Organização Mundial da Saúde – 2017
Título original: Potable
Reuse: Guidance for Producing Safe Drinking-water
Tradutor livre: Paulo
Afonso da Mata Machado
“This translation was not created by the World Health Organization
(WHO). WHO is not responsible for the content or accuracy of this translation.
The original English edition shall be the binding and authentic edition”.
É permitida a cópia, a redistribuição e a adaptação desta tradução
para propósitos não comerciais.
“Água
deve ser julgada por sua qualidade, não por sua história.” (Lukas van Vuuren)
* Para acessar à tradução do manual, no formato PDF, clique no
link: 180122 Manual de produção de água potável segura por reuso do esgoto
Prefácio do tradutor
Em 2014, São Paulo enfrentou a maior crise hídrica dos últimos
tempos. O Rio Tietê provocou grandes inundações nas partes baixas da cidade,
causando transtornos imensuráveis no tráfego, por si só já tão complicado. Por
outro lado, o Sistema Cantareira, responsável por grande parte do abastecimento
da cidade, entrou em seu volume morto, provocando um racionamento de água sem
precedentes nas últimas décadas.
Essa situação ressuscitou o antigo projeto de transposição de
águas da bacia do Rio Paraíba do Sul. Desse modo, São Paulo passaria a receber
água de duas bacias externas: a bacia do Piracicaba, que abastece o Sistema
Cantareira, e a bacia do Rio Paraíba do Sul, que já abastece a cidade do Rio de
Janeiro. Sobre isso, assim se manifestou Hespanhol (2014):
A política de importar água de bacias
cada vez mais distantes para satisfazer o crescimento da demanda começou há
mais de dois mil anos com os romanos, dando origem aos seus famosos aquedutos.
A prática ainda persiste, resolvendo, precariamente, o problema de abastecimento
de água de uma região, em detrimento daquela que a fornece. As soluções mais
modernas em termos de gestão de recursos hídricos consistem em tratar e reusar
os esgotos já disponíveis nas próprias áreas urbanas para complementar o
abastecimento público.
Hespanhol (2012) já havia dito:
A sistemática atual é pré-histórica e
irracional, resolvendo precariamente o problema de abastecimento de água em uma
região, em detrimento daquela que a fornece. Há, portanto, necessidade de
adotar um novo paradigma que substitua a versão romana de transportar
sistematicamente grandes volumes de água de bacias cada vez mais longínquas e
de dispor os esgotos, com pouco ou nenhum tratamento, em corpos de água
adjacentes, tornando-os cada vez mais poluídos.
A notícia do colapso hídrico na capital paulista passou a ser tema
diário dos telejornais e ultrapassou as fronteiras do país. A pesquisadora da
Universidade Stanford, na Califórnia, Newsha Ajami, comentou a crise hídrica
com espanto ao se dar conta que o problema não é de falta de água: – Tem um rio
passando na cidade e vocês estão sem água? Nós (na Califórnia) realmente não
temos água, pois não está chovendo e os nossos rios estão secos.
Hespanhol (2014) faz a seguinte previsão:
É inexorável que, dentro de no máximo uma
década, a prática do reuso potável direto, utilizando tecnologias modernas de
tratamento e sistemas avançados de gestão de riscos e de controle operacional,
será, apesar das reações psicológicas e institucionais que a constrangem, a
alternativa mais plausível para fornecer água realmente potável. Além de
resolver o problema de qualidade, o reúso potável direto estaria fortemente
associado à segurança do abastecimento, pois utilizaria fontes de suprimento
disponíveis nos pontos de consumo, eliminando, por exemplo, a necessidade da
construção de longas e custosas adutoras, que, geralmente, transferem água para
grandes centros urbanos, coletada de áreas afetadas por estresse hídrico.
É possível que a incoerência verificada em São Paulo tenha
estimulado a Organização Mundial da Saúde a dar mais atenção às fontes
hídricas, especialmente àquelas originadas pelas águas usadas. O certo é que,
em 2017, surgiu o manual “Potable Reuse – Guidance for Producing Safe
Drinking-water”, cuja tradução livre está sendo entregue ao público.
Nessa obra, os profissionais da Organização Mundial de Saúde (OMS)
deixam claro que o reuso potável, ou seja, a transformação de águas usadas em
água potável é algo que já ocorre em vários países e não apresenta nenhuma
tecnologia nova, pois todos os processos de tratamento utilizados são do
conhecimento dos profissionais da Engenharia Sanitária.
Por outro lado, para a OMS (ou WHO, conforme a sigla em inglês), a
principal dificuldade para implantação do reuso potável não é técnica, mas psicológica.
Os usuários precisam entender como funciona o ciclo hidrológico que atua
constantemente na natureza. Tanto a água do mar como as águas mais
contaminadas, ao se evaporarem, transformam-se em vapor de água, isento de sais
e de qualquer tipo de poluição. A chuva que alimenta as nascentes dos rios, das
quais bebemos sem nenhum tratamento prévio, pode ter sido resultado da
evaporação de pântanos, atoleiros, efluentes hospitalares etc. A transformação
das águas usadas em água potável nada mais é que o homem participando
ativamente do ciclo hidrológico.
Por isso, todo o capítulo 7 do manual, intitulado “The art of
public engagement” (traduzido por “A arte do engajamento público”) é dedicado a
explicar aos profissionais hidrossanitários como convencer o público de que o
reuso potável representa uma fonte segura de abastecimento de água e que, mais
que isso, é uma fonte que não sofre influência do clima e não passa por crises
de abastecimento decorrentes de longos períodos de estiagem.
Estão
certos os profissionais da Organização Mundial de Saúde. No Brasil, a
resistência ao reuso potável tem contestações as mais diversas. Tomamos a
liberdade de acrescentar a este prefácio algumas das contestações feitas,
muitas delas por pessoas diretamente ligadas ao abastecimento público de água.
Perguntas e respostas
1. O reuso potável do esgoto é
insuficiente para abastecer a população.
É verdade. Os compêndios de Engenharia Sanitária indicam que,
mesmo as águas usadas em uma dada localidade forem completamente captadas, a
vazão fica em torno de 80% da vazão de água que é distribuída. Por isso, o
reuso potável precisa ser complementado por uma vazão adicional. Entretanto,
como esse complemento vai passar pelos mesmos tratamentos do reuso potável,
seus critérios de seleção são muito menos restritivos que aqueles que norteiam
a seleção da água bruta para ETAs convencionais.
É preciso destacar que, se hoje o reuso potável não é necessário
como fonte de água, no futuro poderá vir a ser. À medida que a vazão de distribuição
de água potável aumenta, maiores são as necessidades de água bruta e poderá
haver necessidade de outras fontes de água.
As águas usadas são uma fonte permanente de água, pois um aumento
no consumo de água potável implica aumento em sua geração. Sua vazão não sofre
variação tão grande com o clima como ocorre com a variação de fontes
superficiais e subterrâneas de água.
Finalmente, é preciso destacar que a variação na qualidade da água
das fontes superficiais e subterrâneas afeta a produção de água potável em
estações convencionais, enquanto a variação na composição das águas usadas não
afeta a produção de reuso potável, cujo tratamento biológico é muito superior
ao das ETAS convencionais.
2. O reuso potável é mais caro que o
tratamento de águas superficiais.
É verdade. A transformação de água usada em água potável é mais
cara que a potabilização de água de rios, lagos ou lençóis subterrâneos.
Acontece que a comparação está incompleta. Ao se fazer o reuso
potável, está-se praticando duas atividades: o tratamento das águas usadas e a
produção de água potável.
Sem dúvida alguma, o reuso potável é mais barato que a soma dos
custos de ambos os tratamentos devido à economia de escala. Ressalte-se que
essa diferença de custos é ainda mais marcante nos períodos de escassez hídrica
em que, muitas vezes, é necessário buscar água a longa distância.
3. Uma estação de reuso potável não
conseguirá tratar o esgoto de forma adequada.
No Brasil, essa contestação é feita até mesmo por engenheiros
sanitaristas, que desconhecem o processo que é utilizado desde 1968, quando foi
introduzido em Windhoek, na Namíbia (Seção 8.2). A estação pioneira do país
africano está até hoje em funcionamento.
Na realidade, o reuso potável produz água de melhor qualidade que
muitas estações de tratamento convencionais, pois tem tratamento físico
(retenção em grades, decantação, filtração por membranas, adsorção em carvão
ativado), químico (adição de peróxido de hidrogênio e cloração) e biológico
(ocorre em praticamente toda a estação).
As estações de tratamento convencionais trabalham, muitas vezes,
com coagulação, floculação, decantação, filtração e cloração, o que nem sempre
consegue eliminar todos os poluentes da água bruta.
4. O povo rejeitará a água que foi
esgoto.
Esta é, sem dúvida, uma questão que deve ser abordada com o máximo
cuidado. O problema do reuso potável não é técnico, mas de comunicação.
Reproduzimos o texto original do item 7.4 do manual para que o leitor aprecie,
antes de iniciar a leitura de sua tradução, como esse assunto tem preocupado os
profissionais da Organização Mundial de Saúde:
In some instances, officials have called off plans to implement potable
reuse after they faced public opposition and outcry. Although these projects
were well designed with sound engineering principles, supported by extensive
laboratory tests to ensure water quality, the lack of a well thought out public
communications programme combining science/technology and art/social science
considerations to garner public support dealt them a huge blow. Headlines like
“toilet to tap,” that play on the psychological and emotional aspects of the
human mind, were shown to cloud logical reasoning. The result was public
resistance to potable reuse. But slowly, things are changing. In recent years,
more cities are implementing schemes, fuelled in part by prolonged dry spells
and droughts.
A tradução livre é a seguinte:
Em algumas vezes, autoridades têm cancelado planos para utilizar o
reuso potável depois de terem faceado oposição e clamor público. Embora esses projetos
fossem bem feitos, de acordo com os princípios de Engenharia e sustentados por
testes de laboratório extensivos para assegurar a qualidade da água, a falta de
um bem desenvolvido programa de comunicação pública combinando
ciência/tecnologia e arte/considerações de ciência social para colher apoio
público levaram a um grande fracasso. Frases feitas como “do toalete à
torneira” que provocam aspectos psicológicos e emocionais na mente humana,
encobriram o raciocínio lógico. O resultado foi resistência pública ao reuso
potável. Mas, devagar, as coisas vão mudando. Nos últimos anos, mais cidades
têm desenvolvido projetos, levadas, em parte, por períodos de seca e estiagens.
É importante destacar que, na estação de reuso potável de Orange
County, Califórnia, os visitantes são convidados a tomar um copo de água de
reuso potável. Muitos são aqueles que se recusam a fazê-lo.
Portanto,
a rejeição ao consumo de água obtida pelo reuso potável é seu maior obstáculo,
mas pode ser contornada por uma boa campanha publicitária.
5. O rejeito da filtração por membrana
será altamente poluente.
No caso do reuso potável, não há esse problema, pois antes de
chegar às membranas de ultrafiltração, o líquido passa por wetlands
construídos, reator aeróbio e decantador secundário. O rejeito da
ultrafiltração é encaminhado a um wetland construído, destinado a receber o
efluente do decantador secundário. Uma pequena parcela do rejeito da
ultrafiltração é lançada em valas de filtração para evitar que eventuais
partículas inertes possam circular indefinidamente entre o wetland e os
ultrafiltros. Essa parcela, depois de filtrada, é devolvida às membranas de
ultrafiltração. Não há, portanto, risco de contaminação do meio ambiente por
parte do rejeito da ultrafiltração, porque não é lançado para fora da estação.
Destaque-se que um dos grandes problemas de uma ETA convencional é
a disposição do lodo contido na água de lavagem de filtros, problema que não
existe um uma estação de reuso potável.
6. Como as primeiras unidades de reuso
potável diferem do projeto de uma ETE, não é possível transformar as ETEs
existentes em estações de reuso potável.
As primeiras etapas do reuso potável repetem, com algumas
modificações, os processos convencionais de uma ETE. Em muitos casos, o reuso
potável aproveita ETEs existentes, pois substituí-las pode aumentar o custo do
investimento e apresentar dificuldades durante a construção. Se uma ETE não
estiver bem operada, pode haver problemas na qualidade do produto final e,
portanto, essa ETE deve ser corrigida antes de ser transformada em estação de
reuso potável. Se a ETE está com funcionamento adequado, bastará adaptá-la
para que seu efluente venha a se tornar água potável.
Exemplo típico é a ETE de Ibirité-MG, que produz água de reuso não
potável. Suas unidades são:
1. Grade média mecanizada
2. Desarenador
3. Peneiramento
4. Desodorização
5. Decantadores primários circulares
6. Reatores biológicos
7. Decantadores secundários
8. Mistura rápida
9. Mistura lenta
10. Sedimentação terciária
11. Filtração terciária
12. Biodiscos
13. Desinfecção por UV
O tratamento sólido se compõe de:
1. Adensamento do lodo primário por gravidade;
2. Adensamento dos lodos secundário e terciário por flotação;
3. Estabilização anaeróbia dos lodos;
4. Desaguamento dos lodos por centrifugação;
5. Cogeração com secagem térmica dos lodos para combustão.
As modificações na ETE para transformá-la em estação de reuso
potável seriam tão somente:
1. A jusante dos biodiscos: oxidação; wetland construído horizontal;
e membranas filtrantes de ultrafiltração;
2. A jusante da desinfecção por UV: carvão ativado granulado;
cloração, fluoretação e correção do pH.
Como existe tratamento sólido na estação, a parcela do rejeito da
ultrafiltração que iria para as valas de filtração (cerca de 10%) deve ser
encaminhada ao adensamento por flotação, enquanto o restante deve retornar ao
wetland horizontal. O efluente da cloração será água própria para consumo
humano.
7. Empresas que trabalham com produtos
químicos podem lançar metais pesados na rede de esgoto.
Tal prática não é permitida pela legislação e, em Minas Gerais,
nos municípios em que a COPASA tem concessão para coleta e tratamento das águas
usadas, há o programa PRECEND, que impede o lançamento de efluentes de
características não domésticas na rede pública coletora. Outros estados devem
ter programas semelhantes.
Entretanto, não se pode descartar a possibilidade de descarga de
resíduos tóxicos, que, para passarem despercebidos pelas autoridades
sanitárias, devem estar em quantidade pequena em relação ao volume de águas
usadas.
Uma estação de reuso potável possui barreiras sanitárias em maior
número que uma estação de tratamento de água. Se uma ETA, com o conjunto
coagulação-floculação-decantação-filtração elimina os metais pesados, desde que
não estejam em concentrações elevadas, uma estação de reuso potável tem
barreiras em maior número, incluindo wetlands construídos e membranas de
ultrafiltração, que fazem essa remoção com maior eficiência.
8. Um derrame de material tóxico poderá
contaminar a rede de esgoto.
As tubulações de águas usadas são dotadas de anéis de vedação para
dificultar tanto a entrada como a saída de líquido, embora possa ocorrer
infiltração quando o nível do lençol freático estiver acima da geratriz
superior da tubulação. Na eventualidade de um derramamento tóxico na
superfície, a contaminação somente atingirá a rede coletora de forma indireta,
pois terá de passar pelas barreiras naturais do solo, diluindo-se na água do
lençol freático. Além disso, admitindo-se uma eventual inserção de material
tóxico em uma estação de reuso potável, seus efeitos serão atenuados pelas
muitas barreiras sanitárias da estação.
9. Seria melhor o uso do esgoto tratado
para fins não potáveis, servindo para economizar água potável.
Não há razão para a concessionária vender ao público água de reuso
não potável, pois o tratamento deficiente pode acarretar sério problema
sanitário.
A SABESP tem comercializado água de reuso não potável,
recomendando que não seja usada para consumo humano. Entretanto, trata-se de um
risco muito grande. Ao vender qualquer tipo de água, a companhia não tem mais
controle sobre ele. Se o usuário quiser utilizá-la para regar uma horta ou para
encher uma piscina, não há como impedi-lo. Daí à proliferação de doenças de
veiculação hídrica é um passo curto. Chernicaro (2015) chama atenção para o
risco de se utilizar águas tratadas de forma deficiente:
Os ovos de helmintos mantêm-se viáveis
no solo durante longos períodos, embora variáveis de espécie para espécie.
Sabe-se, por exemplo, que os ovos de A. lumbricoides e de T. saginata podem sobreviver
no solo por períodos superiores àquele necessário para o nascimento das
plantas. As culturas vegetais irrigadas com águas residuais provenientes de
regiões onde a ascaríase e a teníase são endêmicas constituem um risco
potencial da transmissão da doença.
Além do critério sanitário, o reuso potável tem sobre o reuso não
potável vantagens para a empresa de saneamento. O faturamento com a entrega do
reuso potável é muito maior que com a entrega do reuso não potável, de vez que,
para conseguir vender água de segunda categoria, a empresa precisa vendê-la
mais barata. Por outro lado, há toda uma logística de entrega, empregando
caminhões pipa, com o gasto inevitável de combustível.
Se o volume a ser entregue ultrapassar a capacidade dos caminhões
pipa, o reuso não potável necessita de um sistema de distribuição, com
reservatório e rede própria. Tudo isso, além do custo, envolve uma logística
muito grande, com projeto, compra de materiais, escavação etc.
Do ponto de vista do consumidor, este precisa ter um reservatório
próprio além de cuidados especiais para manipulação de água de qualidade
inferior.
A reciclagem de água usada é comum no meio rural para se
aproveitar os nutrientes que ela contém. Contudo, não há fornecimento no meio
rural de água de reuso potável ou não potável por parte de uma empresa de
saneamento. Em geral, as propriedades fazem seu próprio sistema de reuso,
usando tratamento próprio.
O
fornecimento de água de reuso não potável se justifica para o setor industrial,
onde há maior controle e, por conseguinte, são menores os riscos de
contaminação. Entretanto, a maioria das indústrias vem reutilizando sua própria
água, diminuindo a demanda. Fazem exceção os polos petroquímicos, onde a
demanda por água não potável é muito grande, estimulando as empresas de
saneamento a fornecer o reuso não potável.
10. No Brasil, não existem leis que
disciplinem o reuso potável direto.
Essa contestação tem, inquestionavelmente, origem na preguiça. Com
receio de que processos de reuso potável possam não dar certo, há quem se
escude numa possível falta de ordenamento legal.
De fato, não há leis que disciplinem o reuso potável direto, como
não há leis que disciplinem qualquer tipo de tratamento que faça com que a água
se torne potável. A Organização Mundial de Saúde assim se refere a esse assunto
(Seção 8.1):
The content of regulations should be consistent with those developed
for other types of drinking-water supply. Development of a single set of
regulations for drinking-water including potable reuse should be
considered. Tradução livre: O conteúdo das regulamentações deve ser
consistente com aquelas desenvolvidas para outros tipos de fonte para água
potável. O desenvolvimento de um único conjunto de regulamentações para água
potável, incluindo o reuso potável, deve ser considerado.
No Brasil, a determinação de que determinada água tenha qualidade
para ser considerada potável está a cargo do Ministério da Saúde que emite,
periodicamente, uma portaria estabelecendo as condições mínimas para que a água
possa ser considerada potável e possa ser usada por consumo humano. Atualmente,
a Portaria em vigor é a de número 2.914, de 12 de dezembro de 2011 (doravante
denominada apenas Portaria), que estabelece, no inciso II de seu art. 5º, que
água potável é aquela que atende ao padrão de potabilidade por ela estabelecido
e que não oferece riscos à saúde. No inciso I do mesmo artigo, define água para
consumo humano como a água potável destinada à ingestão, preparação e produção
de alimentos e à higiene pessoal, independentemente da sua origem.
Portanto, para que determinada água seja considerada potável e
possa ser usada para consumo humano, é suficiente atender ao padrão de
potabilidade definido pela Portaria e não oferecer riscos à saúde, não
importando sua origem.
“Water should be judged by its quality, not by its history.” (Lukas van Vuuren) Tradução
livre: Água deve ser julgada por sua qualidade, não por sua história.
11. Os agrotóxicos e demais substâncias
orgânicas presentes no esgoto trarão danos à saúde dos consumidores.
A Portaria seleciona os tipos de substâncias orgânicas e de
agrotóxicos que representam risco à saúde, cuja concentração máxima permitida é
indicada em microgramas por litro.
A presença desses poluentes orgânicos é muito mais provável nas
águas superficiais e, se a água bruta contiver pesticidas organoclorados, nem
sempre as ETAS conseguirão colocá-la no padrão exigido pela Portaria (LIBÂNIO,
M.).
Por dispor de unidades que oxidam a matéria orgânica, inclusive de
oxidação avançada, mesmo que tais substâncias estivessem presentes em
concentrações elevadas, o que não ocorre no meio urbano, elas não chegariam ao
efluente final, pois seriam degradadas nas diversas etapas do tratamento
biológico.
12. Não há como impedir a presença de
enterovírus, de cistos de Giárdia e de oocistos de Cryptosporidium no esgoto
potabilizado.
Quanto aos vírus, sua resistência fora do hospedeiro é muito
baixa. A Portaria (art. 31º) sugere que, quando a concentração de Cryptosporidium na água da fonte
for maior ou igual a 3,0 oocistos/L, a turbidez do efluente da água que passar
por filtração rápida não ultrapasse 0,3 uT em pelo menos 95% das amostras e 1,0
uT de turbidez máxima nas demais amostras. Isso significa que uma boa filtração
é capaz de reter enterovírus, oocistos de Cryptosporidium e, também, cistos de
Giárdia, que são maiores que os oocistos de Cryptosporidium.
Como a filtração rápida é capaz de reter tais microrganismos, em
uma estação de reuso potável, a ultrafiltração, muito mais eficiente que a
filtração rápida, retém vírus entéricos e cistos e oocistos de protozoários.
Acrescente-se que, se houver microrganismos patogênicos que
ultrapassem a barreira da ultrafiltração, passarão radiação ultravioleta, onde
ficarão esterilizados. Sem poder se reproduzir, os vírus ficam inócuos.
13. O esgoto hospitalar será um foco
transmissor de doenças.
A legislação não permite que empreendimentos hospitalares,
laboratórios de análises, consultórios e demais serviços de atendimento à
saúde, inclusive veterinários, lancem seus resíduos na rede de águas usadas.
Por outro lado, os microrganismos presentes no efluente de hospitais não são
mais resistentes que a Escherichia coli. A Portaria considera que, sempre que
não se constatar a presença de tais coliformes fecais, a água está própria para
o consumo e, portanto, isenta de microrganismos patogênicos.
A presença de tais substâncias é muito mais provável em uma
estação de reuso potável que em uma ETA, onde não existe aeração prolongada nem
oxidação avançada.
14. O lodo gerado na estação de reuso
potável será causa de proliferação de doenças.
O lodo é gerado no reator aeróbio. Contudo, numa estação de reuso
potável, é usado o processo de aeração prolongada, que gera lodo já digerido, o
qual é encaminhado de volta ao reator, sendo o excesso enviado ao wetland para
lodo. Não há descarte de lodo para o meio ambiente.
15. O Brasil tem muita água. Por
enquanto, não precisa utilizar o esgoto tratado.
Essa objeção está sendo cada vez menos frequente após a crise
hídrica que assolou o sudeste do Brasil desde 2014 e vem atingindo a região
semiárida do país.
Além da ocorrência da crise hídrica, nossos mananciais estão
ficando cada vez mais poluídos. Até o aquífero Guarani, o terceiro maior
reservatório de água subterrânea do mundo, já mostra sinais de contaminação em
vários locais. A prevalecer o descaso com um tratamento eficiente para as águas
usadas, em breve teremos todos os nossos corpos de água contaminados.
Com o reuso potável, as águas usadas deixarão de ser um problema e
se tornarão matéria prima para obtenção de água potável.
16. Será melhor usar água de chuva que
esgoto tratado.
A questão da água de chuva ganhou destaque após a criação dos
piscinões em São Paulo e no Rio de Janeiro. De fato, a interceptação da
drenagem pluvial e sua posterior liberação sem lixo e sem areia traz benefício
para os corpos de água receptores.
Entretanto, não se pode fazer um abastecimento de água contando
unicamente com a água de chuva, pois para isso seriam necessários grandes
reservatórios. No semiárido brasileiro, em que o período de estiagem é muito
longo, utilizam-se açudes para acumulação de água de chuva, mas estes têm
dimensões gigantescas.
Destaque-se que, como a relação entre a coleta de águas usadas e a
água distribuída, em geral, não ultrapassa 80%, sempre que o reúso potável for
a única fonte de água potável, torna-se necessária uma vazão complementar, o
que pode ser feito com captação e armazenamento de água de chuva.
17. O esgoto pode ser foco de
esquistossomose.
Na transmissão da esquistossomose, as fezes do doente liberam os
ovos do esquistossomo, que se rompem ao atingir rios, lagos, lagoas, canais de
irrigação etc. Dos ovos, saem os miracídios, que vivem na água não mais que 24
horas. Após esse intervalo, os vermes somente sobreviverão se tiverem
encontrado o caramujo, no qual se desenvolverão até atingir o estágio de vida
em que são conhecidos como cercárias. Deixarão, então, o hospedeiro e
retornarão à água, à procura do hospedeiro definitivo, o homem ou animais
superiores. Contudo, se não encontrarem esse hospedeiro em 72 horas, não
sobreviverão.
Como o caramujo, que é o hospedeiro do esquistossomo, não
sobrevive nas águas usadas, não há risco de transmissão de esquistossomose por
reuso potável.
18. A cloração do esgoto, ainda que
tratado, poderá resultar na formação de trihalometanos, que são compostos
cancerígenos.
Para a formação de trihalometanos, há a necessidade de seus
precursores, os ácidos húmicos ou fúlvicos. Mesmo que ocorra a presença de tais
ácidos na entrada da estação, serão oxidados juntamente com as demais
substâncias orgânicas.
A cloração é feita após o líquido haver passado por tratamento por
radiação ultravioleta, o que restringe a formação de trihalometanos. Portanto,
a incidência de trihalometanos é muito maior nas ETAs convencionais que nas
estações de reuso potável. Prova disso é o limite máximo permitido na
concentração de trihalometanos na estação de Windhoek (Namíbia): 40 µg/L
(Tabela 8.1, Seção 8.2.6.1) ou 0,04 mg/L. A Portaria tolera concentração de
trihalometanos em até 0,1 mg/L.
19. Eventual falha no tratamento pode
fazer com que o público consuma água contaminada.
Uma falha no tratamento deve ser considerada tanto nas estações de
reuso potável como nas estações convencionais de tratamento de água. Nestas, o
problema maior é a mudança na qualidade da água bruta. No caso de uma estação
de reuso potável, mudanças na composição da vazão de entrada dificilmente
trazem maiores consequências. No entanto, é preciso estar atento a eventuais
falhas nas unidades de tratamento.
No Brasil, as estações de reuso potável devem ter gerador próprio
para fazer frente a eventuais quedas no fornecimento de energia. Contudo, nunca
se deve descartar a possibilidade de um aerador funcionar inadequadamente ou de
haver falha no motor da bomba de recirculação de lodo, o que pode, de certa
forma, afetar o produto final.
Se a falha for responsável pela presença de substâncias químicas
acima da concentração permitida, isso não acarretará maiores consequências,
pois as análises do efluente acusarão a falha para ser providenciada a
correção. O problema maior se dá com relação à contaminação de patógenos, pois
a frequência das análises de cloro residual prevista na Portaria é de duas
vezes por semana. No intervalo entre duas análises pode ocorrer contaminação,
com consequências para a saúde humana. Desse modo, recomenda-se que a análise
do cloro residual ocorra com intervalo nunca superior ao tempo de retenção nos
reservatórios e, pelo menos, a cada 12 horas.
Havendo concentração nula de cloro residual no efluente, a remessa
da água para a rede de distribuição deve ser imediatamente interrompida e
interrompida também a entrada da vazão complementar. O restante das operações
deve continuar funcionando da forma mais rotineira possível, descartando-se o efluente
para o corpo de água receptor. Essa situação deve permanecer até que a falha
seja corrigida e o efluente volte a conter cloro residual.
Esse cuidado deveria ser tomado também nas estações de tratamento
de água convencionais, que são muito mais sensíveis a mudanças na qualidade da
água bruta.
20. A recirculação permanente das águas
usadas fará com que aumente progressivamente a concentração de sais que não se
precipitam.
É preciso lembrar que nem toda a água fornecida à população
retorna como água usada: uma parte é usada em lavagem de carros e de calçadas,
na rega de jardins ou em outra atividade e não é conduzida à rede de coleta,
sendo compensada pela água complementar, com menor quantidade de sais. Além
disso, parte dos sais é retida na estação, principalmente no carvão ativado.
Desse modo, sua concentração tenderá a um valor de equilíbrio.
Fato semelhante se dá com relação à fluoretação da água. A água
retorna à estação de reuso potável contendo sais de flúor, reduzindo-se a
quantidade necessária à fluoretação da água.
21. Por que ainda não existe uma única
estação de reuso potável em toda América Latina?
Ainda não existe reuso potável na América Latina, mas existem
estações de reuso potável na América do Norte, na Europa, na Ásia, na África e
na Oceania.
Não existir nenhuma estação de reuso potável ao sul do Rio Grande,
na fronteira entre o México e os Estados Unidos, é um incentivo para nós. Onde
será construída a primeira estação de reuso potável entre o México e a
Patagônia? Será aqui no Brasil?
Há outros questionamentos de menor importância que não foram
mencionados. O importante é observar-se que está comprovado ser o reuso potável
uma forma segura e eficiente de produção de água potável, como consta no item
7.1.2 do manual:
# Potable reuse is a safe, reliable and sustainable source of drinking-water. (Tradução livre: O reuso potável é seguro, confiável e uma fonte sustentável de água potável)
# Using recycled water is good for the environment. (Tradução livre: O uso de água reciclada é bom para o meio ambiente.)
# Potable reuse is a valuable and drought-proof water supply source capable of strengthening water supply resilience, especially against weather extremities like dry spells and droughts. (Tradução livre: O reuso potável é uma valiosa fonte de água potável à prova de estiagem, capaz de fortalecer a resiliência do suprimento de água especialmente contra as extremidades climáticas como períodos secos e estiagens).
# Potable reuse is a safe, reliable and sustainable source of drinking-water. (Tradução livre: O reuso potável é seguro, confiável e uma fonte sustentável de água potável)
# Using recycled water is good for the environment. (Tradução livre: O uso de água reciclada é bom para o meio ambiente.)
# Potable reuse is a valuable and drought-proof water supply source capable of strengthening water supply resilience, especially against weather extremities like dry spells and droughts. (Tradução livre: O reuso potável é uma valiosa fonte de água potável à prova de estiagem, capaz de fortalecer a resiliência do suprimento de água especialmente contra as extremidades climáticas como períodos secos e estiagens).
A publicação deste manual pela Organização Mundial de Saúde e sua
tradução livre para a língua portuguesa será um importante passo para a
aceitação do reuso potável no Brasil, contribuindo para o fim de problemas de
escassez hídrica em um país, que é, entre todos, o mais aquinhoado com água
doce.
* Para acessar à tradução do manual, no formato
PDF, clique no link: 180122 Manual de produção de água
potável segura por reuso do esgoto
(ecodebate)
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