A estreita relação entre mudanças climáticas e o
aumento de eventos climáticos extremos.
Maior frequência de eventos climáticos severos, como
chuvas intensas e inundações, sinalizam a necessidade de rever modelos de
desenvolvimento.
Fortes chuvas no sudeste
brasileiro já vitimaram fatalmente mais de 70 pessoas em 2020.
“Tudo
está relacionado”: enchentes, incêndios, ondas de calor, recordes de
temperatura e o aumento de eventos extremos. Assim reflete a professora
Ana Maria Heuminski de Ávila, do Centro de Pesquisas Meteorológicas e
Climáticas Aplicadas à Agricultura (Cepagri) da Unicamp. Para a pesquisadora,
este verão é didático ao demonstrar a necessidade de atentar para a
possibilidade de que eventos intensos, como as fortes chuvas e enchentes que
vêm ocorrendo no estado de São Paulo, se tornem cada vez mais frequentes e,
assim, venham a fazer parte de uma nova normalidade climática.
“As
mudanças climáticas são nada mais do que esses eventos que temos acompanhado se
tornando mais frequentes e dentro de uma condição de normalidade. Temos
percebido que nos últimos anos, sobretudo depois dos anos 2000, há uma
frequência maior destes eventos intensos, que são aqueles que se distanciam da
média daquilo que é a nossa referência”, observa Ana. Há um aquecimento da
atmosfera e, com isso, um maior potencial para retenção de umidade, o que
faz com que as nuvens se tornem mais intensas e a precipitação seja mais forte.
“É como uma esponja com o potencial de reter água e quando essa água cai, cai
de uma vez. Aí temos as chuvas mais intensas e estiagens mais prolongadas”,
aponta.
Os
eventos extremos sempre existiram, mas o que a comunidade científica vem
evidenciando é que a maior regularidade tem próxima relação com
a ação humana. Nos últimos meses, as recentes inundações nos estados de Minas
Gerais, Espírito Santo, Rio de Janeiro e São Paulo vitimaram pelo menos 70
pessoas e deixaram dezenas de milhares de desalojados ou desabrigados.
Moçambique, Reino Unido, Estados Unidos, Indonésia e Índia enfrentaram
eventos similares, demonstrando também que há uma amplitude global dos
fenômenos. Já na Austrália, uma temporada de incêndios devastadora foi
seguida também de graves enchentes. As temperaturas, em nível mundial,
bateram recordes em 2019, inclusive na Antártica, o que levou
o secretário da Organização das Nações Unidas, em pronunciamento recente, a afirmar: “nosso planeta está queimando”.
A
severidade dos acontecimentos coloca um alerta para as consequências
relacionadas à ação humana e a seus desdobramentos no tocante às mudanças
climáticas, ao aquecimento global e aos desastres. A professora Lúcia
da Costa Ferreira, coordenadora do Doutorado em Ambiente e Sociedade do Núcleo
de Estudos e Pesquisas Ambientais (Nepam/IFCH) da Unicamp, explica que as
mudanças climáticas não são um fenômeno novo. Elas sempre ocorreram, com as
eras geológicas mudando o clima do planeta Terra ao longo do tempo. No entanto,
a era Antropoceno, em que vivemos atualmente, designa um período em que a ação
humana se sobrepõe às forças da natureza. “O que é importante quando se fala em
mudanças climáticas hoje é que há praticamente um consenso de que essas
alterações estão sendo provocadas pela ação humana, e não mais por fatores
geológicos, cósmicos, etc. A ação do homem tem provocado uma mudança muito
rápida na temperatura do planeta que pode provocar alterações que são
importantes para o homem e para todas as outras espécies”, afirma.
Inimigos do clima
Inúmeras
pesquisas, pontua Lúcia, demonstram que as ações do homem estão provocando uma
alteração brusca e profunda no clima do planeta, especialmente após a
Revolução Industrial, iniciada no século XVIII, que elevou a emissão de
gases de efeito estufa no planeta. “Os principais vetores são o consumo
desenfreado de materiais fósseis. A gente usa o petróleo em muitas coisas, mas
os combustíveis fósseis têm sido os principais responsáveis pela alteração
climática e é por isso que tem muita gente que nega isso, porque há toda uma
cadeia produtiva que se produziu em torno do petróleo e que seria afetada se em
algum momento houvesse uma alteração dos hábitos e comportamentos”, analisa. A
professora também cita o uso de carvão para gerar calor, nos países frios, como
outro elemento de impacto negativo. “Tudo isso entra na lista dos inimigos do
clima”, observa.
O
negacionismo de setores da sociedade e de governos, como o de Donald Trump nos
Estados Unidos, e o de Jair Bolsonaro, no Brasil, também é avaliado como
prejudicial pela pesquisadora. “O governo brasileiro atual continua nesta
política de negação das mudanças climáticas, investindo fortemente em uma
política desenvolvimentista predatória. As queimadas que estão acontecendo na
Amazônia com o aval do governo federal e os desgastes da legislação
ambiental são péssimos para as mudanças climáticas. O Brasil tinha uma posição
de liderança no mundo e era muito respeitado por diversas conquistas em prol do
controle das mudanças climáticas e hoje está na franja junto com países que são
considerados inimigos do controle das mudanças climáticas”, destaca Lúcia.
As
queimadas na Amazônia de 2019, lembradas pela docente, destruíram 72 mil km² da
floresta, segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE). Um
em cada três focos de incêndio ocorreram em zonas desmatadas, conforme
levantamento da WWF-Brasil, sugerindo que a prática está em parte
relacionada ao uso agrícola da terra. Os impactos da perda da floresta, além de
afetarem diretamente o bioma da região, interferem no clima de toda a América
do Sul, inclusive no regime de chuvas, como explica a professora Ana. “A
conservação da floresta tem um papel nas chuvas. A nossa climatologia está
relacionada com a floresta. Em São Paulo, por exemplo, o clima está totalmente
ligado com a floresta amazônica”.
A
pesquisadora lembra que os estudos pioneiros sobre a Amazônia, do cientista
Carlos Nobre, alertam para a possibilidade do bioma tornar-se uma savana caso o
desmatamento ultrapasse 25% da área. Hoje, estima-se que 20% já foram
desmatados. “Isso tem uma implicação para o clima e traz um efeito dominó. O
norte é uma região úmida com a floresta. Se tira a floresta, reduz a chuva para
nós no verão. E para onde vai essa chuva? Vai se distribuir durante o ano, vai
ser mais escassa? Todas essas questões vão se intercalando”. Estudos sobre a
região de Campinas, dos quais ela participou, por exemplo, mostram que a
primavera, até os anos 2000, costumava ter chuvas. Hoje, é uma estação
seca e já com ondas de calor. Já no inverno, a ocorrência de geada praticamente
não acontece mais.
Ana aponta
que o modo como agricultura foi expandida, sobretudo a partir da década de
1970, também precisa ser revisto, pois tem uma relação com as mudanças
climáticas e incide sobre a destruição das matas ciliares. A manutenção dos
rios e das nascentes, dessa forma, é prejudicada e, consequentemente, o ciclo
hidrológico torna-se incompleto. “Tudo isso está ligado com a questão
climática”, avalia, inclusive o uso de agroquímicos que poluem as águas.
Além
disso, segundo a professora, as mudanças climáticas prejudicam a própria
produção dos agricultores, com perdas de safras. “Se determinados eventos
meteorológicos ocorrem numa época inesperada, causam um transtorno econômico
muito grande”, frisa. Um estudo realizado pelo Cepagri mostrou, ainda, que o
zoneamento dos cultivos está se alterando. “O resultado da pesquisa foi
assustador. Parte das culturas não vão mais produzir nas áreas onde elas
produziam com potencial”, afirma.
Outro
elemento importante no agravamento dos eventos extremos, salientado pelas
professoras Ana e Lúcia, é a urbanização desenfreada e mal estruturada.
“Quantos quilômetros a gente anda em uma cidade totalmente pavimentada, sem
estrutura de parques adequados? Há uma forma desordenada com que as pessoas
foram se organizando”, diz Ana, citando o exemplo de São Paulo.
Urbanização mal projetada incide
sobre o agravamento das inundações.
Lúcia
indica que um dos principais problemas do projeto de urbanização em São Paulo é
o “empacotamento de rios”. “A cidade São Paulo é uma cidade construída numa
região riquíssima de rios. É um absurdo que a cidade tenha empacotado esses
rios, colocado tudo em baixo da terra com um sistema de canalização
de escoamento da chuva através de canalização das águas pluviais. Esses
encanamentos têm uma potência e aguentam um tanto de chuva. Mais do que isso,
não só eles são destruídos como a água vai extravasar”. Sistemas “fáceis e
amigáveis”, avalia, como as cidades permeáveis à chuva, precisam ser
desenvolvidos para mitigar os efeitos dos eventos extremos.
Consequências amplas
e ações urgentes
As
dimensões das consequências das mudanças climáticas ocorrem em diversos
âmbitos, interferindo na vida de todas as espécies, alterando as condições do
ciclo de vida, impactando sobre a produção de alimentos, aumentando os níveis
do oceano e trazendo maiores riscos de inundações e de períodos de seca.
A crise hídrica de São Paulo, em 2014, e os recentes episódios de
enchentes são ilustrativos deste desequilíbrio. Assim como os incêndios e
os alagamentos na Austrália.
Sistema Cantareira chegou a operar
com 8% da capacidade em 2014; hoje, mesmo com as fortes chuvas em São Paulo,
está com 58% de volume operacional.
Até
pouco tempo, o Brasil não possuía a característica de ter temporadas de
fenômenos extremos, como lembra Ana. Porém, eles estão se tornando parte da
realidade no país. Por isso, ela avalia que é preciso investir em sistemas de
monitoramento, integrados com a Defesa Civil e com sistemas de comunicação,
para que se possa atuar de forma efetiva quando um desastre ocorre. O estado de
Santa Catarina, observa, é o mais bem preparado em termos de Brasil, uma vez
que a ocorrência do furacão Catarina, em 2004, alavancou a necessidade de um
sistema mais sofisticado.
A
professora Lúcia também afirma que há tecnologia e ciência para este fim. Além
disso, há recursos, que muitas vezes ficam parados, como se observou no caso da
cidade de São Paulo. “A gente sabe que há vontade dos nossos cientistas, há
capacidade científica e tecnológica. Mas além do dinheiro, além das
cooperações, precisa a vontade política em todas as escalas. Precisamos ter
gente bem treinada, laboratórios, lugares para que essas pessoas se reúnam e
tenham um sistema de ação integrado entre múltiplos atores e em múltiplos
níveis, para funcionar no momento de um evento extremo”.
Mas
para que estes eventos não passem a ser, de fato, a nova normalidade, não basta
operar somente quando ocorrem. É preciso rever modelos de desenvolvimento rumo
à sustentabilidade. “É uma pena que o Brasil esteja agora do ponto de vista
governamental na contramão de um sistema de produção industrial, agrícola e de
mercadoria que seja o oposto dessa busca pela transição para a
sustentabilidade”, lamenta Lúcia.
Impacto
da aquecimento pela ação humana é generalizado: no oceano, nas reduções de neve
e gelo, no aumento dos níveis do mar e em diversos eventos climáticos extremos.
No
entanto, ela destaca que muito vem sendo feito por grupos de pessoas agindo em
torno de alternativas, com pequenas experiências de desenvolvimento social e
econômico mais integrados à sustentabilidade e, assim, em sintonia com
as possibilidades de se ter avanços no futuro. No âmbito do consumo,
Lúcia aponta que a compra de produtos que não causem degradação ambiental
e desigualdade social é uma forma de pressionar o mercado a se modificar.
“Nós precisamos estudar inovação tecnológica e de comportamentos que sejam mais
compatíveis com a área ambiental e com a sustentabilidade”, conclui.
(ecodebate)
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