Insegurança alimentar é o resultado de um contexto político,
econômico e social
“Todos nós nos
encontramos, de uma forma ou de outra, em insegurança alimentar. Isso porque
todos estamos rodeados de alimentos com agrotóxicos, alimentos com alto
processo de industrialização que deixam de ser alimentos”, alerta a economista.
Confira a entrevista
A fome no Brasil é um “fenômeno socialmente produzido e
reproduzido, pela mão do homem, que iniciou com a usurpação de terras indígenas
pelos colonizadores, que deram origem a nossa aristocracia rural”, diz Brizabel
da Rocha, autora de Política de segurança alimentar nutricional e sua inserção
ao sistema único de assistência social (São Paulo: Paco Editorial, 2012). Ao
avaliar as políticas públicas brasileiras de combate à fome, ela enfatiza que
“desde a República até o nosso século encontramos políticas públicas
reprodutoras da pobreza, na tentativa de sua superação, com supremacia dos
interesses econômicos sobre os direitos sociais”.
Brizabel da Rocha também comenta a lei n. 11.346/2006, que
criou o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional – SISAN e
assinala que há “dificuldades por parte dos poderes públicos para fazer cumprir
o direito humano ao alimento e à nutrição (leia-se o art. 2º da lei n.
11.346/2006), seja por desconhecimento, seja pela evidente fragmentação das
políticas públicas no âmbito da gestão pública”. Para garantir a segurança
alimentar, ela propõe uma “intersetorialidade” entre as políticas públicas e
uma nova maneira de “compreender o modelo de desenvolvimento econômico,
político e cultural para o país”.
Brizabel da Rocha é graduada em Economia Doméstica pela
Universidade de Passo Fundo – UPF, especialista em Cooperativismo e
Associativismo pela Universidade do Vale dos Sinos – Unisinos, e em Gestão da
Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS (2007). Também
é mestre em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande
do Sul – PUCRS (2011). Atualmente é colaboradora técnica do Instituto Harpya
Harpia/SP, uma OSCIP que atua na defesa e promoção do direito humano ao alimento
e à nutrição.
Confira a entrevista
IHU On-Line – Historicamente, como os programas de combate à
fome foram construídos no país? Que aspectos caracterizaram tais programas ao
longo dos últimos 70 anos?
Brizabel da Rocha – Na história recente de nosso país
encontramos a origem da fome como um fenômeno socialmente produzido e
reproduzido pela mão do homem, iniciado com a usurpação de terras indígenas
pelos colonizadores, os quais deram origem a nossa aristocracia rural. Da
República até o nosso século, encontramos políticas públicas reprodutoras da
pobreza, na tentativa de sua superação, com supremacia dos interesses
econômicos sobre os direitos sociais. Ao abordarmos a questão da fome, num país
como o Brasil, de dimensões continentais, rico em suas fontes naturais
(minerais, hídricas, ecossistêmicas), sua biodiversidade, seu clima tropical, e
também em suas fronteiras agrícolas, temos de abordar a questão da terra, da
agricultura, das opções de desenvolvimento, e reconhecer que a fome (em suas
diversas expressões), mesmo em diferentes períodos históricos e de
desenvolvimento do país, é o resultado de um contexto político, econômico e
social.
Dessa forma, os aspectos que caracterizaram os programas
públicos de combate à fome sempre estiveram diretamente ligados à alternância
dos ciclos administrativos, governamentais, ao longo dos anos. Foram avanços
trazidos pelo médico, escritor e político pernambucano Josué de Castro, já em
1940, a partir de estudos científicos de e inquéritos alimentares, que caracterizaram
cinco “áreas alimentares” no país, instituindo na época uma nova visão sobre os
programas públicos. Houve retrocessos e negação do fenômeno da fome e da
pobreza, no período ditatorial (1964 a 1986). Também houve certa estagnação na
década de 1990. Porém, os movimentos sociais e populares, em 1993, recolocaram
o tema na agenda. Houve nova retomada somente a partir do ano de 2003, no
primeiro mandato do presidente Lula.
IHU On-Line – Desde a criação do Serviço de Alimentação e
Previdência Social – SAPS, em 1940, que buscava baratear o valor da alimentação
para o trabalhador, até a instituição do programa governamental Fome Zero, que
avaliação é possível fazer sobre as políticas públicas brasileiras nessa área?
Brizabel da Rocha – Os programas desse período a partir do
SAPS, embora morosos na sua implantação e implementação, procuraram abordar
questões estruturais e imediatas que estavam presentes naquela década. Houve a
criação do Serviço Técnico de Alimentação Nacional – STAN, ligado diretamente
ao poder Executivo. Tinha por função estimular pesquisa de nutrição e
aperfeiçoar os processos industriais de produção de alimentos bem como instalar
a Comissão Nacional de Alimentação - CNA, que estabeleceu o Plano Nacional de
Alimentação, o qual reconheceu, pela primeira vez, as questões estruturais,
econômicas e políticas geradoras da fome. Foi o último programa, quando então
vivemos o período do governo militar, quando todos os programas foram
fragmentados, com multiplicidade de ações, sem a visão de direitos vinculados a
um forte cunho clientelista e paternalista (que de alguma forma ainda hoje se
vê). Isso proporcionava a dependência da população pobre às benesses do
governo. No final da década de 1990, as medidas foram de caráter
administrativo, privatizações, reforma do estado, sem incidir nas questões
sociais marcadas por profundas desigualdades.
O processo de institucionalização de uma política pública de
Estado para o combate à fome é retomado no período de 2003, quando da criação
do Ministério Extraordinário de Segurança Alimentar – MESA com o lançamento do
programa Fome Zero, que unifica ações de transferência de renda. É preciso
olhar esse programa como uma estratégia dentro do Sistema de Segurança Alimentar Nutricional - SISAN,
atualmente em fase de implantação em todo o país, como ocorreu com o Sistema
Único de Saúde – SUS e com o Sistema Único
de Assistência Social - SUAS.
IHU On-Line – A partir de que momento a fome passou a ser
compreendida numa perspectiva de Segurança Alimentar Nutricional? Que mudanças
ocorreram nos programas sociais a partir dessa interpretação?
Brizabel da Rocha – No Brasil, as primeiras referências
documentais de governo datam do final do ano de 1985, através do Ministério da
Agricultura, quando foi elaborada a proposta de Política Nacional de Segurança
Alimentar com objetivos centrais de atender às necessidades alimentares da
população e atingir a autossuficiência nacional de produção de alimentos, com o
que se criou o Conselho Nacional de Segurança Alimentar. A proposta, à época,
teve pouca repercussão, mas sementes foram lançadas. Passou-se a incorporar, no
conceito de segurança alimentar, temas relevantes como a qualidade sanitária,
biológica, nutricional e cultural dos alimentos, assim como a segurança
alimentar domiciliar, agregando-se aí noções correlacionadas como a de
assistência básica à saúde, o cuidado promovido no lar, o cuidado do preparo
dos alimentos, a necessidade do aleitamento materno. Dessa forma foi dado ao
conceito – para além do acesso aos alimentos – uma face mais humana. Nessa
década, a política da saúde foi a que mais avançou em formulação e compreensão,
tendo definido a Política Nacional de Alimentação e Nutrição – PNAM, através da
portaria de n° 710 (de 10-06-1999), e tendo incorporado o conceito de SANS,
fundado no direito humano à alimentação e nutrição. Aí o MS assumiu
compromissos com os problemas relacionados à escassez alimentar, à pobreza, à
desnutrição infantil e materna, bem como com o quadro de excessos, tais como as
altas taxas de prevalência de sobrepeso e obesidade na população adulta e
jovem, adolescentes e crianças.
IHU On-Line – Pode nos falar do processo de construção da
lei n. 11.346/2006, que criou o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e
Nutricional – SISAN? Quais os principais desafios desde sua instituição?
Brizabel da Rocha – O processo da construção dessa
legislação foi o resultado da relação dialética entre a sociedade e o Estado,
às vezes sob demandas discordantes. A serviço das classes dominantes, o Estado
realiza ações protetoras, incorporando políticas no campo dos direitos sociais.
Essa legislação, como todas as outras no âmbito dos direitos sociais, foi fruto
da organização, mobilização e pressão da sociedade civil, tendo como vertente
essa relação com o Estado.
Porém, o caráter positivo da política não é automático,
sugerindo um contínuo desafio frente aos vários interesses que permeiam o poder
do capital. Observo dificuldades por parte dos poderes públicos em fazer
cumprir o direito humano ao alimento e à nutrição (leia-se o art. 2º da lei n.
11.346/2006), seja por desconhecimento, seja pela evidente fragmentação das
políticas adotadas no âmbito da gestão pública. Foi e será necessário que a voz
das ruas se faça ouvir em busca de garantir os seus direitos.
O art. 5º da referida lei prevê que o Estado busque a
soberania alimentar como um dos pressupostos da garantia da SANS, o que na
realidade é contraditório frente à formulação da política macroeconômica do
país, pela pouca ou nenhuma participação da área econômica nos espaços em que
se definem as ações e programas que se configuram como sendo de segurança
alimentar. Além disso, há um enfraquecimento dos Estados nacionais frente ao
poderio dos grandes conglomerados do mercado agroalimentar mundial. Por fim, um
dos desafios que estão postos para ser colocados em prática é o caráter
eminentemente multidimensional, que é a intersetorialidade da política.
IHU On-Line – Você aponta a intersetorialidade como um
desafio na Política de Segurança Alimentar Nutricional. Com quais outras
políticas públicas ela deve estar integrada?
Brizabel da Rocha – Esta política pública pressupõe a
articulação e a integração de ações no âmbito do acesso à alimentação adequada
em quantidades suficientes, com qualidade, desde a produção ao consumo para toda
a população, favorecendo ações setoriais de forma sustentável, envolvendo tanto
as políticas econômicas e financeiras quanto as políticas sociais.
O conceito de SANS, incorporado ao Sistema SANS, amplia-se
na medida em que a garantia do direito humano à alimentação adequada e à
nutrição só vai ocorrer se forem consideradas as condições efetivas das
populações de produzirem ou adquirirem com dignidade seu próprio alimento, com
acesso à renda, com direito e acesso ao trabalho, com redistribuição de terra,
com uma política agrária adequada, com política agrícola voltada para a
produção de alimentos (agricultura familiar), com acesso à educação e aos meios
promotores da saúde, saneamento básico, acesso à água de qualidade, alimentação
saudável, etc.
Trabalhar essa intersetorialidade seria compreender um novo
modelo de desenvolvimento econômico, político e cultural para o país. Seria
também um desafio às políticas sociais e seus profissionais, já que requer
alterações nas relações de poder, que historicamente se construíram de forma
centralizada e hierarquizada.
IHU On-Line – Como equacionar problemas estruturais no que
se refere à questão da fome e da segurança alimentar, superando o
assistencialismo que domina as políticas públicas na área? Por que é tão difícil
ultrapassar essa barreira do assistencialismo?
Brizabel da Rocha – Passa pelo processo de educação de um
povo. É interessante que na minha pesquisa de mestrado, onde tento verificar
como esse direito humano é garantido à população de três regiões distintas de
Porto Alegre, a categoria “educação” foi a primeira evidenciada pelos sujeitos
pesquisados. Ela surge como fio condutor para garantia de condições de
qualidade de vida, saúde, possibilidade de participação efetiva do ser humano
em seu núcleo familiar, em sua comunidade, permeando todo o processo de vida
das pessoas para que a cidadania seja exercida. Essa cidadania só será exercida
plenamente pela dignidade do trabalho, constitutivo da identidade humana.
Faz-se necessário o acesso ao trabalho e aos meios de produção.
IHU On-Line – Diante dos programas sociais e das políticas
públicas direcionadas à alimentação, é possível falar em insegurança alimentar
no Brasil?
Brizabel da Rocha – Costumo dizer que a população mandatária
da política de assistência social é uma população em insegurança alimentar. A
insegurança alimentar, em qualquer dos seus graus de gravidade, é mais
frequente nos domicílios dos estratos sociais mais baixos. Via de regra, a
população em insegurança alimentar associa uma combinação de fatores tais como
baixa escolaridade, trabalho informal, precarização das condições de trabalho,
ausência de renda, ou renda muito baixa, incidência da questão de gênero,
mulheres chefes de família, e crianças.
Porém, todos nós nos encontramos, de uma forma ou de outra,
em insegurança alimentar. Isso porque todos estamos rodeados de alimentos com
agrotóxicos, alimentos com alto processo de industrialização que deixam de ser
alimentos. Lembro o recente caso da alteração criminosa do leite no Rio Grande
do Sul. Há também os alimentos geneticamente modificados, dos quais não sabemos
os efeitos colaterais em nosso organismo, sem contar os efeitos com relação ao
meio ambiente. As águas contaminadas. Enfim, todos nós estamos afetados.
(EcoDebate)
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