“Como disse
antes, se não fizermos nada a respeito da mudança climática, seremos tostados,
assados e grelhados num horizonte de tempo de 50 anos. (…) Se não encararmos
essas duas questões – mudança climática e desigualdade crescente – avançaremos
a partir de agora em direção a sombrios 50 anos”. Quem fala é Christine
Lagarde, diretora do Fundo Monetário Internacional, durante um painel da Future
Investment Initiative, ocorrido em 25 de outubro em Riad, na Arábia Saudita.
É positivo
que o FMI funcione como uma caixa de ressonância da ciência e que junte sua voz
ao coro dos alertas sobre a situação-limite em que a humanidade e a biosfera se
encontram. Mas o FMI é o primogênito e um dos principais gendarmes da ordem
econômica internacional que está condenando os homens e a biosfera a serem
“tostados, assados e grelhados num horizonte de tempo de 50 anos”. Não tem,
portanto, autoridade moral para emitir alertas desse gênero. “Como disse
antes”, afirma acima Lagarde… De fato, já em 2012, às vésperas da Rio+20, ela
havia declarado num encontro do Center for Global Development, em Washington,
que “a mudança climática é claramente um dos grandes desafios de nosso tempo,
um dos grandes testes de nossa geração. Para os mais pobres e mais vulneráveis
do mundo, a mudança climática não é uma possibilidade distante. É uma realidade
presente”. E anunciava então que o FMI desenvolveria pesquisas e daria suporte
analítico aos países com políticas de redução de emissões de gases de efeito
estufa (GEE), em particular através de instrumentos fiscais, como precificação
do carbono e eliminação dos subsídios. Passados cinco anos, eis o que
aconteceu:
1. Os
subsídios à indústria de combustíveis fósseis continuam a crescer. Em 2013,
eles montavam a US$ 4,9 trilhões e em 2015 atingiram US$ 5,3 trilhões, ou 6,5%
do PIB mundial, segundo um estudo recente. “A eliminação desses subsídios”,
afirmam seus autores, “teria reduzido as emissões de carbono, em 2013, em 21%,
e em 55%, as mortes por poluição causada pela queima de combustíveis fósseis,
ao mesmo tempo em que teria elevado a renda em 4% do PIB global e o bem-estar
social em 2,2%”. Se entendidos stricto
sensu, ou seja, como privilégio fiscal ou transferência de recursos
estatais para essa indústria, os subsídios dos governos do G20 – os mesmos que
prometeram seu fim em 2009 – montavam em 2015 a US$ 444 bilhões.
2. Imposto
sobre a emissão de carbono (carbon
tax). A segunda medida apoiada por Lagarde era a precificação
adequada do carbono: “corrigir seus preços significa usar uma política fiscal
capaz de garantir que o malefício que causamos reflita-se nos preços que
pagamos”. Tal imposto foi sugerido já em 1973 por David Gordon Wilson, do MIT,
e reproposto agora, pela enésima vez, por 13 economistas, no âmbito de uma
iniciativa presidida por Joseph Stiglitz e Sir Nicholas Stern. O estudo sugere
que este seja em 2020 de 40 a US$ 80 por tonelada de CO2 emitido e, em
2030, de 50 a 100 dólares. Não se sabe em quanto esse imposto, se adotado,
contribuiria para a redução das emissões de GEE. Mas se sabe que o FMI em nada
tem contribuído para viabilizá-lo. De resto, em março último, Trump descartou-o
e sem o apoio dos EUA, um dos maiores produtores mundiais de petróleo, ele
parece hoje mais irrealista que nunca.
Leonardo
Martinez-Diaz, do World Resources Institute, percebe bem a hipocrisia do FMI:
“Uma das funções centrais do FMI é a vigilância macroeconômica. (…) O Fundo
deveria colocar o risco climático no diálogo com os Estados, como um item
formal de suas consultas”. E, sobretudo, “considerar as despesas em resiliência
como investimentos dos Estados devedores”. Mas isso Christine Lagarde não fez,
e não fará, porque prejudicaria os interesses dos credores.
Voluntários posam nus, na
geleira de Aletsch, nos Alpes suíços, durante campanha ambiental sobre o
aquecimento global, em 2007.
Quatro
décadas de alertas científicos
Se é nula a
credibilidade do FMI no que se refere à sua contribuição para mitigar essa
situação extremamente grave, isso não altera o fato de que o diagnóstico de
Lagarde baseia-se no mais consolidado consenso científico. Há décadas a ciência
adverte que o aquecimento continuado da atmosfera e dos oceanos – causado,
sobretudo pela queima de combustíveis fósseis, pelo desmatamento e pelo surto
global de carnivorismo – lançaria o século XXI num série de crescentes
desastres sociais e ambientais. Quase quatro décadas atrás, em 1981, quando o
aquecimento global era ainda de apenas 0,4o C acima dos anos 1880, James Hansen
e colegas afirmavam num trabalho da Science:
“Efeitos
potenciais sobre o clima no século XXI incluem a criação de zonas propensas a
secas na América do Norte e Ásia Central como parte de uma mudança nas zonas
climáticas, erosão das camadas de gelo da Antártica com consequente elevação
global do nível do mar e a abertura da famosa passagem do Noroeste [no Ártico].
(…) O aquecimento global projetado para o próximo século é de uma magnitude
quase sem precedentes. Baseados nos cálculos de nosso modelo, estimamos que ele
será de ~2,5°C para um cenário com lento crescimento de energia e um misto de
combustíveis fósseis e não fósseis. Esse aquecimento excederia a temperatura
durante o período antitermal (6.000 anos atrás) e o período interglacial
anterior (Eemiano) e se aproximaria da temperatura do Mesozoico, a idade dos
dinossauros”.
Entre
1984 e 1988, James Hansen depôs três vezes no Senado dos Estados Unidos. Na
última vez, diante de 15 câmaras de televisão, projetou cenários de aquecimento
global de até 1,5°C em 2019 em relação à média do período 1951-1980, como
mostra a Figura 1, reproduzida a partir desse histórico documento de 1988.
Figura 1 - Projeção de
aquecimento médio superficial global até 2019, segundo três cenários.
O Cenário A
supõe uma taxa de aumento das emissões de CO2 típica dos 20 anos anteriores a
1987, isto é, um crescimento a uma taxa de 1,5% ao ano. O Cenário B assume
taxas de emissão que estacionam aproximadamente no nível de 1988. O Cenário C é
de drástica redução dessas emissões atmosféricas no período 1990 – 2000. A
linha contínua descreve o aquecimento observado até 1987. A faixa cinza recobre
o nível pico de aquecimento durante os períodos Antitermal (6.000 anos AP) e
Eemiano (120.000 anos AP). O ponto zero das observações é a média do período
1951-1980.
Fonte: “The Greenhouse Effect: Impacts on Current
Global Temperature and Regional Heat Waves”, figura 3. Documento apresentado ao
Senado por James Hansen em 1988. Veja-se: https://climatechange.procon.org/sourcefiles/1988_Hansen_Senate_Testimony.pdf
As
projeções de Hansen são uma das mais espetaculares demonstrações de
inteligência do sistema Terra na história recente da ciência, que só hoje
podemos aquilatar em sua real dimensão. Seus Cenários A e B anteciparam a uma
distância de 30 anos um aquecimento médio global entre ~1,1°C e 1,5°C. Foi
exatamente o que aconteceu, como mostra a Figura 2.
Figura 2 – Temperaturas
superficiais globais em relação ao período de base 1880-1920.
Como se vê,
desde 1970 as temperaturas médias globais têm se elevado 0,18°C por década e
em 2016 elas atingiram +1,24°C em relação a 1880-1920. Mantida a aceleração do
aquecimento médio global observada no triênio 2015-2017 (~0,2°C), deveremos
atingir ou estar muito próximos, em 2019, do nível de aquecimento previsto no
pior cenário assumido por James Hansen e colegas.
Energias
fósseis x energias renováveis e de baixo carbono
Naturalmente,
quem está no controle do mundo não se interessa por acurácia científica, quando
esta interfere em seus planos de negócios. Os alertas de toda uma legião de
cientistas no mundo todo continuam a se espatifar contra o muro inexpugnável
das corporações, que impuseram e continuam a impor à humanidade e à biosfera o
“Cenário A” previsto por James Hansen. Os números, melhor que quaisquer
argumentos, revelam a extensão do crime: desde 1988, data do testimony de Hansen no Senado
dos EUA, mais CO2 foi lançado na atmosfera do que entre 1750 e 1987,
como mostra a Figura 3.
Figura 3 - Emissões industriais de CO2
entre 1751 e 2014. De 1751 a 1987 foram emitidas 737 Gt (bilhões de toneladas).
Entre 1988 e 2014 foram emitidas 743 Gt. Fonte: T. J. Blasing, “Recent
Greenhouse Gas Concentrations”. Carbon Dioxide Information Analysis Center (CDIAC), Abril, 2016, baseado em Le Quéré et al. (2014) e Boden,
Marland e Andres (2013).
Em 2017
teremos já ultrapassado 800 Gt de CO2 emitidos na atmosfera em quarenta anos. As corporações que lucram com
essas emissões e com a destruição das florestas – em especial os
xifópagos Big Oil & Big Food – venceram e
continuam vencendo. Em Riad, na semana passada, Christine Lagarde acrescentou
que “as decisões devem ser imediatas, o que provavelmente significará que nos
próximos 50 anos o petróleo se tornará uma commodity secundária”. Foi contradita por Amin
Nasser, presidente da estatal Saudi Arabian Oil Company (Aramco):
“Alternativas, carros elétricos e renováveis estão definitivamente ganhando
participação no mercado e estamos vendo isso. Mas décadas serão ainda
necessárias antes que assumam uma participação maior na oferta de energia
global”.
Mantido o
paradigma expansivo do capitalismo (obviamente dependente das reservas
restantes de petróleo, algo incerto), o prognóstico de Amin Nasser afigura-se
mais credível que o de Christine Lagarde. Ele ecoa a convicção de seus pares de
que a hegemonia dos combustíveis fósseis não será sequer ameaçada, quanto menos
superada, por energias de baixo carbono pelos próximos dois ou três decênios.
Barry K. Worthington, diretor da toda poderosa United States Energy Association,
afirma, e é fato, que “nenhuma projeção credível” mostra uma participação menor
que 40% dos combustíveis fósseis em 2050. Mesmo o carvão, cujo declínio
iniciado nos dois últimos anos parecia a muitos ser irreversível, resiste. Nos
EUA, sua produção em 2017 será 8% maior que em 2016. No mundo todo havia, em
outubro de 2017, 154 unidades termelétricas movidas a carvão em construção e
113 em expansão, um número ainda superior ao das unidades que estão sendo
desativadas.
Um
argumento em favor da ideia de uma ainda longa hegemonia futura dos
combustíveis fósseis provém de um trabalho de três pesquisadores da
Universidade de Bergen, na Noruega. Os autores partem da constatação de que em
2015 o consumo energético global foi de 17 Terawatts (TW), dos quais apenas
3,9% (0,663 TW) provieram de energias eólica (0,433 TW) e fotovoltaica (0,230
TW). Assumem em seguida a projeção de que esse consumo quase dobre em 2050,
atingindo 30 TW. Detectam então indícios de que a taxa de crescimento das
energias eólica e fotovoltaica comece a declinar já ao longo da próxima década,
saturando sua capacidade instalada não acima de 1,8 TW em 2030, o que as
levaria a assumir a forma da curva de uma função logística ou sigmóide (em
“S”), como mostra a Figura 4.
Figura 4 - Capacidade instalada global total de energia eólica e fotovoltaica
(pontos verdes).
A linha contínua é a do
modelo logístico (curva sigmóide), semelhante à evolução das energias hidrelétrica
e nuclear. As linhas pontilhadas indicam um intervalo de confiança de 95%. O
ponto vermelho indica os prognósticos das associoções de acionistas. O quadro
inserido mostra o declínio previsto das taxas de crescimento dessas energias. | Fonte: J.P. Hansen, P.A. Narbel, D.L. Aksnes, “Limits to growth in the
renewable energy sector”. Renewable and
Sustainable Energy Reviews, 70, IV/2017, pp. 769-774.
A COP 23 e
a “catastrófica brecha climática”
Como se
sabe, abre-se hoje, 6 de novembro de 2017, em Bonn, mais uma reunião anual da
Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (UNFCCC), a 23ª
Conferência das Partes (COP23). Sua agenda central será fazer avançar as
diretrizes (rule-book) de implementação do Acordo de Paris, preparadas
por um grupo de trabalho – o Ad-hoc Working Group on the Paris Agreement (APA)
–, coordenado pela Nova Zelândia e pela… Arábia Saudita. Por improvável que
seja a projeção de Christine Lagarde de que “nos próximos 50 anos o petróleo se
tornará uma commodity secundária”, suas declarações na capital
mundial do petróleo têm o mérito de reforçar o senso de urgência requerido para
mais essa rodada de negociações. Esse senso de urgência é mais que nunca
necessário, pois o contexto político e ambiental em que se abre a COP23 não
poderia ser mais adverso, como bem indica o quadro atual de bloqueio do Acordo,
em contraste com a angustiante aceleração da degradação ambiental nos últimos
meses:
1. Quase
dois anos após sua assinatura, o Acordo de Paris não foi ainda ratificado
(i.e., não está em vigor) por 13 países produtores e detentores das maiores
reservas mundiais de petróleo, conforme mostra a tabela abaixo:
A esses 13
países que não ratificaram o Acordo, acrescentam-se os EUA, em vias de
deixá-lo. De modo que mais de um terço da produção mundial de petróleo
encontra-se em nações que não reconhecem oficialmente o Acordo de Paris, e não
o reconhecem, declaradamente ou não, porque não têm intenção de diminuir sua
produção.
2. Em
julho, reunido na China, o G20 deu uma demonstração de fraqueza ou de
oportunismo ao ceder às pressões dos EUA e da Arábia Saudita para eliminar de
sua declaração conjunta final qualquer menção à necessidade de financiar a
adaptação dos países pobres às mudanças climáticas, condição de possibilidade
do Acordo de Paris.
3. Em 18 de
outubro passado, o Global Forest Watch revelou que em 2016 foram destruídos
globalmente 297 mil km2 de florestas pelo avanço da agropecuária, da
mineração, da indústria madeireira e de incêndios mais devastadores, criminosos
e/ou exacerbados pelas mudanças climáticas. Trata-se de um recorde absoluto em
área destruída e de um recorde no salto de 51% em relação a 2015, como mostra a
Figura 5.
Figura 5 – Perdas de cobertura florestal global de 2011 a 2016.
Em 30 de outubro, a
Organização Meteorológica Mundial (OMM) reconheceu um avanço de 3,3 ppm (partes
por milhão) nas concentrações atmosféricas de CO2 no intervalo de
apenas 12 meses. Essas concentrações “deram em 2016 um salto, numa velocidade
recorde, atingindo seu mais alto nível em 800 mil anos”. Desde 1990, afirma o
boletim da OMM, houve um aumento de 40% na forçante radiativa total (o balanço
entre a energia incidente e a energia refletida de volta para o espaço pelo
sistema climático da Terra) causada pelas emissões de GEE, e um aumento de 2,5%
apenas em 2016 em relação a 2015.
Enfim, o
oitavo Emissions Gap Report, de 2017, publicado pelo Programa das
Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), adverte que as reduções de emissões
de GEE acordadas em Paris estão muito aquém do requerido para conter o
aquecimento médio global abaixo de 2°C ao longo deste século. Como faz notar
Erik Solheim, diretor do (PNUMA), “as promessas atuais dos Estados cobrem não
mais que um terço das reduções necessárias. (…) Os governos, o setor privado e
a sociedade civil devem superar essa catastrófica brecha climática”. E reafirma
que, se os compromissos nacionais (NDCs) forem implementados, chegaremos ao
final deste século com um aquecimento médio global de cerca de 3,2°C (2,9°C a
3,4°C). Mas os governos estão descumprindo até mesmo esse terço por eles
prometido em 2015. Segundo Jean Jouzel, ex-vice-presidente do IPCC, “os
primeiros balanços das políticas nacionais mostram que, globalmente, estamos
abaixo dos engajamentos assumidos em Paris. E sem os EUA, será muito difícil
pedir aos outros países que aumentem suas ambições. (…) Para manter alguma
chance de permanecer abaixo dos 2°C é necessário que o pico das emissões seja
atingido no mais tardar em 2020”.
Não há que
se preocupar. Faltam ainda mais de dois anos. (ecodebate)
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