“O que estava em jogo no
velho conflito industrial do trabalho contra o capital eram positividades:
lucros, prosperidade, bens de consumo. No novo conflito ecológico, o que está
em jogo são negatividades: perdas, devastação, ameaças” Ulrich Beck, Sociedade
de Risco
Durante todo o Holoceno
(últimos 12 mil anos) a estabilidade climática do planeta permitiu e facilitou
o florescimento da civilização humana. Logo depois da última era glacial, a
humanidade aprendeu a utilizar a agricultura e a pecuária a seu favor. O
aumento do excedente de meios de subsistência permitiu o progresso das cidades.
Acredita-se que a agricultura
tenha se originado por volta de 10.000 a.C. nas regiões conhecidas como
“Crescente Fértil”, que abrangiam áreas do Oriente Médio, incluindo partes da
atual Turquia, Iraque, Irã, Síria e Líbano. Os primeiros agricultores começaram
a cultivar plantas como trigo, cevada, lentilha e ervilha, aprendendo a
domesticar e selecionar sementes para aumentar a produtividade e a variedade
dos alimentos. A agricultura trouxe uma série de mudanças na vida das pessoas.
Em vez de dependerem da caça e da coleta de alimentos selvagens, as comunidades
agrícolas podiam plantar e colher suas próprias safras. Isso levou ao
estabelecimento de assentamentos permanentes, ao aumento da população e ao surgimento
de sociedades mais complexas.
A domesticação e criação de
animais também foram um desenvolvimento crucial na história da período. Os
primeiros animais a serem domesticados foram provavelmente cães, seguidos por
ovelhas, cabras e porcos. A criação de animais proporcionava uma fonte
constante de alimentos humanidade. A pecuária começou a se desenvolver em
paralelo à agricultura, em torno do mesmo, como carne, leite e couro. Além
disso, os animais domesticados eram utilizados para auxiliar no trabalho
agrícola, como arar a terra. Com o tempo, outros animais, como bovinos e
cavalos, também foram domesticados para diversos propósitos.
O desenvolvimento da agricultura e da pecuária permitiu que as comunidades humanas se estabelecessem em locais fixos, em vez de serem nômades em busca de alimentos. Esses assentamentos permanentes, com tempo, cresceram em tamanho e complexidade, evoluindo para as primeiras cidades. O surgimento das cidades está ligado a vários fatores, incluindo a necessidade de coordenação social, o crescimento populacional e o desenvolvimento de atividades comerciais.
À medida que as sociedades agrícolas se tornavam mais avançadas, surgiam divisões de trabalho, com algumas pessoas se especializando em atividades não agrícolas, como artesanato, comércio e governança. As cidades forneciam um centro de comércio, troca de conhecimentos e cultura, além de servirem como locais de poder político e religioso. A urbanização continuou a crescer ao longo dos milênios, culminando nas cidades complexas e densamente povoadas que conhecemos hoje.
Acontece que todo o sucesso
humano em dominar a natureza tem se voltado contra a civilização, pois o
enriquecimento da população mundial (mesmo que de forma desigual) ocorreu às
custas do empobrecimento do meio ambiente e da desestabilização do clima
planetário.
A humanidade chegou a 1
bilhão de pessoas por volta do ano 1800, passou para 4 bilhões em 1974 e
alcançou 8 bilhões de habitantes em 2022. Em menos de 50 anos foram
acrescentados 4 bilhões de consumidores do meio ambiente. Em pouco mais de 200
anos a população octuplicou e a produção de bens e serviços aumentou mais de
100 vezes. Consequentemente, os ecossistemas foram saqueados, os rios, lagos e
oceanos foram poluídos e a atmosfera virou abrigadouro dos gases de efeito
estufa liberado pelas atividades antrópicas.
O relatório “Sustainable
Trade in Resources: Global Material Flows, Circularity and Trade” (UNEP/IRP,
2020) registrou o tamanho da demanda humana por recursos da natureza. A
extração global de recursos naturais estava em 27 bilhões de toneladas em 1970,
passou para 92 bilhões de toneladas em 2017 e deve alcançar 190 bilhões de
toneladas em 2060. Cada habitante do Planeta consumia em média 7 toneladas per
capita em 1970, passou para 12 toneladas per capita em 2017 e deve chegar a
cerca de 20 toneladas per capita em 2060.
As emissões globais de CO2
que estavam em 6 bilhões de toneladas em 1950, chegaram a 16 bilhões de
toneladas em 1972 e atingiram 37 bilhões de toneladas em 2022. Portanto, entre
1900 e 1972 o aumento foi de 10 bilhões de toneladas em 72 anos e entre 1972 e
2023 o aumento foi de 21 bilhões de toneladas em 51 anos. Houve aceleração do
ritmo das emissões. Em consequência, aumentou a dimensão do efeito estufa, com
elevação das temperaturas médias do Planeta.
Nos últimos 800 mil anos, a concentração de CO2 na atmosfera estava sistematicamente abaixo de 280 partes por milhão (ppm). Em 1950 chegou a 300 ppm e, na época da Conferência de Estocolmo, em 1972, a concentração de CO2 na atmosfera estava em 327 ppm. Em 1987 a concentração chegou a 350 ppm. Este é o nível máximo recomendado pela ciência para evitar um possível aquecimento global catastrófico. Em 2015, quando houve o Acordo de Paris, a concentração de CO2 já havia ultrapassado 400 ppm e, a despeito de todas as metas de redução, a concentração de CO2 chegou a 424 ppm em maio de 2023.
O resultado do progresso humano tem sido o retrocesso das condições ambientais. A época dos ganhos tem sido substituída pela era dos danos. Como disse o sociólogo Ulrich Beck, no livro Sociedade de Risco: “O que estava em jogo no velho conflito industrial do trabalho contra o capital eram positividades: lucros, prosperidade, bens de consumo. No novo conflito ecológico, o que está em jogo são negatividades: perdas, devastação, ameaças”.
Portanto, as boas condições
climáticas e ambientais que possibilitaram o crescimento exponencial da
população e das cidades desapareceram e, lastimavelmente, se transformaram em
uma situação de múltiplas crises (policrise) e de crises permanentes
(permacrise). A habitabilidade do planeta tem retrocedido e isto dificulta a
continuidade do crescimento populacional e, em especial, a continuidade do
crescimento da população urbana. O aquecimento global tem um impacto amplo e
irrestrito sobre o planeta, como aumentar as ondas letais de calor e aumentar o
nível dos oceanos.
De acordo com o Instituto
Berkeley Earth, da Califórnia, os últimos 9 anos têm sido os mais quentes do
Holoceno. A Organização Meteorológica Mundial (OMM) divulgou um relatório, em
maio de 2023, confirmando que há uma probabilidade de 66% de a média anual de
aquecimento ultrapassar o limite de 1,5°C entre 2023 e 2027.
Com o aparecimento do evento
El Niño, os meses de junho e julho foram os mais quentes dos últimos 120 mil
anos e há uma crescente chance de que 2023 se torne o ano mais quente do
planeta na era observacional. Os efeitos do aumento da temperatura são
generalizados. As ondas letais de calor estão se transformando em uma nova
pandemia e matando mais gente do que a pandemia da covid-19. O degelo do
Ártico, da Antártida, da Groenlândia e dos glaciares estão aumentando o nível
dos mares e ameaçando a população e as cidades costeiras.
O gráfico abaixo, do Instituto Earth Berkeley, mostra como a temperatura tem uma trajetória ascendente ao longo do século XXI (tendo como linha base de referência o período 1991-2020). A temperatura deve subir em torno de 2ºC nas próximas 8 décadas.
O aumento da temperatura global traz consigo uma série de perigos e impactos negativos para o planeta e para a vida na Terra, tais como:
• Derretimento acelerado do
gelo polar: O aquecimento global nessa magnitude pode levar a um derretimento
mais rápido das geleiras e do gelo polar, o que contribuiria para a elevação do
nível do mar. Isso pode ameaçar comunidades costeiras, ecossistemas e habitats
marinhos.
• Aumento da frequência e
intensidade de eventos climáticos extremos: Aumento de calor extremo, ondas de
calor, secas mais intensas e prolongadas, tempestades mais fortes, furacões e
inundações são algumas das consequências esperadas. Esses eventos extremos
podem afetar a agricultura, a disponibilidade de água, a infraestrutura e a
saúde pública.
• Acidificação dos oceanos: O
aumento da concentração de dióxido de carbono (CO2) na atmosfera
também causa a acidificação dos oceanos, prejudicando a vida marinha,
especialmente organismos com conchas e corais, além de afetar a cadeia
alimentar dos ecossistemas marinhos.
• Perda de biodiversidade: As
mudanças climáticas podem perturbar os ecossistemas naturais, forçando muitas
espécies a se adaptarem, migrarem ou enfrentarem riscos de extinção, levando a
uma redução significativa da biodiversidade.
• Impactos na agricultura e
na segurança alimentar: Mudanças climáticas podem afetar negativamente a
produção agrícola, seja devido a secas, inundações, aumento de pragas ou
alterações nos padrões de crescimento das plantas, o que poderia desencadear
problemas de segurança alimentar em regiões vulneráveis.
• Disrupção de ecossistemas
marinhos e terrestres: Com o aumento das temperaturas, alguns ecossistemas
podem ser prejudicados, causando perturbações nas relações ecológicas entre
espécies e afetando a capacidade de muitos animais e plantas de sobreviverem.
• Escassez de água: Mudanças nos padrões de precipitação podem resultar em períodos de chuvas mais intensas e menos frequentes, causando escassez de água em muitas regiões, afetando a agricultura, o abastecimento de água potável e a geração de energia hidrelétrica.
Esses são apenas alguns dos perigos associados a um aumento de 2ºC na temperatura global. Artigo da BBC (Stylianou, 6/12/2018) mostra que as cidades com maior crescimento populacional enfrentam os piores riscos climáticos, conforme mostra o gráfico abaixo. Por exemplo, a capital da Nigéria – Lagos – compõe uma região metropolitana que inclui 16 cidades e mais de 25 milhões de habitantes, sendo a maior metrópole da África. Fica na costa do Atlântico, à beira de um grande lago, e já sofre com as inundações provocadas pela combinação de chuvas e elevação do nível do mar. Com a aceleração do aquecimento global, milhões de pessoas ficarão desalojadas pela invasão das águas salgadas. A Combinação de crise econômica, crise ambiental e alto crescimento demográfico tende a fazer explodir a extrema pobreza, condenando milhões de nigerianos ao sofrimento e fazendo do país um lugar mais perigoso e inóspito para se viver.
Se o ritmo atual do aquecimento global não for controlado, isso empurrará bilhões de pessoas para fora do “nicho climático” (as temperaturas em que os humanos podem sobreviver) e os exporá a condições perigosamente quentes. Metade da população mundial estará em situação de vulnerabilidade até o final do século XXI. A 6ª extinção em massa das espécies e o aumento da emissões de gases de efeito estufa leva a uma crise ambiental e climática, sendo que o aquecimento global pode tornar amplas áreas da Terra inóspitas e inabitáveis.
Desta forma, a transição demográfica e o decrescimento populacional podem ser uma forma não só de mitigação do aquecimento global, mas também uma forma de se adaptar às novas condições ecológicas da sociedade de risco e com temperaturas cada vez mais altas.
Como disse o filósofo Bertrand Russell (1872-1970): “O mundo tem gente demais. Acreditando em coisas demais. Se houvesse menos gente acreditando em menos coisas, talvez tudo fosse melhor!” (ecodebate)
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