Resumo:
Marlene Quintanilla coordenou o estudo “Amazônia contra o relógio: Um
diagnóstico regional sobre onde e como proteger 80% até 2025”, lançado em
05/09/22.
“O Brasil é o país com a porção mais extensa da Amazônia e o que menos
está fazendo para conservá-la.” Esta é a avaliação da engenheira florestal
boliviana Marlene Quintanilla, coordenadora do estudo “Amazônia contra o
relógio: Um diagnóstico regional sobre onde e como proteger 80% até 2025”,
lançado em 05/09/22, dia da Amazônia. A pesquisa, desenvolvida a partir de 2021
com dados de 1985 a 2020, identificou que, dos nove países amazônicos, o Brasil
é o que apresenta o pior nível de transformação (ou seja, desmatamento) e
degradação do bioma – 34%. O índice da Bolívia, segunda colocada no ranking, é
dez pontos menor, de 24%.
Os pesquisadores da Red Amazónica de Información Socioambiental
Georreferenciada (RAISG), da qual Quintanilla faz parte, identificaram que 26%
da Amazônia já estão transformados ou altamente degradados, o que a coloca no
patamar do ponto de não retorno definido por trabalhos científicos anteriores –
este ponto chegaria, de acordo com outros estudos, quando transformação e
degradação somadas ultrapassassem o limiar de 20% a 25%.
Além disso, o novo relatório – coordenado por Quintanilla e elaborado
pela RAISG em parceria com a Coordenação das Organizações Indígenas da Bacia
Amazônica (COICA) e Stand.Earth – revela que, caso a atual tendência de
desmatamento se mantenha, “a Amazônia como conhecemos hoje não chegará a 2025”.
Os efeitos das altas taxas de desmatamento e degradação já estão causando a
perda de serviços ecossistêmicos cruciais prestados pela floresta, como a
regulação do regime de chuvas. “A função ambiental da Amazônia está mudando de
maneira negativa”, afirma Quintanilla.
Mas o estudo sugere uma forma de enfrentar esse cenário: a demarcação
de terras indígenas e destinação permanente de recursos orçamentários às
comunidades que nelas vivem. De acordo com o levantamento, 86% do desmatamento
na Amazônia aconteceu fora de territórios indígenas e áreas protegidas, embora
eles abarquem pouco menos da metade do bioma (48%). E apesar de as unidades de
conservação terem sido criadas exatamente com a finalidade de preservação
ambiental, as terras indígenas são igualmente ou ainda mais eficazes nesse
sentido, mostram os dados. “Os meios de vida e a cultura tradicional dos povos
indígenas da Amazônia são mais compatíveis com sua conservação do que qualquer
outra estratégia que se está implementando”, destaca a pesquisadora.
Estudo considerou para análise uma região de 847 milhões de hectares
que abrange os limites do bioma amazônico na Colômbia e Venezuela; os limites
da bacia amazônica no Equador, Peru e Bolívia; as bacias do Amazonas e do
Araguaia-Tocantins e a extensão completa da Amazônia Legal no Brasil; e todo o
território da Guiana, Guiana Francesa e Suriname. Ele foi produzido no âmbito
da campanha “Amazônia para a Vida: Proteger 80% até 2025“, lançada pela COICA e
organizações parceiras em setembro/2021.
O relatório evidencia que o tipping point – o ponto de não retorno da
Amazônia – já é uma realidade em algumas regiões. O que isso significa, na
prática?
É uma meta ambiciosa proteger a Amazônia em 80% até 2025. Nossa primeira pergunta foi: como está a Amazônia, será que esses 80% existem e estão em bom estado? Uma das grandes descobertas do estudo é que cerca de 20% da Amazônia apresenta níveis importantes de transformação e outros 6% estão em alta degradação. Não há mais 80% da Amazônia totalmente conservados. Então nos perguntamos: já atingimos o ponto de não retorno? Porque sempre o encaramos como algo futuro, que não sabíamos exatamente quando ocorreria, mas do qual nos aproximávamos cada vez mais. Nossa análise indica que, em nível regional, praticamente já atingimos esse ponto de não retorno. Há uma metamorfose ocorrendo na Amazônia que, pelas mudanças e atividades antrópicas, está acelerando a transformação das funções ambientais do bioma. Um dado que não está no estudo diz que parte da Amazônia já gera mais emissões do que captura carbono. Algumas das coisas que sempre destacamos sobre a Amazônia – que ela funcionava como purificador do ar e tinha função de regulação climática – estão mudando. As pesquisas científicas mostram que as secas extremas e os incêndios estão gerando muita mortalidade de árvores e isso, por sua vez, emite muito dióxido de carbono. A função ambiental da Amazônia está mudando de maneira negativa.
O estudo destaca a importância dos povos indígenas no combate à crise climática e de biodiversidade e na proteção da Amazônia. Por que seu papel é tão central? E por que as terras indígenas apresentam índices de preservação até melhores do que unidades de conservação?
O relatório mostra que os territórios indígenas têm uma função muito
mais chave do que pensávamos em termos de conservação da Amazônia. Neles, os
níveis de transformação e de degradação são mínimos e menores do que nas áreas
protegidas, instituídas justamente com o propósito de conservação dos
ecossistemas. A intenção não é criar uma concorrência entre esses regimes, mas
queremos passar a mensagem de que os meios de vida e a cultura tradicional dos
povos indígenas da Amazônia são mais compatíveis com sua conservação do que
qualquer outra estratégia que se está implementando. Por isso devemos valorizar
mais os territórios indígenas e encará-los como nossos melhores aliados para
proteger a Amazônia, pois ela não interessa apenas a nós que nela vivemos, mas
se trata da regulação climática global. Cerca de 48% da Amazônia estão
protegidos, seja por terras indígenas ou unidades de conservação. Nos
territórios indígenas, o nível de transformação é de 4%; já nas áreas
protegidas, é de 6%. Os 52% do bioma que estão fora de qualquer área protegida
já sofreram 33% de transformação e cerca de 10% de degradação – ou seja, 43% de
áreas com alta degradação. A criação de áreas protegidas é uma etapa
importante, mas em alguns países há um abandono na destinação de recursos a
elas. Se isso acontece, elas ficam abertas à transformação e degradação. Já as
terras indígenas demarcadas, havendo ou não a destinação de recursos,
representam uma garantia maior na conservação da Amazônia, segundo os dados que
geramos.
Os dados do relatório indicam também que o Brasil é o país amazônico com
os maiores índices de transformação e degradação da floresta. É possível
afirmar que o Brasil é quem pior cuida da Amazônia?
As mudanças mais bruscas estão na Bolívia e no Brasil. A Amazônia brasileira já tem um nível de transformação de 25% e de 9% de degradação. Principalmente na parte sudeste [onde está o norte do Mato Grosso e o sul do Pará], as pessoas já sentem as mudanças – mais secas e incêndios, menos água e muitas transformações nos ecossistemas. E os povos indígenas sentem muito mais tudo isso porque vivem na floresta. O segundo país com níveis importantes para o ponto de não retorno é a Bolívia: 20% da Amazônia boliviana já se transformaram e 4% estão altamente degradados. Em terceiro lugar, vem o Equador, com cerca de 15% de áreas transformadas e 1% degradada, e depois a Colômbia, com 12% de áreas transformadas e 2% de degradação. Os países que seguem essa dinâmica são Peru e Venezuela. O Brasil é o país com a porção mais extensa da Amazônia e o que menos está fazendo para conservá-la, lamentavelmente.
Qual a dimensão da destruição da Amazônia nos últimos anos, segundo os dados levantados para o relatório?
Identificamos que cerca de 2 milhões de hectares são desmatados
anualmente na Amazônia. Já os incêndios atingem todos os anos aproximadamente
17 milhões de hectares. Para termos uma dimensão melhor, a superfície desmatada
por ano é similar à área do Haiti – essa é a velocidade do desmatamento na
Amazônia. E em relação aos incêndios é muito maior. O pior ano em termos de
incêndios para a Amazônia foi 2020, quando a superfície queimada foi maior do
que extensão do Equador. É incrível o nível de desmatamento que está ocorrendo,
e o de incêndios é ainda pior. E grande parte disso, sobretudo em relação aos
incêndios, está ocorrendo no Brasil e na Bolívia. Da perspectiva internacional,
as políticas de conservação da Amazônia devem estar mais dirigidas a esses dois
países.
Qual é o peso da política ambiental do governo federal e dos estados
brasileiros para a preservação da Amazônia?
Se os governos de países como Brasil e Bolívia não atuarem de maneira
séria para conservá-la, todo o esforço global será incipiente. A profundidade
do problema na Amazônia está relacionada a uma questão legal, o que tem muito a
ver com a demarcação de terras indígenas. Nossa análise aponta que há 255
milhões de hectares [fora de terras indígenas e unidades de conservação] que
poderiam ser a solução para evitar o ponto de não retorno, e a estimativa da
COICA é de que existem 100 milhões de hectares de terras indígenas sendo
demandadas [por diferentes etnias]. Se essa demanda fosse atendida, teríamos em
parte a solução. E essa solução está nas mãos dos governos do Brasil, em grande
parte, e também dos governos da Bolívia, Equador e dos outros países
[amazônicos]. Se não se atende à demanda de demarcação de terras indígenas,
esses 100 milhões de hectares com certeza serão convertidos em outros tipos de
propriedades. E, pelo que temos visto, o que não está em terras indígenas ou
áreas protegidas acaba sofrendo degradação e transformação. Além disso, é
importante destinar recursos para as comunidades indígenas, porque elas estão
cumprindo uma função de preservação da qual nós, que estamos na cidade, também
nos beneficiamos.
Uma das 13 propostas do relatório é a “moratória imediata” do
desmatamento na Amazônia. Como ela se daria?
A moratória deveria abranger a sua totalidade porque há uma emergência
global. Porém, as realidades entre os países são distintas, e acredito que
Brasil e Bolívia precisam de uma moratória imediata porque são os países com
níveis mais avançados de desmatamento e degradação da Amazônia. Frear o
desmatamento em ambos poderia reverter o que está acontecendo com a Amazônia. E
obviamente esse modelo poderia ser replicado nos outros países. É importante
mostrar que a floresta tem valor econômico e social muito mais alto do que uma
plantação ou um pasto. Com a moratória, não se pretende atrasar o
desenvolvimento dos países, pelo contrário, precisamos perceber o potencial
econômico da floresta, há muitos recursos em madeira e para além dela que podem
potencializar o desenvolvimento econômico. É preciso olhar para a floresta em
pé como a melhor alternativa para a economia e a função social que desempenha
essas áreas.
Outra proposta pede o “perdão condicionado” das dívidas dos países
amazônicos por parte das instituições financeiras internacionais. Por que isso
seria importante?
Essa proposta vem da COICA. Os territórios indígenas têm sido muito afetados nos últimos anos e não têm recebido apoio dos governos – pelo contrário, têm sofrido invasões. O perdão da dívida significa um incentivo ao apoio a esses territórios e que os governos possam destinar recursos às organizações indígenas que existem em cada país.
De acordo com o relatório, as áreas destinadas à agricultura na Amazônia triplicaram desde 1985 e o setor é responsável por 84% do desmatamento da floresta. No Brasil, o agronegócio tem muita força econômica e política e é majoritariamente contrário à agenda de preservação ambiental. Como resolver essa questão?
Sempre se olhou muito para a Amazônia como território para o
agronegócio. Agora, a pecuária está muito forte, e seus impactos não se
restringem ao desmatamento, estão também nas emissões de gases de efeito estufa
oriundas da atividade – 2% das emissões globais vêm da pecuária da Amazônia, é
uma contribuição importante. Não queremos olhar para os agricultores e
pecuaristas como inimigos porque sabemos que geram empregos e movimento
econômico para seus países, o problema é que o setor está sendo afetado pelas
mudanças climáticas. O regime de chuvas está sendo alterado, já não há muita
água e os cultivos precisam de irrigação. Um rebanho de gado, por exemplo,
necessita de 40 litros de água por dia. Chegamos a um ponto em que a expansão
do agronegócio não deveria avançar mais, porque a carga agrícola e pecuária na
Amazônia já é muito intensa e não será sustentável, sobretudo em relação à
água. É importante que o setor – os investidores principalmente – valorizem o
manejo florestal e que nós diversifiquemos a produção econômica na Amazônia. No
fim das contas, queremos alertar os empresários do agronegócio de que seus
investimentos estão em risco se a Amazônia não for preservada.
Estamos a um mês da eleição presidencial no Brasil e a preservação da
Amazônia, por enquanto, não é um dos assuntos mais importantes nas agendas dos
principais candidatos. O quanto isso preocupa vocês, pesquisadores, que estão
fazendo alertas tão assustadores sobre a destruição da floresta?
Nós não perdemos a esperança, produzimos esses estudos justamente para que sejam lidos. Sei que isso pode ser muito otimista, mas dar visibilidade à informação para que os governos tenham à disposição esse tipo de análise vai gerar, em algum momento, algum nível de consciência pelo menos, senão de justiça. Existe a advertência por parte da comunidade científica, e agora, neste relatório, fazemos uma aliança com a experiência dos povos indígenas e seu papel na preservação ambiental.
*Este ensaio faz parte do especial Emergência Climática, que investiga as violações socioambientais decorrentes das atividades emissoras de carbono – da pecuária à geração de energia. A cobertura completa está no site do projeto. (ecodebate)
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