A partir do aumento das
queimadas na Floresta Amazônica, observamos o surgimento de narrativas que não
contribuem em nada para a solução do problema. Uma destas narrativas é a
necessidade de internacionalização da floresta ante uma suposta ineficiência de
gestão do governo brasileiro e a importância que a floresta tem para o meio ambiente.
Nas palavras do filósofo Karel Kosik, a realidade nunca se apresenta na sua
totalidade, ou seja, os discursos que são feitos de um lado ou de outro
apresentam um caráter pseudoconcreto que escondem os reais interesses de cada
ator.
No entanto, uma coisa se pode
afirmar quanto ao discurso da internacionalização da Amazônia: ela já foi
internacionalizada!
Na década de 1970, os países
que compõem a bacia do rio Amazonas celebraram o Tratado de Cooperação
Amazônica (assinado em Brasília, em 03/07/1978, pela Bolívia, Brasil, Colômbia,
Equador, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela), que para o professor Christian
Guy Caubet, da Universidade Federal de Santa Catarina, trata-se de um caso de
internacionalização regional.
Antevendo o aumento das
pressões que a comunidade internacional faria sobre a região em razão da
crescente conscientização sobre a preservação do meio ambiente iniciada na
Conferência das Nações Unidas sobre o Homem e o Meio Ambiente (Estocolmo, 1972)
e as pressões das empresas transnacionais sobre a exploração dos recursos
naturais (p.ex., a Fordlândia), os países decidiram firmar o tratado, que entre
as razões, descritas no decreto nº 85.050, de 18/08/1980:
CÔNSCIAS de que tanto o
desenvolvimento socioeconômico como a preservação do meio ambiente são
responsabilidades inerentes à soberania de cada Estado e que a cooperação entre
as Partes Contratantes servirá para facilitar o cumprimento destas
responsabilidades, continuando e ampliando os esforços conjuntos que vêm
realizando em matéria de conservação ecológica da Amazônia.
Como se nota da linguagem do
tratado, a preocupação com a manutenção da soberania de cada país sobre os seus
recursos naturais, bem como a exploração dos mesmos deve obedecer este
princípio (o que não era novidade à época em razão da Resolução 1803 (XVII) da
Assembleia Geral das Nações Unidas, de 14/12/1962, que tem como título
“Soberania permanente sobre os recursos naturais”).
Pois bem, não satisfeitos com
a assinatura do tratado e ainda preocupados com as pressões internacionais, os
países decidiram em 1998 criar a Organização do Tratado de Cooperação Amazônica
(Protocolo de Emenda ao Tratado de Cooperação Amazônica), uma organização
internacional, dotada de personalidade jurídica internacional, que dentre os seus
objetivos estão:
– Discutir, criar e
implementar mecanismos, de forma conjunta, voltados para a preservação da
Floresta Amazônica (combate ao desmatamento ilegal e gestão dos recursos
hídricos e de queimadas, p.ex.);
– Buscar formas de utilização
dos recursos naturais da floresta de maneira sustentável e racional;
– Possibilitar o intercâmbio
de informações científicas sobre os múltiplos aspectos da floresta;
– Criação de sistemas de
transportes, comunicação e monitoramento na região;
– Preservação do patrimônio
cultural, principalmente dos povos indígenas da região.
A personalidade jurídica
internacional da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica implica na sua
autonomia, nos limites do seu estatuto, de engajar diretamente com outros
países e organizações internacionais que possam contribuir para a gestão da
região e, no caso específico, observado atualmente, no combate às queimadas na
região.
O que nos causa perplexidade é a falta de
protagonismo da Organização, que foi criada justamente para prover a força
institucional necessária para a gestão da Amazônia, ante aos outros atores que
emergem neste debate (França, G7, ministério do Meio Ambiente, ministério da
Agricultura, etc.). Desse modo, se a Amazônia já foi internacionalizada
regionalmente, devemos aproveitar esta força institucional para impedir que
discursos sobre a internacionalização completa da região prosperem e,
principalmente, que sirva como uma mediadora dos interesses conflitantes que as
queimadas despertam (ressalte-se, que sempre estiveram presentes na região) e
atue de forma efetiva na gestão econômica e socioambiental da Amazônia.
Vista aérea de uma grande
área em chamas na cidade de Candeias do Jamari, no estado de Rondônia, em
23/08/2019.
Uma Amazônia saudável e produtiva
é a base da soberania do Brasil. (ecodebate)
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