações com as savanas
africanas de hoje fazem pensar que os regimes de fogo que caracterizam o
Cerrado de hoje são mais destrutivos do que seriam se a megafauna estivesse
presente.
E
que somos um bom exemplo de como espécies invasoras causam profundas alterações
nos ecossistemas.
Junto
com os grandes mamíferos desapareceram dezenas espécies de aves, como pássaros-trovão, condores
de bolso e pássaros que direta ou indiretamente dependiam
daqueles gigantes, tanto fonte de alimento como engenheiros ecossistêmicos.
Da mesma forma, dezenas (centenas?) de plantas perderam seus dispersores
de sementes primários.
Os
ecossistemas que temos hoje são muito diferentes, e mais pobres, do que seriam
se os sapiens tivessem ficado em casa. Quem fala que não existe natureza
intocada está absolutamente certo. Dizer que humanos criaram e mantém
ecossistemas mais ricos do que existiriam sem eles tem tanta base científica
quanto a astrologia.
Ilhas foram o último refúgio
Tigres-dentes-de-sabre,
macrauquênias, cavalos extintos (Hippidion), mastodontes, um gliptodonte e uma
preguiça-gigante (Megatherium) em um cenário que poderia ser o interior do Rio
Grande do Sul ou Santa Catarina.
A(s)
causa(s) das extinções associadas à expansão humana são tema de velho debate
entre quem culpa a mudança climática na transição entre o Pleistoceno e o
Holoceno (o período de 11.700 anos atrás até hoje); os que culpam os humanos,
seu fogo, seus cães e suas armas; e os que propõem uma combinação de fatores.
Um
fato evidente é que ilhas – do Mediterrâneo ao Caribe e Oceania - passaram
incólumes pelas mudanças climáticas do Pleistoceno-Holoceno apenas para
sofrerem extinções em massa após a chegada dos primeiros humanos.
Pelo
menos 13 espécies primas do Mylodon viviam nas ilhas maiores do Caribe. Após
darem as boas-vindas ao Holoceno, todas foram extintas,
junto com outros mamíferos, corujas gigantes e condores, ao redor de 4.400 anos
atrás. Exatamente após a chegada dos ameríndios àquelas ilhas.
As
ilhas do Pacífico foram colonizadas apenas nos últimos 3 mil anos. Estima-se
que os polinésios – que se expandiram em um processo viral associado a
explosões demográficas - eliminaram
pelo menos 2 mil espécies de aves. Para entender o desastre, hoje são
reconhecidas cerca de 11 mil espécies vivas no mundo, com 140 extintas desde 1500.
A
civilização capitalista ocidental ainda não chegou ao nível daqueles povos
pré-industriais que tanto inspiraram a ideia do bom selvagem amigo da ecologia.
Os
últimos 16 mil anos foram um período de mudanças climáticas rápidas, como o
evento chamado Younger Dryas
(12.900-11.700 anos atrás), que derrubou as temperaturas médias regionais
entre 1 e 6°C em poucas décadas.
Mas
isso não era novidade. Eventos similares já haviam acontecido muitas e muitas
vezes ao longo do Pleistoceno. O padrão, revelado pelo estudo de DNA antigo,
era que quando o clima ficava hostil (para muitas espécies isso significava
aquecimento), populações
sofriam declínios e as áreas de ocorrência podiam encolher, ficando
restritas a refúgios onde o clima e a vegetação eram adequados.
A
novidade foi que, começando 50 mil anos atrás, não havia mais refúgios sem
populações de sapiens invasores fazendo o que nós fazemos melhor.
Fomos
nós
Parte da
fauna que os primeiros sapiens encontraram quando chegaram à Europa. Mamutes,
rinocerontes-lanosos, cavalos e leões dividiam a paisagem com os neandertais
nativos.
Estudos
recentes (veja aqui,
ou aqui
e aqui)
demonstram a estreita associação entre a expansão de nossas populações e as
extinções observadas (incluídos os neandertais) nos continentes. É inescapável
que humanos foram a causa primária e necessária da catástrofe, e o clima causa
acessória, com sinergias
prováveis em pelo menos alguns casos.
Uma
conclusão é que somos a mais destruidora dentre as espécies exóticas e
invasoras, embora não
nos listem no catálogo oficial das espécies-praga danosas à biodiversidade.
Outra
é que se Colombo e Cabral tivessem encontrado uma América sem humanos é muito
provável que Darwin (e outros exploradores) tivesse encontrado Mylodons em
carne e osso, e não apenas ossos.
É
evidente a continuidade entre povos pré-históricos e as civilizações que os
sucederam, desde
os antigos egípcios até os usuários de iPhone e comedores de muriquis de
hoje. E que há muito tempo que não há
ecossistemas intocados devido ao legado de destruição ambiental e extinção
deixado por povos que nem imaginavam o que era uma bolsa de ações ou para que
servia o petróleo.
É
irônico que um dos poucos casos onde se tentou atribuir consequências positivas
à antiga ação humana se refira às terras pretas da Amazônia. Depósitos de lixo
e latrinas deixados por civilizações pré-europeias que adubaram florestas que
cresceram somente porque aquelas populações humanas colapsaram, provavelmente
graças a germes que acompanharam os primeiros exploradores europeus e seus
pets.
É
de se pensar o que o registro arqueológico futuro mostrará de nossa
civilização. Uma camada de plástico marcando o pico da Sexta Grande Extinção
que começou quando uma espécie invasora deixou sua África natal? (oeco)
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