Desmatamento e queimadas tornam a Amazônia prevalente na emissão de
CO2. Entrevista especial com Luciana Gatti
Apesar de a floresta ser um enorme manancial de absorção de CO2
e de calor da atmosfera, ações humanas ligadas ao desmatamento e pecuária estão
devastando e fragilizando o bioma.
Durante décadas, possivelmente séculos, a Amazônia foi uma região em
que os níveis de absorção de CO2 da atmosfera eram superiores aos de
emissão. Apesar da floresta, em condições normais, equilibrar seus próprios
níveis de emissão e absorção de CO2, com os processos industriais de
modernização e a prevalência da queima de combustíveis fósseis o volume de CO2
passou a ser mais rico na atmosfera. Com isso, a Amazônia passou a absorver
parte deste “excesso” de gases, retirando também calor da biosfera. Contudo, o
que estudos recentes mostram é que agora o bioma também contribui para o
aquecimento global.
“Observamos que no saldo entre absorções e emissões a Amazônia emite
para a atmosfera 290 milhões de toneladas de carbono por ano. Isso é composto
pela diferença da emissão de 410 milhões de toneladas para a atmosfera devido,
justamente, às queimadas e da absorção pela floresta de 130 milhões de
toneladas de carbono por ano”, aponta a professora e pesquisadora Luciana
Gatti, em entrevista por telefone ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
Toda esta devastação traz ainda impactos no regime de chuvas, o que
altera as condições climáticas de boa parte do país. “Um primeiro impacto,
grosso modo, é que 20% da Amazônia desmatada são 20% a menos de contribuição da
formação de nuvens de chuva com vapor de água, o que causa como consequência
direta, menos precipitação”, pontua.
Apesar do desinteresse do governo federal em proteger a Amazônia,
quando não age em contrário, no sentido de aprofundar suas fragilidades, é fundamental
que a sociedade civil organizada se articule em defesa da preservação do bioma.
“A Amazônia poderia ser uma grande proteção para as mudanças climáticas, pois
ela absorve gás carbônico, forma muita chuva com a evapotranspiração e com isso
reduz a temperatura, servindo de proteção contra as mudanças climáticas.
Contudo, ao desmatar estamos transformando a Amazônia em um fator de
contribuição para as mudanças climáticas”, complementa.
Luciana Gatti é graduada em Química e mestra em Química Analítica pela Universidade de São Paulo – USP. Realizou doutorado em Ciência pela Universidade Federal de São Carlos – UFSCar, no Departamento de Química. É especialista em medidas de alta precisão de Gases de Efeito Estufa e estudos em escala Regional utilizando aviões de pequeno porte. É pesquisadora titular do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais/Centro de Ciências do Sistema Terrestre e professora de pós-graduação do curso Tecnologia Nuclear do IPEN, na Universidade de São Paulo. Coordena o Laboratório de Gases de Efeito Estufa – LaGEE, parte integrante do LaPBio/CCST/Inpe.
IHU – Quais são as principais conclusões do estudo “Amazônia como fonte de carbono ligada ao desmatamento e mudanças climáticas”?
Luciana Gatti – As principais conclusões do nosso estudo são,
basicamente, duas. A primeira é o balanço total de carbono da Amazônia.
Observamos que no saldo entre absorções e emissões a Amazônia emite para a
atmosfera 290 milhões de toneladas de carbono por ano. Isso é composto pela
diferença da emissão de 410 milhões de toneladas para atmosfera devido,
justamente, às queimadas e da absorção pela floresta de 130 milhões de
toneladas de carbono por ano. Essa é uma primeira conclusão importante.
A segunda, e ainda mais importante, foi a possibilidade de entendermos
o que está acontecendo com a Amazônia. Esse fenômeno ocorre em razão de a
região leste [da Amazônia] já estar muito desmatada, e esse desmatamento está
alterando as condições climáticas, principalmente a estação seca. Essa condição
muito estressante e adversa faz com que essa região tenha uma emissão de
carbono muito maior que a oeste.
Observamos que no saldo entre absorções e emissões a Amazônia emite
para a atmosfera 290 milhões de toneladas de carbono por ano – Luciana Gatti
Observamos que a redução de chuvas é, praticamente, proporcional à área
desmatada e que houve um aumento muito grande de temperatura, principalmente
nos meses de agosto, setembro e outubro. Esses são os meses em que o pessoal,
depois de desmatar, coloca fogo nas áreas, pois esperam mais ou menos três
meses para a vegetação ficar bem seca. Em função disso, a floresta que não foi
desmatada fica tremendamente seca, pois os volumes de chuva são reduzidos. Por
exemplo, a região nordeste da Amazônia, que estudamos, está 37% desmatada e
perdeu 34% de chuvas; a região sudeste está 28% desmatada e perdeu 24% de
chuvas. O aumento de temperatura na região nordeste da Amazônia foi de 1,9ºC e
na região sudeste foi de 2,5ºC. Essa variação ocorreu em um cenário de 40 anos.
Isso tudo é favorecido por esses fatores que mencionei somados à queima de
pastagens para gado, cuja produção está enorme na Amazônia, pois, considerando
dados até 2019, 36% do gado brasileiro estava no bioma. Como a floresta está
extremamente seca, o fogo acaba entrando nas partes em que não foi desmatada,
representando, também, emissões.
As emissões não são somente na hora das queimadas, mas também depois, por ocasião da decomposição das regiões queimadas da floresta. Isso acontece seja com folhas, com galhos, seja com árvores inteiras que morreram ao longo dos anos. Uma segunda emissão adicional é o que está acontecendo com a floresta que não foi nem queimada, nem desmatada, mas que tem relação com a condição de estresse associada a pouca disponibilidade de água somada à temperatura alta. Nós temos de lembrar que a Amazônia é uma floresta tropical úmida, onde as árvores estão habituadas a uma condição de abundância de água e temperaturas amenas, o que não está acontecendo por três, quatro, às vezes, cinco meses ao longo do ano, dependendo da região. Isso tudo faz com que as árvores vão perdendo as folhas, cujo material se junta à decomposição no solo, e leva, até mesmo, à morte das árvores. Alguns estudos apontam que a mortalidade das árvores é muito maior.
IHU – Nessas regiões, pode-se afirmar que chegamos a um ponto de não retorno (tipping point)? Por quê?
Luciana Gatti – Quando começamos a fazer o nosso estudo, em 2010, a
Amazônia já era uma fonte de emissão de carbono principalmente por culpa do
desmatamento e das queimadas. Não dá para dizer que chegamos a um ponto de não
retorno. Se pararmos hoje de queimar e desmatar e passarmos a reflorestar as
áreas que estão com desmatamento acima de 30%, seria possível reverter o
cenário que estamos observando hoje? Talvez sim. É muito difícil, apenas
observando as emissões de carbono, responder isso com certeza. Seria necessário
fazer um estudo com pessoas de muitas áreas diferentes para chegar a uma
conclusão mais precisa.
Quando começamos a fazer o nosso estudo, em 2010, a Amazônia já era uma
fonte de emissão de carbono principalmente por culpa do desmatamento e das
queimadas – Luciana Gatti
IHU – No geral, considerando o bioma da floresta amazônica em sentido
mais amplo, qual a relação entre absorção e emissão de gases do efeito estufa?
Ela (hoje) emite mais gases ou absorve mais gases?
Luciana Gatti – Essa questão é bastante genérica. Nós não podemos falar
disso de maneira tão ampla. Cada ciclo, cada espécie de gás tem
particularidades. O estudo que fizemos foi sobre CO2. E é sobre CO2
que a planta faz fotossíntese durante o dia, absorvendo-o e eliminando oxigênio
e à noite o oposto. Uma floresta madura mantém um equilíbrio entre o que ela
absorve e o que ela emite. Considerando, porém, que o ar está mais enriquecido
de CO2, porque usa-se muito petróleo, combustíveis fósseis e se
derrubam muitas florestas, estamos enriquecendo a atmosfera de CO2
em mais de 100% e isso estimula as árvores a absorverem mais carbono do que na
condição de equilíbrio.
O problema é que a Amazônia está com o clima muito adverso, muito
estressante e isso está promovendo um desgaste maior. Está ocorrendo mais
mortalidade do que crescimento de floresta no sudeste da Amazônia. No nordeste
da Amazônia, que também está muito desmatado, essa condição está fazendo com
que a floresta compense apenas 20% do total das emissões de desmatamento e
queimadas.
Um primeiro impacto, grosso modo, é que 20% da Amazônia desmatada são
20% a menos de contribuição da formação de nuvens de chuva com vapor de água –
Luciana Gatti
IHU – Qual a importância da floresta amazônica para o clima no Brasil?
Como impacta no regime de chuvas e de estiagem de outras regiões?
Luciana Gatti – As árvores evapotranspiram. As raízes pegam a água no
solo e jogam na atmosfera em forma de vapor. Um primeiro impacto, grosso modo,
é que 20% da Amazônia desmatada são 20% a menos de contribuição na formação de
nuvens de chuva com vapor de água, o que causa, como consequência direta, menos
precipitação. A segunda consequência é que, quando a água vai do estado líquido
para o estado de vapor, ela precisa “roubar” energia e esta energia é
apropriada do ambiente em forma de calor, causando um resfriamento. Se menos
árvores estão evapotranspirando (afinal as árvores não existem mais), há o
aumento de temperatura. Esse é um processo que poderia estar minimizando o
aumento das temperaturas devido às mudanças climáticas.
A Amazônia poderia ser uma grande proteção para as mudanças climáticas,
pois ela absorve gás carbônico, forma muita chuva com a evapotranspiração e com
isso reduz a temperatura, servindo de proteção contra as mudanças climáticas.
Contudo, ao desmatar estamos transformando a Amazônia em um fator de
contribuição para as mudanças climáticas, pois estamos:
1) jogando mais gás carbônico para a atmosfera;
2) reduzindo as chuvas, o que já é efeito das mudanças climáticas aqui
no Brasil;
3) essas transformações estão
trazendo o aumento de temperatura. Tudo isso forma um clima extremamente
estressante para a Amazônia, que produz um aumento na mortalidade das árvores
de forma ampliada e exponencial.
A Amazônia poderia ser uma grande proteção para as mudanças climáticas, pois ela absorve gás carbônico, forma muita chuva com a evapotranspiração e com isso reduz a temperatura – Luciana Gatti
O desmatamento da Amazônia é, em várias ordens de grandeza, prejudicial a toda a América do Sul, ao Brasil, ao agronegócio, que será o primeiro setor a sentir a redução da produtividade devido ao desmatamento. Isso traz consequências para a sociedade de maneira geral, uma vez que essas mudanças climáticas estão causando vários danos ao volume de chuvas e com isso impactos na produção de energia, eventos extremos com muitos prejuízos e mortes. Isso não será sentido somente no Brasil ou na América do Sul, mas no mundo todo, pois se trata de uma área gigantesca que faz a diferença no planeta. Estamos fazendo com que a Amazônia, que é um benefício gigantesco para o brasileiro, acabe se transformando numa contribuição para a aceleração das mudanças climáticas.
IHU – Que políticas públicas e que ações devem ser tomadas no sentido
de preservar o bioma amazônico?
Luciana Gatti – Temos que adotar medidas urgentes para salvar a
Amazônia. Em primeiro lugar devemos fazer um grande acordo nacional, uma
moratória de dez anos sobre a Amazônia e a proibição de quaisquer tipos de
queimadas entre julho e novembro, período de estiagem e maior seca, com incêndios
incontroláveis. Esse problema pode ser observado não somente na região Norte do
Brasil, mas no país inteiro. Não à toa toda hora vemos incêndios que foram
provocados numa área pequena em que a vegetação está tão seca que o fogo acaba
saindo de controle, produzindo ainda mais emissão de gases do efeito estufa e
contribuindo para as mudanças climáticas.
Estamos “plantando seca”. Ah, e devo acrescentar, estamos plantando incêndio e um futuro muito tenebroso para o Brasil – Luciana Gatti
Isso é uma espécie de “bola de neve” que vai se retroalimentando e piorando cada vez mais. Precisamos de medidas urgentes para minimizar as alterações na vida em sociedade que a mudança climática está trazendo e administrar um futuro que, podemos prever, será uma catástrofe. Até agora nós estamos contribuindo com a catástrofe, fazendo o oposto do que deveríamos estar fazendo ao incentivar o desmatamento e uma série de destruições das leis de proteção ambiental, ou seja, estamos trabalhando contra nós mesmos. Estamos “plantando seca”. Ah, e devo acrescentar, estamos plantando incêndio e um futuro muito tenebroso para o Brasil. (ecodebate)
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