terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

Crescimento populacional e choque malthusiano no Iêmen

“A população mundial precisa ser estabilizada e, idealmente, reduzida gradualmente”.
Alerta dos cientistas mundiais sobre a emergência climática (05/11/2019).
O Iêmen foi o primeiro destino dos emigrantes que saíram da África, há cerca de 80 mil anos. A “diáspora” africana atravessou o Estreito de Bab-al-Mandeb, que separa o sul da Península Arábica, de Djibuti, no nordeste da África. Naquela época o Iêmen era uma área fértil e rica em serviços ecossistêmicos. Mas tudo mudou ao longo dos séculos.
A população do Iêmen era de 4,7 milhões de habitantes em 1950 e passou para 29,8 milhões em 2020. O número de habitantes do Iêmen mais do que sextuplicou em 70 anos, um dos maiores crescimentos demográficos do mundo. As projeções da ONU indicam que a população do Iêmen pode chegar a 48,1 milhões de habitantes em 2050, decuplicando em um século.
A densidade demográfica do Iêmen que estava em 8,3 habitantes por km2 em 1950, chegou a 57 hab/km2 em 2020 e deve atingir 91 hab/km2 em 2050 (lembrando que a maior parte do território atual do país é constituída por desertos). Para efeito de comparação, a densidade demográfica da Rússia era de 6,3 hab/km2 em 1950, 8,9 hab/km2 em 2020 e deve diminuir para 8,3 hab/km2 em 2050.
Em 2003, o demógrafo Paul Demeny publicou um artigo (ver figura acima), na prestigiosa revista Population and Development Review, mostrando os opostos da dinâmica demográfica do Iêmen (área 528 mil km²) e da Rússia (área de 17,1 milhões de km²). A Rússia, com a maior área territorial do mundo, terá uma população estabilizada entre 1950 e 2050, enquanto o Iêmen – um país pequeno e pobre – terá a população multiplicada por 10 em um século.
No referido artigo, Demeny aborda as diferenças entre a baixa taxa de fecundidade da Rússia (e dos países europeus) e a alta taxa de fecundidade do Iêmen e de outros países em desenvolvimento, principalmente no Oriente Médio e na África. Contudo, a redução do número médio dos filhos, mesmo com diferenciais significativos, se generalizou.
A taxa de fecundidade total (TFT) do Iêmen que estava acima de 8 filhos por mulher na segunda metade do século XX, caiu para 6 filhos na virada do milênio e chegou pouco abaixo de 4 filhos no quinquênio 2015-20. Portanto, o Iêmen está passando por uma transição tardia da fecundidade, mas que deve atingir uma TFT abaixo do nível de reposição na segunda metade do atual século.
Esta queda da fecundidade é fundamental para a estabilização do crescimento demográfico no Iêmen, pois se o ritmo de crescimento da população não for reduzido pela redução do tamanho das famílias, poderá ser reduzida pelo aumento das taxas de mortalidade, configurando aquilo que se chama de “choque malthusiano”.
Para Thomas Malthus (1766-1834), um crescimento ilimitado da população poderia ser revertido pelo “freio positivo”, caracterizado pela tríade: miséria, epidemias e guerras. Assim, a expressão “choque malthusiano” é utilizada para descrever a situação em que o crescimento populacional é interrompido, não pela queda da fecundidade, mas pelo aumento das taxas de mortalidade.
O alto crescimento populacional e a degradação ambiental do país contribuiu para a atual crise do Iêmen. Segundo dados do FMI, a renda per capita iemenita em 1990 era de US$ 3,3 mil (em poder de paridade de compra – ppp), subiu para US$ 4,3 mil em 2010 e iniciou uma tendência de queda na atual década, atingindo US$ 2,25 mil em 2020.
Ou seja, o Iêmen enfrenta a pior guerra de sua história, a maior queda da renda per capita e a maior crise de fome dos tempos modernos. O país importa mais de 85% de toda a sua necessidade alimentar e de remédios. A Secretaria geral de assuntos humanitários da ONU, alertou que a menos que voltem a abrir as fronteiras para os envios de ajuda, o Iêmen viverá a maior fome que o mundo já viu em muitas décadas, com milhões de vítimas.
O Iêmen sofre ao continuar sendo um joguete na disputa geoestratégica entre a Arábia Saudita e o Irã. São milhões de vidas que precisam de esperança em um futuro melhor e problemas demográficas, econômicos e sociais que precisam ser resolvidos.
O bombardeiro que matou o general iraniano Qasem Soleimani e o agravamento da situação política e militar entre os EUA e o Irã deve dificultar qualquer solução da questão iemenita. A Arábia Saudita deve buscar fortalecer suas trincheiras contra o Irã e a situação do Oriente Médio volta a ficar explosiva.
O fato é que as duas maiores teocracias do Oriente Médio vivem um momento de muitas críticas internas e externas. O príncipe herdeiro da Arábia Saudita, Mohammed bin Salman, perdeu legitimidade especialmente depois de ter ordenado o assassinato do jornalista Jamal Khashoggi, crítico do governo, no consulado do país em Istambul, na Turquia. No outro lado, manifestantes iranianos pediram a renúncia do líder supremo do país, aiatolá Ali Khamenei, no dia 11 de janeiro, depois que o governo do Irã afirmou que suas Forças Armadas derrubaram por engano um avião ucraniano, matando todas as 176 pessoas a bordo. É muito significativo que os protestos tenham mirado o poder central da teocracia iraniana: “Comandante-em-chefe (Khamenei) renuncie, renuncie”.
Neste contexto regional, o Iêmen está passando por um choque de realidade e percebendo que é impossível manter um crescimento populacional ilimitado em um país com recursos naturais limitados e em uma região conflagrada por guerras regionais e por regimes autoritários que não estão preocupados com o meio ambiente.
A renda per capita está caindo e a qualidade de vida e de condições ecológicas estão se degradando. O Iêmen tinha, em 1961, uma pegada ecológica per capita de 0,95 hectares globais (gha) e uma biocapacidade per capita de 2,26 gha, tendo, portanto, superávit ambiental até o início da década de 1990. Porém, mesmo com a queda da pegada ecológica per capita para apenas 0,67 gha em 2016 (a média mundial é de 2,75 gha), a biocapacidade caiu para pífios 0,42 gha. O motivo desta tremenda queda da biocapacidade pode ser explicado pelo crescimento da população.
Portanto, o Iêmen precisa de ajuda internacional para enfrentar a crise de fome e de baixa qualidade de vida, mas também precisa de ajuda para acelerar a queda das taxas de fecundidade e reverter o crescimento demográfico para decrescimento.
Em novembro de 2019, mais de 11 mil cientistas de todo o mundo alertam a humanidade sobre a ameaça de uma iminente catástrofe ambiental e declararam que o Planeta está enfrentando uma emergência climática. O manifesto diz que os cientistas têm uma obrigação moral de alertar claramente a humanidade sobre uma possível ameaça catastrófica que pode provocar “sofrimento humano incalculável”.
O documento “World Scientists’ Warning of a Climate Emergency” (BioScience, 05/11/2019) afirma que: “O crescimento econômico e populacional está entre os mais importantes fatores do aumento das emissões de CO2 em decorrência da combustão de combustíveis fósseis”. Em consequência, diz o seguinte sobre a questão demográfica: “Ainda crescendo em torno de 80 milhões pessoas por ano, ou mais de 200.000 por dia, a população mundial precisa ser estabilizada – e, idealmente, reduzida gradualmente – dentro de uma estrutura que garante a integridade social”.
O caso do Iêmen só reforça o alerta dos 11 mil cientistas. Há diversos outros países, como a Síria, a República Democrática do Congo, a Venezuela, etc., que estão enfrentando situações parecidas de perda de qualidade de vida humana e ambiental.
Resolver o problema demográfico não é suficiente, mas cada vez se torna uma condição necessária para reverter o cenário de colapso. (ecodebate)

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