Fiocruz (PE) fala sobre o
protesto em Correntina (BA) contra o uso indiscriminado de água.
Pesquisador
da Fiocruz Pernambuco fala sobre o protesto em Correntina (BA) contra o uso
indiscriminado de água para irrigação.
‘Fundamentalmente,
foi a omissão do Estado que levou a isso’
No dia
seguinte ao feriado de Finados, vários jornais denunciaram a “invasão” de
pessoas nas Fazendas Igarashi e Curitiba, no distrito de Rosário, município
de Correntina (BA), mostrando máquinas,
instalações e pivôs – equipamentos que tiram a água dos mananciais – quebrados
e incendiados. O que não foi evidenciando, no entanto, é que milhares de
moradores da Comunidade Ribeirinha do Rio Arrojado entraram nas duas grandes
fazendas para protestar contra o uso indiscriminado de água para irrigação, que
causa uma crise de abastecimento na cidade e o esgotamento dos recursos
hídricos da região, provenientes do rio São Francisco.
Além da
exploração hídrica, a área foi completamente devastada pelo agronegócio,
levando à extinção da fauna e flora, restando hoje 48% da sua mata nativa. A
constatação é feita por André Monteiro, pesquisador do Centro de Pesquisas
Aggeu Magalhães da Fundação Oswaldo Cruz (CPqAM/Fiocruz, que foi para a cidade
acompanhar outra manifestação, realizada no dia 11 de novembro, que levou cerca
de 10 mil pessoas às ruas de Correntina para denunciar o baixo nível do rio
Arrojado. Para ele, que gravou na ocasião o minidocumentário ‘Insurgentes’, a
mobilização de grande parte da pequena cidade, que ganhou atenção nacional, é
resultado da omissão do Estado, que não impõe limites à “hiperexploração
hídrica”.
Protesto em Correntina contra o uso abusivo das águas
Qual é o panorama dos recursos hídricos na região de Correntina?
Há uma
hiperexploração hídrica em decorrência de um esgotamento progressivo que vem
acontecendo na região. Há tempos, vários especialistas denunciam que o
desmatamento do Cerrado têm levado à perda de vazão nos rios e a um
empobrecimento do aquífero da região, o Urucuia, que é o maior contribuinte do
rio São Francisco. Esse é um processo antigo, mas que a partir de 2008 se
acelerou por conta da exportação de commodities agrícolas, como a soja.
As
tecnologias utilizadas na irrigação das fazendas, como o pivô central, são
perdulárias no uso da água, de baixíssima eficiência. Além desse uso abusivo de
água, o desmatamento tem consequências diretas nos volumes disponíveis porque
provoca a compactação do solo, uma infiltração baixa, muito escoamento
superficial. Chegou a um ponto que os rios do Cerrado começaram a secar.
E o que se
vê em Correntina é exatamente isso: uso predatório dos recursos hídricos. As
fazendas da região constroem piscinas imensas, de cerca de mil metros cúbicos.
Em cada uma, há uma bomba associada. Há lugares com 24 piscinas e,
consequentemente, 24 bombas ou pivôs [de irrigação] ligados de uma vez só.
Então, quando eles ligavam as bombas, o rio não tinha vazão suficiente. Em várias
situações, o rio secava completamente em um trecho por conta dessa irrigação. E
depois de algumas horas, voltava a fluir.
A população
da cidade protesta pelo menos desde 2015 contra esse abuso. Queriam chamar
atenção dos órgãos ambientais de controle, do próprio Ministério Público. Mas,
desde então, praticamente nada foi feito. E aí foi muito impactante quando eu
vi aquela manifestação de mil pessoas na Fazenda Igarashi. Não é comum tanta
gente, é algo muito forte do ponto de vista da indignação, quando a população
se mobiliza assim.
Em sua avaliação, o que significou esse protesto?
Na
manifestação que houve em 11/11/17, e também conversando com pessoas na rua, o
sentimento da comunidade é que que todos eles invadiram aquela fazenda. Quando
eu cheguei lá, fui jantar na primeira noite e perguntei ao garçom: “E a
manifestação?” E ele: “Foi a gente que fez.”; Eu disse: “Mas você foi?”; e ele:
“Não fui pessoalmente, mas fui porque estava lá com todos eles, toda a
população estava”.
Eu pensei
como é incomum uma situação em que uma grande parte da população se reconhece,
se identifica com o grupo que protesta invadindo uma fazenda. Não dá para dizer
que havia um movimento, que havia um grupo. Na ocupação foram mil pessoas. E na
medida em que depois do dia 2 de novembro, a mídia tradicional foi em cima,
inicialmente taxando como se tivesse sido o MST [Movimento dos Trabalhadores
Sem Terra, que negou participação no ato, mas apoiou publicamente a luta dos
moradores]. Foi um déjà-vu da década de 1990, no governo Fernando Henrique,
essa demonização do MST… E você tem um discurso de algumas autoridades chamando
a população de uma forma geral de ‘terroristas’. Isso, a meu ver, gerou uma
indignação muito grande. Foi a catalisação de um processo a partir de
indignação pela exaustão dos recursos hídricos, várias comunidades tradicionais
e agricultores relatam que não tem mais condições de criar seu gado por conta
da falta de água.
Já poderíamos dizer que na região há rios secos?
Na
manifestação, as pessoas falavam nomes de riachos que já estariam mortos. Isso
é grave, o que só comprova que o uso de pivôs já devia ter sido superado há
muito tempo. Além disso, a prática de construir grandes piscinas, além de levar
o rio à exaustão, já chegou ao limite. Já têm até propriedades abandonadas pelo
agronegócio, porque não tem água suficiente também para ele. Só para termos uma
ideia, a Fazenda Igarashi, em 2015, captava 180 mil metros cúbicos de água por
dia, fazendo uso de 32 bombas.
A
Associação Ambientalista Corrente Verde, em Correntina, chegou a entrar com uma
ação civil pública pedindo a suspensão da captação de água em uma fazenda da
empresa Sudotex. A Justiça chegou a conceder uma liminar autorizando, mas logo
depois o Tribunal de Justiça pronunciou-se contrário à decisão, dizendo que o
empreendimento seria inviabilizado e a empresa poderia se transferir e,
consequentemente, a região perderia empregos. E quem recorreu da primeira
decisão foi nada mais nada menos do que o Instituto Estadual do Meio Ambiente e
Recursos Hídricos (Inema). Não foram os proprietários da fazenda…
Há
uma chantagem de cunho econômico que não é de hoje. O Estado, em todos os
níveis, tem uma centralidade em relação às commodities e não cede em nada do
ponto de vista socioambiental, usando todo o seu aparato para dar continuidade
a um modelo de desenvolvimento do agronegócio, da mineração e de outros
processos produtivos como de energia e água, o que só faz aumentar os conflitos
no campo relacionados a povos e comunidades tradicionais. Isso vai além da
conjuntura política atual, vem já há bastante tempo…
O Brasil
irá receber pela primeira vez o Fórum Mundial da Água, que acontecerá em março
em Brasília, e organiza um fórum alternativo paralelo com a participação de
movimentos sociais, entidades ambientais e sindicatos para debater o papel da
água. O protesto em Correntina, portanto, impulsionaria um debate mais
qualificado no fórum paralelo e deixaria o Fórum Mundial da Água constrangido
em relação a esta correlação de forças entre os interesses do agronegócio e da
população?
Eu tenho
participado de alguns protestos. Além disso, estamos construindo o Dossiê das
Águas, junto com os movimentos sociais. Eu acho que tem um processo que ainda
não está maduro como deveria. A origem do Fama [Fórum Alternativo Mundial da
Água], sua organização e peso político, estão mais ligados a movimentos urbanos
e sindicatos de empresas de saneamento. E esses são conflitos do campo.
Parece-me necessário que haja um amadurecimento nesse sentido, para dar conta
da complexidade e da urgência da questão da água, tanto os riscos de
privatização dos serviços, tanto a apropriação privada do bem comum.
A água tem
assumido um caráter transversal em diversos movimentos sociais e também na
academia, que antes não discutiam a água. Entidades e grupos que não tinham a
água como objetos de estudo passaram a incorporá-la pela emergência da
situação, pela explosão dos conflitos. Isso está relacionado ao modelo de desenvolvimento.
Eu acho que precisamos para o FAMA de uma articulação mais madura desses
movimentos urbanos e do campo. (ecodebate)
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