Commodities agrícolas foram as grandes responsáveis
por incêndios na Amazônia, segundo estudo.
Pesquisa aponta frigoríficos e produtores de soja
com maior risco de serem associados a queimadas.
Commodities agrícolas foram as grandes responsáveis
por incêndios na Amazônia, segundo estudo que cruza dados da NASA com cadeias
de suprimentos das empresas.
Em
agosto do ano passado, imagens dos incêndios na Amazônia atraíram a atenção do
mundo todo. Chefes de governo, organizações multilaterais, ambientalistas e
celebridades manifestaram preocupação com o futuro da maior floresta tropical
do planeta. “A Amazônia precisa ser protegida”, disse António Guterres,
secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU). “Nossa guerra contra a
natureza precisa acabar”, tuitou a ativista Greta Thunberg.
O
tamanho real do desastre ambiental só foi conhecido em janeiro, quando o
Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) apresentou um balanço final
dos incêndios que atingiram a floresta. Em 12 meses, ocorreram 89 mil focos de
incêndio na região, um aumento de 30% em relação a 2018. Um crescimento
preocupante, apesar de o número ter ficado abaixo da série histórica (109 mil).
No
auge da crise, o presidente Jair Bolsonaro lançou suspeita sobre ONGs que atuam
na região. E o ministro Ricardo Salles (Meio Ambiente) culpou a temporada mais
seca, quando, na verdade, choveu mais do que no ano anterior. Pesquisadores do
bioma atribuem os incêndios, porém, a outros fatores.
A
especulação fundiária é hoje um dos grandes vilões da floresta amazônica.
Trata-se de um negócio de alta rentabilidade que envolve a invasão de terras
públicas, a derrubada e retirada das árvores mais valiosas e depois, por meio
de correntes presas a tratores, a derrubada da vegetação mais baixa. Passadas
algumas semanas, período necessário para a secagem do material destruído, basta
pôr fogo ao que antes era uma floresta. É hora então de espalhar as sementes
para criar o pasto, à espera do comprador.
“É
dinheiro fácil. Invasor de terra pública gasta R$ 1 mil para derrubar e colocar
fogo num hectare consegue vender o mesmo por até R$ 2,7 mil”, afirma Raoni
Rajão, pesquisador da Amazônia e professor do Departamento de Engenharia de
Produção da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Queimadas costumam ser
feitas no período amazônico mais seco, entre julho e outubro.
A
floresta não queima apenas por conta da grilagem de terras. Para ampliar o
pasto, muitos produtores põem fogo em áreas contíguas às suas propriedades ou
destroem a mata existente dentro de suas próprias fazendas. O Código Florestal
estabelece que, nos imóveis localizados na Amazônia Legal, 80% da mata nativa
deve ser preservada. Há ainda as queimadas feitas por agricultores, indígenas e
povos tradicionais com o propósito de renovar o pasto ou a área de cultivo, uma
prática que tem impacto bem menor sobre o bioma, mas que pode sair do controle
e provocar destruição em grandes áreas.
Levantamento
realizado pelo MapBiomas — iniciativa que reúne universidades, organizações
sociais e empresas de tecnologia – revela a dimensão das práticas criminosas
citadas acima. De acordo com o estudo, realizado a partir do cruzamento de
imagens de satélites com o Cadastro Ambiental Rural (CAR) e outros bancos de
dados oficiais, 99% do desmatamento realizado no Brasil no ano passado foi
ilegal. Dos 12 mil km2 de vegetação nativa destruída, a maior parte
está localizada no Cerrado e na Amazônia.
Pecuária e soja
Estudo
realizado pela Chain Reaction Research (CRR) [http://chainreactionresearch.com/wp-content/uploads/2020/05/Deforestation-driven-fires-in-Brazil-Indonesia.pdf], uma coalizão de
consultorias ambientais europeias e americanas, ajuda a entender um pouco mais
os interesses por trás dos incêndios ocorridos no ano passado na Amazônia. Os
pesquisadores cruzaram imagens dos incêndios, feitas por satélites da NASA, com
a localização dos maiores frigoríficos da região, como JBS e Marfrig, e grandes
silos de soja, controlados por gigantes como Bunge e Cargill.
O
sistema de monitoramento da agência espacial americana detectou 417 mil focos
de fogo nas “zonas potenciais de compra” da JBS e da Marfrig de julho a outubro
do ano passado, um número que representa 42% de todos os incêndios ocorridos no
Brasil no período – foram 981 mil, segundo a NASA. Os focos de incêndios no
entorno das duas empresas representam quase a metade (47%) do total detectado
(885 mil) nas proximidades dos dez maiores frigoríficos da região.
As
zonas potenciais de compra dos matadouros foram estabelecidas pelo Imazon
(Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia) em 2017, a partir de
entrevistas feitas com 157 frigoríficos da Amazônia Legal. Entre outras
informações, essas empresas revelaram a distância máxima que percorrem para
comprar os animais para abate. Os frigoríficos maiores uma distância máxima de
360 km a partir de suas instalações. Os menores, que têm certificados para
atuar apenas dentro do Estado, compram gado a uma distância máxima de 153 km.
No
caso da soja, a Chain Reaction Research estabeleceu um raio de 25 km a partir
dos silos das maiores empresas do setor como área de sua cadeia de suprimentos.
O levantamento indicou que as queimadas ocorridas no entorno da Bunge e da
Cargill (39,9 mil) superaram a soma dos focos de incêndio registrados nas
proximidades dos outros oito maiores traders do setor.
Levantamento
não faz nenhuma acusação a esses conglomerados. “O objetivo foi mostrar a
ocorrência de enorme quantidade de incêndios nas proximidades dessas empresas,
o que não implica o envolvimento direto delas nessas práticas. Mas faz com que
tenham de resolver as suspeitas que recaem sobre sua cadeia de suprimentos”,
diz Marco Túlio Garcia, pesquisador da Aidenviroment e um dos autores do
estudo, que analisou também os incêndios na Indonésia, onde as suspeitas recaem
sobre a produção de óleo de palma.
“O
desmatamento na Amazônia, causa principal dos incêndios, traz riscos a essas
empresas. Nos últimos anos, os grandes investidores internacionais colocaram
essas questões no centro de sua pauta. Elas não estão mais restritas a debates
entre ambientalistas”, completa Tim Steinweg, coordenador de pesquisa da Chain
Reaction Research. Um exemplo dessa preocupação do mercado global foi dado em
dezembro último pela Nestlé, quando suspendeu suas compras de soja da Cargill,
por suspeita de que o produto tenha origem em áreas desmatadas da Amazônia.
Reportagem
recente do jornal The Guardian revelou que bancos e outras instituições
financeiras britânicas investiram nos últimos anos mais de US 2 bilhões nas
principais empresas brasileiras de carne que atuam na Amazônia. Por conta do
desmatamento, estudam reconsiderar seu apoio se essas companhias não mostrarem
progressos no rastreamento de seus fornecedores. Gigantes do setor de alimentos
manifestam a mesma preocupação. Em dezembro, a Nestlé suspendeu suas compras de
soja da Cargill, por suspeita de que o produto tenha origem em áreas desmatadas
da floresta.
Estudiosos
avaliam que o setor de pecuária traz hoje mais riscos para a Amazônia do que a
indústria da soja, que hoje ameaça mais o Cerrado. A imagem dos produtores do
grão melhorou a partir do pacto, batizado de “moratória da soja”, firmado em
2006 com entidades ambientalistas, pelo qual se comprometeram a não comprar a
commodity de áreas desmatadas no bioma. O acordo contou depois com o apoio do
governo federal.
O
setor pecuário carrega irregularidades dos mais variados tipos. Entre elas,
animais que nascem em áreas desmatadas, muitas vezes embargadas pelo IBAMA, e
que são vendidos para pequenos e médios produtores. Depois da engorda, são
comprados legalmente pelos grandes frigoríficos. Os sistemas de controle não
conseguem pegar o vício de origem. “É uma cadeia muito complexa. Não existe um
sistema que permita rastrear cada animal desde o início, e os frigoríficos não
parecem interessados em implantar um monitoramento desse tipo”, lamenta
Ritaumaria Pereira, diretora executiva do Imazon. “Há um ditado na região que
traduz essa triste realidade. Boi não morre de velho na Amazônia. Sempre vai
ter alguém para comprá-lo, independentemente de onde venha”, afirma a
engenheira agrônoma.
Menos floresta, menos chuva
Para
muitos especialistas, falta visão estratégica ao governo brasileiro e aos
produtores rurais em relação à Amazônia, o principal ativo ambiental do país.
Paulo Moutinho, pesquisador sênior do IPAM (Instituto de Pesquisa Ambiental da
Amazônia), lembra que a floresta funciona como uma espécie de bomba de vapor
d’água que, transportado por meio dos chamados rios voadores, irriga o
Centro-Oeste e o Centro-Sul do Brasil. A destruição coloca em risco esse
sistema de irrigação. “Ao desmatar, é como se fizéssemos um furo nesse regador,
que garante o sucesso de boa parte da produção agrícola brasileira.” De acordo
com estudo da Agência Nacional de Águas (ANA) e do IBGE, 92,5% da água
consumida pela agricultura brasileira vêm das chuvas. Apenas 7,5% são de
sistemas de irrigação.
Os
riscos à floresta amazônica são reais, de acordo os cientistas. O bioma já
perdeu cerca de 17% (dados de 2017) de sua vegetação nativa. Se esse percentual
superar 20%/25%, corre grande risco de entrar em um processo de savanização,
segundo estudo publicado há dois anos pelo pesquisador brasileiro Carlos Nobre
e pelo americano Thomas Lovejoy. Na década anterior, os mesmos pesquisadores
falavam que o tipping point (ponto sem volta) aconteceria quando fossem
atingidos os 40% de destruição. Refizeram os cálculos em razão da aliança
mortal entre desmatamento, incêndios e mudança climática.
Especialistas
ouvidos pela reportagem acreditam que não é preciso destruir nenhum hectare a
mais para aumentar a produção agropecuária. Bastariam aproveitar os 12 milhões
de hectares que foram desmatados e abandonados na Amazônia, áreas que poderiam
ser recuperadas. “Você tem muitas áreas que estão abertas e, com incentivo
adequado, poderiam ser exploradas”, afirma Paulo Moutinho, do IPAM. Ritaumaria
Pereira, do Imazon, concorda: “Além da regeneração dessas áreas, precisamos de
políticas públicas para incentivar o aumento da produtividade da pecuária, que
hoje é muito baixa, cerca de um animal por hectare”.
Pesquisa
aponta frigoríficos e produtores de soja com maior risco de serem associados a
queimadas.
O que dizem as empresas
Em
nota, a JBS reclama do fato de não ter sido procurada pelos pesquisadores da
Chain Reaction Research. A empresa questiona os critérios técnicos do estudo e
diz adotar uma abordagem de tolerância zero em relação ao desmatamento em toda
a sua cadeia de fornecimento. “Todas as fazendas fornecedoras de gado da JBS na
região amazônica são monitoradas por meio de imagens de satélite e dados
georreferenciados da propriedade. Portanto, fornecedores que utilizaram fogo
para desmatar a floresta serão detectados pelo sistema de monitoramento da
Companhia e bloqueados para compra de gado.”
A
Marfrig afirmou que adota “uma rígida política de compra de animais, bem como
um protocolo com critérios e procedimentos que são pré-requisitos para a homologação
de fornecedores”. A empresa diz manter uma plataforma que monitora, por meio de
um sistema de georreferenciamento e geomonitoramento socioambientais, todos os
seus fornecedores. A ferramenta cruza os dados georreferenciados e documentos
das fazendas com informações públicas oficiais para identificar potenciais não
conformidades, “coibindo que a matéria-prima seja oriunda de fazendas que
produzam carne em áreas de desmatamento ou embargadas, sobrepostas a unidades
de conservação ou terras indígenas, ou mesmo que utilizem ‘trabalho escravo’”.
A
Bunge disse que está comprometida com uma cadeia de suprimentos livre de
desmatamento e que condena qualquer uso do fogo para o desflorestamento. “A
empresa mantém rigoroso controle sobre critérios socioambientais em suas
operações em todo o Brasil. As ações incluem verificações diárias às listas
públicas de não conformidades do IBAMA e do Ministério do Trabalho e Emprego,
além da checagem de outros requisitos legais, e bloqueio imediato de qualquer
negociação comercial, em caso de desconformidade”. De acordo com a nota, “a
empresa também é signatária da Moratória da Soja, compromisso reconhecido
mundialmente que proíbe a compra de soja cultivada em áreas desmatadas após
2008 na Amazônia, e do Protocolo Verde de Grãos do Pará, uma iniciativa
conjunta com o Ministério Público Federal (MPF), que estabelece critérios para
transações comerciais com foco em evitar a comercialização de grãos oriundos de
áreas ilegalmente desmatadas”.
A
Cargill afirmou que está comprometida com a proteção das florestas e da
vegetação nativa de maneira que sejam economicamente viáveis para os
agricultores. “O desmatamento ilegal e incêndios deliberados na Amazônia são
inaceitáveis e, juntamente com outras empresas do setor, continuaremos a fazer
parcerias com comunidades locais, agricultores, governos, ONGs e nossos
clientes para encontrarmos soluções que preservem esse importante ecossistema”,
afirma a nota da Cargill. “Fazemos parte da Moratória da Soja na Amazônia desde
2006, quando assinamos um acordo voluntário com organizações industriais e
ambientais de não comprar soja de terras que foram desmatadas após 2008 neste
bioma. Esse esforço contribuiu para o declínio de 80% no desmatamento na
Amazônia na última década e foi estendido indefinidamente em 2016”.
Queimadas
não são naturais na Amazônia; todo incêndio tem mão humana (inclusive a nossa).
As
florestas derrubadas acabam virando bife no almoço de muitos brasileiros.
(ecodebate)
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