Cuidado da
água no contexto da globalização – Mercantilização ou Republicanização?
Nenhuma
questão hoje é mais importante do que a da água. Dela depende a sobrevivência
de toda a cadeia da vida e, consequentemente, de nosso próprio futuro. Ela pode
ser motivo de guerra como de solidariedade social e cooperação entre os povos.
Mais ainda, como querem fortes grupos humanistas, ao redor da água poder-se-á e
seguramente dever-se-á criar o novo pacto social mundial que crie um consenso
mínimo entre os povos e governos em vista de um destino comum, nosso e do
sistema-vida.
Independentemente
das discussões que cercam o tema da água, uma afirmação segura e indiscutível
podemos fazer: a água é um bem natural, vital, insubstituível e comum. Nenhum
ser vivo, humano ou não humano, pode viver sem a água.
Da
forma com que tratamos a água dependerá a forma que ganhará a globalização. Daí
ser importante discutirmos rapidamente a relação entre globalização e cuidado
da água.
E
aqui temos que fazer uma opção prévia. Conforme for a decisão, outras serão as
consequências.
Ou
bem abordaremos a relação globalização-água a partir da globalização como ela
está se dando hoje, com sua lógica interna, e então teremos uma concepção de
água e um cenário de nosso futuro ou bem trataremos a relação a partir da água
o que nos levará a desenvolver outra concepção de globalização, com outra
lógica, que resultará outro cenário para o futuro da vida e do ser humano na
Terra.
Como
está a água no mundo
Mas
antes, consideremos rapidamente os dados básicos sobre a água.
Existe
cerca de um bilhão e 360 milhões de km cúbicos de água na Terra. Se tomarmos
toda essa água que está nos oceanos, lagos, rios, aquíferos e calotas polares e
distribuíssemos equitativamente sobre a superfície terrestre, a Terra ficaria
mergulhada na água a três km de profundidade.
97,5%
é água salgada e 2,5% é água doce. Mais de 2/3 destas águas doces se encontram
nas calotas polares e nas geleiras no cume das montanhas (68,9%) e quase todo o
restante (29,9%) são águas subterrâneas. Sobrem 0,9% nos pântanos e 0,3% nos
rios e lagos de onde sai a maior parte da água doce para o consumo humano e dos
animais, irrigação agrícola e uso industrial.
O
acesso à água doce é cada vez mais precário por causa da crescente contaminação
dos lagos e rios e mesmo da atmosfera que provoca chuvas ácidas. Esgotos mal
tratados, uso de detergentes não biodegradáveis, emprego abusivo de agrotóxicos
contaminam os lenços freáticos, efluentes industriais despejados nos cursos
d’água, devolvem aos rios envenenamento e morte, comprometendo a frágil e
complexa cadeia de reprodução da vida.
Mesmo
assim a água há superabundante no planeta. A renovação das águas é da ordem de
43 mil km cúbicos por ano, enquanto o consumo total é estimado em 6 mil km3
por ano.
Há
muita água, mas desigualmente distribuída: 60% se encontra em apenas 9 países,
enquanto 80 outros enfrentam escassez. Pouco menos de um bilhão de pessoas
consome 86% da água existente enquanto para 1,4 bilhões é insuficiente (em 2020
serão três bilhões) e para dois bilhões, não é tratada, o que gera 85% das
doenças. Presume-se que em 2032 cerca de 5 bilhões de pessoas serão afetadas
pela crise de água.
Não
há problema de escassez de água, mas de má gestão para atender as demandas
humanas e dos demais seres vivos.
O Brasil é a potência
natural das águas, com 13% de toda água doce do Planeta perfazendo 5,4 trilhões
de metros cúbicos. Mas é desigualmente distribuída: 70% na região amazônica,
15% no Centro-Oeste, 6% no Sul e no Sudeste e 3% no Nordeste. Apesar da
abundância, não sabemos usar a água, pois 46% dela é desperdiçada, o que daria
para abastecer toda a França, a Bélgica, a Suíça e o Norte da Itália. É
urgente, portanto, um novo padrão cultural.
A
água vista a partir da globalização
A
globalização é um fenômeno complexo. Pode ser vista como uma nova fase da
humanidade e da Terra como Gaia. Trata-se do fenômeno antropológico-cósmico do
retorno dos povos depois da grande dispersão ocorrida há milhões de anos a
partir da África. Agora os povos e as culturas se colocam em movimento e se
encontram num único lugar, o planeta Terra. Junto a isso cria-se uma nova consciência,
planetária, com o sentido de que temos, Terra e Humanidade uma mesma origem e
um mesmo destino. Na verdade, somos a própria Terra que sente, pensa, ama,
venera e cuida. Já nos anos 30, Teilhard de Chardin falava da irrupção da
noosfera, como nova etapa ascendente da espécie humana. A globalização é um
fenômeno histórico-social-político: as infovias propiciaram todo tipo de trocas
entre os seres humanos, valores, visões de mundo, formas políticas, tradições
espirituais e religiosas transitam de um canto a outro. Ela assume também uma
dimensão ecológica: os fenômenos naturais afetam a todos os seres humanos.
Sentimo-nos todos interdependentes.
A
globalização é um fenômeno econômico e financeiro. Representa a expansão sobre
todo o planeta do sistema do capital com seu sistema financeiro, seus mercados
de moedas e de commodities. Representa a unificação do espaço das trocas e a
gestação do sistema-mundo.
Este
sentido de globalização é dominante. Ele se rege pela lógica da economia de
mercado que é a competição e a vontade de maximizar os ganhos. Isso se faz
mediante grandes conglomerados supra e multinacionais com poder econômico às
vezes superior a muitos países. A tendência é transformar tudo em mercadoria e
oportunidade de lucro e levar à banca dos negócios.
Em
razão desta lógica se procura patentear os conhecimentos científicos, bens da
natureza, até genes como o que produz o câncer de mama. Tudo é privatizável e
feito mercadoria, sem limites.
A
água, por causa de sua escassez é vista como recurso hídrico e bem econômico.
Ela é uma mercadoria e fonte de lucro.
Há
uma corrida mundial na privatização da água. Aí surgem grandes empresas
multinacionais como as francesas Vivendi e Suez-Lyonnaise, a alemã RWE, a
inglesa Thames Water e a americana Bechtel. Criou-se um mercado das águas que
envolve cerca de US$ 100 bilhões. Aí estão fortemente presentes na
comercialização de água mineral a Nestlé e a Coca-Cola que estão buscando
comprar fontes de água por toda a parte no mundo.
Os
organismos de financiamento como o FMI e o Banco mundial condicionaram a partir
do ano de 2000 a 40 países a renegociação da dívida e os novos empréstimos sob
a condição de privatizarem a água e seus serviços. Assim foi com Moçambique em
1999 para receber 117 milhões de dólares. Em 2000 ocorreu com Cochabamba na
Bolívia. A empresa americana Bechtel comprou as águas e elevou os preços a 35%.
A reação organizada da população fez com que saíssem do país.
Na
Índia a água foi privatizada em muitas grandes cidades. A carência de água
potável da população é tão grande que os carros-pipas são assaltados. Só
conseguem chegar ao destino com proteção policial.
A
água está se tornando “fator de instabilidade no Planeta”. Poderão ocorrer
guerras para garantir o acesso à água potável.
A
visão mercadológica da água distorce as relações água-globalização pela
competitividade desenfreada entre as grandes empresas que impede acordos e
assim prejudicam as populações pela primazia da rentabilidade pelo descaso ao
princípio da solidariedade social e da comunidade de interesse e do respeito
das bacias hidrográficas que transcendem os limites das nações, pelo desprezo
do uso racional e equitativo da água como ocorre entre a Turquia de um lado e a
Síria e o Iraque do outro, ou de Israel, da Jordânia e da Palestina, ou entre
os USA e o México ao redor dos rios Rio Grande e Colorado.
A
exacerbação da propriedade privada faz com que se trate a água sem o sentido de
partilha e de consideração das demandas dos outros.
Face
a estes excessos a comunidade internacional, a ONU estabeleceu nas reuniões de
Mar del Plata (1997), Dublin (1992), Paris (1998), Rio de Janeiro (1992)
consagrou “o direito de todos a terem acesso à água potável em quantidade
suficiente e com qualidade para as necessidades essenciais”.
A globalização
vista a partir da água
Bem
outra é a perspectiva quando damos centralidade à água e a partir dela vemos a
globalização. Aqui O grande debate hoje se trava nestes termos:
A
água é fonte de vida ou fonte de lucro? A água é um bem natural, vital, comum e
insubstituível ou um bem econômico a ser tratado como recurso hídrico e como
mercadoria?
Ambas
as dimensões não se excluem, mas devem ser retamente relacionadas.
Fundamentalmente a água é direito à vida, como insiste o grande especialista em
águas Ricardo Petrella (O Manifesto da Agua, Vozes, Petrópolis 2002). Nesse
sentido a água de beber, para uso na alimentação e para higiene pessoal deve
ser gratuita (cf. Paulo Affonso Leme Machado, Recursos Hídricos. Direito
Brasileiro e Internacional, Malheiros Editores, São Paulo 2002, 14-17). Por
isso, com razão, diz em seu artigo primeiro a lei n.9.433 (8/1/97) sobre a
Política Nacional de Recursos Hídricos: “a água é um bem de domínio público; a
água é um recurso natural limitado, dotado de valor econômico; em situação de
escassez, o uso prioritário dos recursos hídricos é o consumo humano e a
dessententação de animais”.
Como,
porém a água é escassa e demanda uma complexa estrutura de captação,
conservação, tratamento e distribuição implica uma inegável dimensão econômica.
Esta, entretanto, não deve prevalecer sobre a outra, ao contrário, deve
torná-la acessível a todos e os ganhos devem respeitar a natureza comum, vital
e insubstituível da água. Mesmo implicando altos custos econômicos que devem
ser cobertos pelo Poder Público.
A
água não é um bem econômico como qualquer outro. Ela está tão ligada à vida que
deve ser entendida como vida. E vida não deve ser transformada em mercadoria. A
água está ligada a outras dimensões culturais, simbólicas e espirituais do ser
humano que a tornam preciosa e carregado de valores que, em si não têm preço.
Para
entendermos a riqueza da água que transcende sua dimensão econômica precisamos
romper com a ditadura que o pensar racional-analítico e utilitarista impõe a
toda a sociedade. Este vê a água como recurso hídrico. O ser humano tem outros
exercícios de sua razão. Há a razão sensível, a razão emocional e a razão
espiritual. São razões ligadas ao sentido da vida. Oferecem não as razões de
lucrar, mas as razões de viver e conferir excelência à vida. A água é vista
como vida, com bem comum natural, como fonte e nicho de onde há bilhões de anos
surgiu a vida.
Como
reação à dominação da globalização da água se busca a republicanização da água.
A água é um bem comum público mundial. É patrimônio da biosfera e vital para
todas as formas de vida.
Importa
proclamar o reconhecimento formal do direito à água como direito humano
universal em todos os organismos do local ao internacional. Cabe ao poder
público junto com a sociedade organizada criar um financiamento público para
cobrir os custos necessários para garantir o acesso à água potável a todos.
Em
função destas exigências se criou o FAMA – o Fórum Mundial Alternativo da Água
em março de 2003 em Florença na Itália. Junto a isso se propõe criar a Autoridade
Mundial da Água, uma instância de governo público, cooperativo e solidário da
água em nível das grandes bacias hídricas internacionais e de uma distribuição
mais equitativa da água segundo as demandas regionais.
Função
importante é pressionar os Governos e as empresas para que a água não seja
levada aos mercados nem seja considerada mercadoria.
Deve-se
garantir a todos gratuitamente pelo menos 50 litros de água potável e sã. As
tarifas para os serviços devem contemplar os diversos níveis de uso, se doméstico,
se industrial, se agrícola, se recreativo. Para os usos industriais da água e
na agricultura, evidentemente, água é sujeita a preço.
Incentivar
a cooperação público-público para impedir que tantos morram em consequência da
falta de água ou em consequência de águas maltratadas. Diariamente morrem 6 mil
crianças por sede. Os noticiários nada referem. Mas isso equivale a 10 aviões
boeing que caem ou mergulham nos oceanos com a morte de todos os passageiros.
Evitar-se-ia que cerca de 18 milhões de meninos/meninas deixem de ir a escola
porque são obrigadas a buscar água a 5-10 km de distância. Paralelo a isso corre a
articulação mundial para um Contrato Mundial da Água. Seria um contrato social
mundial ao redor daquilo que efetivamente nos une que é a vida das pessoas e
dos demais seres vivos, indissociáveis da água.
Uma
fome zero mundial, prevista pelas Metas do Milênio deve incluir a sede zero,
pois não há alimento que possa existir e ser consumido sem a água.
A
partir da água outra imagem da globalização surge, humana, solidária,
cooperativa e orientada a garantir a todos os mínimos meios de vida e de
reprodução da vida.
Ela
é vida, geradora de vida e um dos símbolos mais poderosos da vida eterna.
(ecodebate)
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