Geopolítica da Água: Água
para a Guerra – Água para a Paz
“Quando lidamos com o
meio ambiente não podemos tratar deste direito fundamental como se fosse um
produto empresarial, uma mercadoria, quando contratos e regras são determinados
a portas fechadas em reuniões entre pares. Pelo contrário, devem acontecer com
o coletivo da sociedade”
O Fórum Internacional de
Gestão Ambiental (FIGA 2010) – Água, o Grande Desafio, aconteceu em março de
2010, na cidade de Porto Alegre (RS), alguns meses antes do reconhecimento pela
ONU da água como direito humano (jul. 2010) e, anos antes do saneamento básico
como direito humano em separado do direito à água potável (2016). Na
conferência de abertura, por mim proferida, procurei esclarecer as diferenças
conceituais entre as múltiplas funções da água com a temática da “Geopolítica
da Água: Água para a Guerra – Água para a Paz”
Analisei os conflitos no
país e no mundo relacionado à água e sua comoditização, como é o caso da
exportação de grãos e carne no Brasil, que implica também na exportação dos
recursos naturais empregados nesta atividade, como a água, a energia, o solo,
os minerais e a biodiversidade. Outro caso a ser pesquisado, é o do uso da água
como lastro dos navios quando descarregam mercadorias nos portos e quando os
reabastecem com água para retornar ao seu país de origem ocasionando sérios
impactos ambientais com a poluição das águas e na biodiversidade.
Segundo o jornalista
Lúcio Flávio Pinto no artigo “As verdades amazônicas e as visagens utilitárias”
(O Jornal Pessoal, 2010):
“Um problema concreto é o
do uso da água como lastro pelos navios. Tão concreto que em 2004 a ONU adotou
uma Convenção para prevenir a poluição quando os navios bombeiam a água que têm
e captam aquela de que precisam. Nessa troca, provocam danos ambientais que
podem ser avaliados por dados fornecidos por Antonio Domingues: todos os anos
essa operação movimenta 5 bilhões de toneladas (ou de metros cúbicos) de água,
que devem causar prejuízos globais de 100 bilhões de dólares (quantificando-se
o dano ecológico, que, em geral, não entra no cálculo econômico).
Quanto desse enorme
prejuízo é causado no Brasil e, especificamente, na Amazônia? Ninguém sabe. Só
do Pará, quarto maior Estado exportador do país, entre 130 milhões e 150
milhões de toneladas de riquezas naturais (predominantemente as minerais) foram
levados para outros países no ano passado. Se, apenas para efeito de cálculo,
se considera uma média de 50 mil toneladas por navio, só para o escoamento
dessa exportação penetram na Bacia Amazônica três mil grandes navios (para o
padrão da navegação regional) por ano. Ou quase 10 por dia. É um movimento
expressivo.
Além do conceito de água
como commodity, há também outros três que podem ser confundidos e utilizados
por interesses que não os do bem comum.
Água como commodity
A água enquanto
ecossistema (bem comum) não é e nem pode ser considerada uma commodity, mas a
água enquanto sinônimo de vida no planeta já está sendo negociada há décadas
nas bolsas. Não formalmente, enquanto produto bursátil (para bolsas), como é o
caso do petróleo, mas através do agronegócio e da mineração no mercado de
balcão (o informal, fora das bolsas) como ocorre com a água mineral e com a
extração em poços artesianos sem controle e fiscalização, impactando na
qualidade da água do subsolo com contaminações por tratarem a água apenas como
um produto mercadológico desconsiderando sua importância socioeconômica.
Quando compramos as
garrafas de 500 ml de água mineral no supermercado, o lucro vai para a empresa
que a industrializou (engarrafou). Tudo que está na prateleira do supermercado
está, de certa maneira, comoditizado, ou seja, padronizado para compra e venda
adotando critérios determinados por corporações e governos, sem a participação
proativa da sociedade. Porém, como a população não conhece os direitos e as
regras a serem respeitados, há exploração desenfreada deste bem comum por
alguns grupos empresariais com a conivência de governantes em detrimento do
interesse coletivo.
Neste contexto, a água
como ecossistema não poderia ser comoditizada, já que a palavra-expressão
commodity significa ‘mercadoria padronizada para compra e venda’, para ser
negociada com preço estabelecido pelo livre mercado, tendo a sua cotação fixada
pelas bolsas de valores como ocorre com o petróleo. Enfim, seria cotada da
mesma forma que os preços das commodities minerais (ouro, petróleo, gás) e das
commodities agropecuárias (soja, milho, boi café, açúcar).
Água como ecossistema
Imaginem um rio ou uma
cachoeira. Não podemos nos apropriar deste rio ou desta cachoeira e
negociá-los, vendendo-os ou alugando-os para uma empresa ou um grupo de
empresários interessados em explorá-los. Desta forma, não temos o direito de
torná-los propriedade de um único empresário ou de um oligopólio, já que é
parte de um ecossistema, que é bem difuso, de uso comum do povo. É o que
chamamos de “privatização”. O que significa sair das mãos do governo e
entregá-los como investimento e lucro para beneficiar financeiramente o setor
empresarial.
A água por ser um bem que
é parte de um ecossistema, por ser tutelada pela União, bem de uso público,
jamais poderia ser privatizada. O fato de haver um ecossistema implica a
interligação e interdependência entre todos os seres, os vivos e os inanimados.
Pois, quando um ser adoece, gera consequências em variados níveis a todos os
outros. Se a água for contaminada, degradada, maltratada, adoecerá os seres
humanos e demais seres vivos. Á água pode curar doenças, como também pode matar
ao tornar-se veículo de contaminações como são os córregos e rios poluídos, por
exemplo. Portanto a sociedade tem direitos sobre a água, mas também deve
assumir os “deveres” ao compartilhá-la e dela cuidar.
Água como direito
fundamental
Os ativistas Ricardo
Petrella e Daniele Miterrand empreenderam uma longa e árdua campanha contra a
privatização da água, contra o controle do ecossistema pela iniciativa privada,
contra a cotização da água, para que este recurso finito e fundamental para a
existência dos seres vivos, não venha sofrer a precificação como o petróleo que
tem seu valor definido nas bolsas e as ações das empresas que o privatizaram,
valoradas no mercado financeiro. O petróleo é substituível, independentemente de
custar caro mudar a matriz energética de fóssil para renovável. Mas a água não
é substituível. A água é uma incógnita, um mistério da vida. Pode ser renovável
se cuidada e não renovável se degradada. Água: decifre-a ou ela te devora!
A Organização dos Estados
Americanos (OEA) estimou em 2000 que, em 30 anos, o barril de água estaria mais
caro que o de petróleo, sinalizando de que esse era o objetivo dos bancos
multilaterais, como o Banco Mundial, com a precificação da água. São esses
bancos os principais financiadores do saneamento básico e de infraestruturas no
binômio “água e energia” em países vulneráveis e em desenvolvimento.
Como conhecemos a
engrenagem deste sistema “por dentro”, por termos negociado as commodities
minerais (ouro e petróleo), as commodities agropecuárias (soja, milho, boi,
café) e derivativos (derivado de ativos) , somos convictos de que cotar a água
em bolsas de valores seria uma tragédia mundial. Seguimos durante duas décadas,
militando em redes internacionais e nas mais diversas frentes, para que fossem
feitas leis e acordos internacionais que determinassem que a água fosse um
direito humano e de todos os seres. Temos conclamado em todos os fóruns e na
mídia, chamando a sociedade à sua responsabilidade socioambiental. Assim sendo,
a sociedade deve assumir os comitês de bacia hidrográfica; se não existir um em
sua cidade, reúnam as lideranças, a sua comunidade, e façam o seu!
Água, direito à vida
Sendo a água fundamental
à vida no planeta e fundamental à própria existência da Terra, desde sempre,
defendemos que a água deveria ser um direito constitucional como é o acesso à
saúde ou à escola. Toda a população deve ter o direito de acesso, em quantidade
e qualidade garantindo a segurança hídrica tanto quanto a segurança alimentar.
Portanto, considerando que água é vida, reconhecemos que este direito já está
assegurado pela Constituição Brasileira com o princípio da “dignidade da pessoa
humana” como observaremos adiante com o fundamento jurídico –econômico do
conceito “commodities ambientais”.
Água como commodity
ambiental
Este conceito tem sofrido
a distorção por parte de especuladores, dos oportunistas de plantão e outros
interessados na privatização deste bem comum, na medida em que tentam disfarçar
o uso de commodity convencional que fazem da água. Por exemplo, o caso de uma
fábrica de refrigerantes que instala uma fábrica e explora água do Aquífero
Guarani, impondo o risco à humanidade de desperdício e contaminação desta água
– enquanto que já há inúmeras denúncias devidamente comprovadas por
contaminação e degradação em diversas regiões no país.
A água como commodity
ambiental, é o insumo para produção de uma mercadoria originária dos recursos
naturais em condições sustentáveis, cujas matrizes são: água, energia,
biodiversidade, floresta (madeira), minério, reciclagem e redução de emissão de
poluentes – na água, no solo e no ar. As matrizes são ecossistemas e/ou
processos renováveis e não renováveis. A matéria prima é o fruto originado da
matriz que produz a mercadoria . Uma goiabeira é matriz, não é mercadoria. A
matéria prima é a goiaba que produz a mercadoria, o doce de goiaba da mulher
produtora de doces da cidade de Campos do Goytacazes (RJ). Campos é conhecida
pela sua famosa goiabada cascão, receita ensinada de mãe para filha, pelas
mulheres indígenas da etnia Goytacá. O objetivo deste conceito, é incluir o
trabalhador e a trabalhadora, o e a extrativista, a mulher e o homem campesino
(a), a e o agricultor (a), entre outros e outras, combatendo a discriminação
étnica e racial, promovendo a igualdade de gênero, resgatando princípios e
valores universais ao compartilhar e cuidar da água como bem comum.
A água como commodity
ambiental é a retirada o rio, por exemplo, que foi usada para irrigar a
produção agroecológica, a orgânica, a permacultura, a biodinâmica, a
agrobiodiversidade, a produção de subsistência e se “transformou” em
produto-mercadoria. A commodity ambiental não é o rio, não é o ecossistema, nem
é o bem comum. A água como commodity ambiental é a água virtual utilizada como
insumo para plantar e colher o fruto desta frondosa árvore da vida. Também não
é a maçã pecaminosa de Eva seduzida pela serpente, a imagem bíblica onde a
“mulher” é apresentada profanando o paraíso. É o fruto do ventre materno que
gera a vida, carregado em uma “bolsa de água” por nove meses, e que dará luz a
um ser vivo na presente e futura geração.
A água como commodity
ambiental é a água benta providencial que nos proporciona o alimento; a que
mata a nossa sede por justiça; a que foi negada ao nordestino, excluído pela
seca e pelo descaso político; a que foi brutalmente arrancada das nascentes
palestinas e africanas; a que foi cuidada quando retorna no ambiente em forma
de prosperidade e de riquezas com valor econômico.
A água como commodity
ambiental é a água usada para irrigar as árvores frutíferas das matas ciliares
que protegem os rios, represas e nascentes do Cerrado, da Caatinga, da Mata
Atlântica, do Pantanal, do Pampa, da Amazônia, enquanto os frutos são
alternativas socioeconômicas de ocupação e renda para o sofrido povo
ribeirinho, para os povos indígenas, para as populações tradicionais, para os
agricultores, para os campesinos, e – por misericórdia em missão de paz, sem
excluir – também para os pequenos e médios produtores rurais, os que são
“produtores de água”. Sobre este tema esclareço com o artigo “As commodities
ambientais e a métrica do carbono”.
A meta neste modelo
econômico, o socioambiental, é o desenvolvimento de uma sociedade digna,
igualitária, ética, politicamente participativa e integrada. Como por exemplo,
o trabalho cooperativo nas áreas indígenas e quilombolas, onde todo o “fruto do
trabalho coletivo” é revertido para a comunidade. E quando falamos de bacia
hidrográfica, é a água com a gestão hídrica compartilhada proposta pela
“cobrança pelo uso da água”, dos que podem e devem pagá-la por que dela se
utilizam para produzir bens e serviços; são as indústrias, o comércio e os
prestadores de serviços, o agronegócio, entre outros, cujo recurso financeiro
deve retornar para a população. A sociedade tem o dever de fiscalizar, além da
gestão ambiental na bacia hidrográfica, a destinação do dinheiro e, sobretudo
decidir quando, como e de que forma usá-lo.
Portanto, trata-se de um
projeto em construção coletiva para a gestão financeira da coisa e não a coisa
que se torna financeira como estão fazendo, ao impor goela abaixo, com o novo
Código Florestal e com as leis que vem neste mesmo pacote de produtos e
serviços, os instrumentos da “economia verde”, como os créditos de carbono, os
créditos de compensação, os pagamentos por serviços ambientais, o REDD*, entre
outras pirotecnias financeiras, também confundidas com a legítima proposta “a
cobrança pelo uso da água”, discutida por anos nas trincheiras do bom combate ,
entre tantas outras propostas e iniciativas que nos são tão caras.
O conceito “Commodities
Ambientais”
De acordo com o princípio
norteador do conceito “commodities ambientais” traçado pelo Conselho Jurídico
da Aliança RECOs:
A diretriz traçada pelo
conceito do Projeto “Commodities ambientais” encontra respaldo no ordenamento
jurídico pátrio, especialmente na Constituição Federal, que define como bens
ambientais os que, no plano normativo, são considerados essenciais à sadia
qualidade de vida (art. 225 da CF).
Os bens ambientais são
considerados juridicamente essenciais aos valores diretamente organizados, sob
o ponto de vista jurídico, em face da tutela da vida da pessoa humana (o próprio
patrimônio genético, a fauna, a flora, os recursos minerais, etc.), como,
principalmente, em face da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF),
verdadeiro fundamento a ser seguido no plano normativo.
Nossa Constituição
Federal, para garantir os direitos considerados essenciais à dignidade da
pessoa humana, destinou e assegurou aos brasileiros e estrangeiros residentes
no País, garantindo os direitos à educação, à saúde, ao trabalho, à moradia, ao
lazer, à segurança, à previdência social, à proteção à maternidade, à proteção
à infância e a assistência aos desamparados como um verdadeiro piso vital
mínimo, a ser necessariamente assegurado por nosso Estado Democrático de
Direito.
Conforme estabelece essa
carta, a ordem econômica tem por fim assegurar a brasileiros e estrangeiros
residentes no País uma existência digna, conforme princípios explicitamente
indicados no art. 170 (incisos I a IX).
A defesa do meio ambiente
(art. 170, VI), associada à soberania nacional (art. 170, I), assume importante
destaque, influenciando evidentemente toda e qualquer atividade econômica.
Os princípios que
iluminam juridicamente a ordem econômica em nosso país é que o poder público –
não só como agente gestor, normativo e regulador da atividade econômica, mas
principalmente no sentido de assegurar a efetividade do direito ambiental em
face dos recursos ambientais (art. 225, § 1º) – deverá exigir, como regra,
“Estudo Prévio de Impacto Ambiental” para a instalação de toda e qualquer obra,
ou mesmo atividade, que potencialmente possa causar significativa degradação do
meio ambiente – natural, artificial, cultural e do trabalho -, em face daqueles
que pretendam licitamente explorar recursos ambientais.
O bem ambiental, conforme
explica o art. 225 da Constituição, é “de uso comum do povo”, isto é, não é bem
de propriedade pública, mas de natureza difusa, razão pela qual ninguém pode
adotar medidas que impliquem gozar, dispor, fruir do bem ambiental, destruí-lo
ou fazer com ele de forma absolutamente livre tudo aquilo que é da vontade, do
desejo da pessoa humana no plano individual ou meta-individual.
Ao bem ambiental é
somente conferido o direito de uso, garantido o direito das presentes e futuras
gerações.
A natureza jurídica do
bem ambiental como de único e exclusivo uso comum do povo, elaborada pela
Constituição de 1988 e vinculada à ordem da econômica, visando assim a atender
às relações de consumo, mercantis e a outras importantes relações destinadas à
pessoa humana, tem na dignidade da pessoa humana seu mais importante fundamento.
Ressalte-se que a
obrigação daqueles que exploram recursos naturais não se esgota na recuperação
do meio ambiente natural degradado (art. 225, § 2º, da Constituição Federal),
mas decorre também do impacto ocasionado sobre a vida em todas as suas formas,
o que levará ao controle do meio ambiente em todas as suas manifestações
(natural, cultural, meio ambiente artificial e meio ambiente do trabalho), na
forma da lei.
Estamos convencidos de
que é imprescindível mudar o modelo econômico vigente, de que é preciso lançar
um olhar holístico, integral da realidade. A soberania das nações está
seriamente ameaçada, como é o caso do Brasil, com as reformas legislativas em
curso e com o desmantelamento da Constituição Federal, de modo a violentar,
vergonhosamente, o Estado Democrático de Direito.
O Brasil precisa seguir o
exemplo dos seus vizinhos bolivianos, equatorianos e uruguaios, e lutar pelo
direito à água, compreendendo que a água também tem valor econômico porquanto é
vida. Mas que a vida de valor inestimável, não tem PREÇO!
Nota:
Em março de 2010, com o
tema “Água: o grande desafio”, o primeiro Fórum Internacional de Gestão
Ambiental – FIGA fez sua primeira edição, onde buscou promover um franco debate
quanto à gestão dos recursos hídricos.
O FIGA é realizado
anualmente pela ARI – Associação Riograndense de Imprensa com o apoio de
diversas entidades e instituições de ensino e pesquisas, na cidade de Porto
Alegre, no estado do Rio Grande do Sul e já reuniu, desde sua primeira edição,
os maiores especialistas em gestão de recursos hídricos do Brasil e do
exterior. http://figambiental.com.br/
* REDD – Redução de
Emissões por Desmatamento e Degradação. (ecodebate)
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