Estiagem que atinge Estado do Rio
já causou a morte de quase 6.000 cabeças de gado e comprometeu a safra de cana
e a pesca da região.
Perto de meio-dia, o sol está de
rachar em São João da Barra, no norte fluminense, onde o Rio Paraíba do Sul
desemboca no mar depois de percorrer 1.100 quilômetros. Carla Verônica Tavares
caminha até os fundos de sua casa e usa o leito seco do rio para estender roupa
em um varal improvisado, feito de galhos, bambu e arame farpado. A cidade é uma
das mais afetadas pela longa estiagem no norte e noroeste do Estado, que já
matou quase 6 mil cabeças de gado e comprometeu a safra de cana-de-açúcar e a
pesca. A seca mudou a paisagem da zona rural e ameaça a captação de água, mas o
governo do Rio de Janeiro continua negando a hipótese de racionamento.
"O Paraíba acabou, né? Era um
rio feroz, olha como ele tá agora. Eu nunca vi dessa maneira. Tá todo mundo
apavorado com a situação do Paraíba", diz Carla, de 45 anos, que recebe R$
230 por mês de um programa social do município vizinho de Campos, onde nasceu.
Ela vive no local há 15 anos com o marido, a mãe e uma sobrinha. Em meio ao
cenário desolador, a família parece não acreditar. "Como é que pode isso?
Quem diria que a gente ia estender roupa no meio do Paraíba? É o fim dos
tempos. Acho que vamos ter coisa pior mais pra frente", diz Amaro Jorge,
de 50 anos, marido de Carla, catador de material reciclável. De três em três
dias, um caminhão-pipa da prefeitura enche a caixa d'água da casa, que fica
entre o rio e a BR-356.
O leito seco do Paraíba do Sul encerra
as viagens do Estado pelos Caminhos da Seca, série que visitou bacias
hidrográficas que irrigam a economia do Brasil. O cenário encontrado foi de
desolação. O nível do rio é o menor dos últimos 80 anos. Com a redução da
vazão, ficaram expostas "ilhas" de areia, chamadas de
"coroas". O volume de chuvas este ano em Campos, que tem o maior
território no Estado, não chega à metade da média das últimas três décadas, de
902 milímetros. Foram 432 mm até outubro, ante 1.292 mm em 2013.
O período da estiagem normalmente
vai de maio a agosto, mas o ano está acabando e a chuva ainda não chegou.
"Em setembro e outubro, o volume representa menos de 10% do padrão
histórico de chuvas", diz o diretor do campus local da Universidade
Federal Rural do Rio, Carlos Frederico Veiga.
Em Campos, a seca prolongada matou
2.840 cabeças de gado e provocou a perda de 520 mil toneladas de cana em
relação à safra de 2013. O engenheiro agrônomo Luiz Carlos Teixeira,
representante regional da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do
Estado (Emater-RJ), estima que o prejuízo em todo o norte fluminense chegue a
R$ 200 milhões.
"O pessoal que está vivo hoje,
gente com mais de 80 anos, nunca viu uma seca assim", diz o produtor rural
Antônio Fiaux, de 58 anos, dono de três fazendas em São Fidélis. Ele conta que
se preparou com um primo para sacrificar um boi que agonizava, desidratado, mas
o animal morreu antes. "O pior é que, se chover agora, começa a morrer
mais boi ainda, porque nasce o broto, o animal come, já debilitado, e tem diarreia."
Sem preparo
O superintendente da Defesa Civil
local, Cláudio Luiz de Almeida, diz que fazendeiros estão picando troncos de
bananeira para dar aos animais. Ele admite: "Não estamos preparados para
uma seca como essa". Caminhões da prefeitura levam às fazendas carregamentos
de cana trazidos de Minas Gerais e do Espírito Santo para tentar salvar o
rebanho, magérrimo.
Pequenos produtores são maioria na
região. Poucos têm sistemas sofisticados de irrigação, com poços artesianos. O
riacho São Benedito, que abastecia os açudes das fazendas antes de desembocar
no Paraíba, está seco. "Parece que estamos num deserto", resume o
secretário de Agricultura, Gilberto França.
Na fazenda Badger, urubus atacam as
carcaças de três bois. Na vizinha São Benedito, que tem 800 cabeças de gado
nelore, 18 morreram nos últimos dias - em todo o município foram 1.025. Genro
do dono da fazenda, o empresário Lázaro Rosa, de 37 anos, havia se mudado com a
mulher no início do ano, de São Paulo, para ajudar a cuidar dos 250 hectares.
"O gado cai e não levanta mais."
Retroescavadeiras abriram covas de
dois metros de profundidade para enterrar os animais que não resistem.
"Estamos esperando encher para fechar", diz o boiadeiro Leomir Mury,
de 26 anos, que trabalha há oito na fazenda. Os pescadores também estão
sofrendo com a seca em São Fidélis. De acordo com o presidente da Colônia Z-21,
Sirley Ornelas, a atividade tornou-se "praticamente impossível".
O governo afirma que não há risco
de racionamento para a população, mas a captação do Paraíba já foi suspensa em
São João da Barra. Isso ocorre na maré alta, quando o mar invade o rio, que não
tem pressão para empurrar a "língua salina".
"Se não chover em Minas, água
aqui é zero. Com o desvio para o Rio de Janeiro, quase não vem mais água de São
Paulo. O Paraíba está morrendo", diz o pescador Gervásio Meireles, de 65
anos. Ele pediu aos dois filhos que não sigam a sua profissão - um estuda
eletrotécnica e outro busca emprego no porto. Ao lado de um barco encalhado na
foz, Meireles reclama da ventania que quase lhe arranca o boné e diz que ela
não é normal para novembro. "Esse vento é de agosto. Agora tá tudo ao
contrário."
Nível de água nas represas do rio
já caiu abaixo de 10%
A semana foi de tempo fechado em
boa parte do Sudeste, mas as primeiras chuvas de verão que caíram em parte da
bacia do Paraíba do Sul ainda não fizeram muita diferença. O rio segue baixo.
Uma maneira de medir o nível da água é observar as hidrelétricas no seu leito.
Das 11 que fazem parte do sistema
nacional, 4 chamam a atenção: Paraibuna, Jaguari, Santa Branca e Funil. Elas
não são usinas de grande porte. Somadas, a capacidade instalada não chega a 400
MW. Mas as suas barragens são consideradas estratégicas. O fato de as represas
e suas usinas estarem próximas a centros urbanos é um trunfo no que se refere
ao transporte de energia elétrica. No caso da água, as barragens regulam o
volume do rio - evitam inundações em períodos de chuvas descontroladas e
preservam a água em tempos de estiagem, como agora. São essas barragens que
também mantêm um fluxo adequado para que cerca de dois terços das águas do
Paraíba do Sul possam ser transpostas para o Rio Guandu, responsável por nada
menos que o abastecimento de água da Região Metropolitana do Rio de Janeiro.
"Sem essas barragens, o Rio
Paraíba do Sul seria um filete durante uma estiagem severa, como a que vemos
agora, e com certeza a Região Metropolitana do Rio não seria como nós a
conhecemos hoje", diz Paulo Carneiro, pesquisador e professor do
Laboratório de Hidrologia do instituto de pós-graduação em engenharia da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, a Coppe/UFRJ. Carneiro também coordenou
o plano estadual de recursos hídricos.
Hoje esses reservatórios estão com
menos de 10% de sua capacidade - e a água cai rapidamente. A barragem de Jaguari,
a mais cheia do grupo, começou a semana com 9,73% do volume total de água. Na
sexta, o relatório diário do Operador Nacional do Sistema (ONS), responsável
pela gestão do sistema elétrico, apontava que o volume havia caído para 9,01%.
Na Usina de Funil, ao longo da semana o nível foi de 9,45% para 9,17%.
As duas outras represas estão em
situação bem pior. O volume de água em Paraibuna foi de 4,72% para 4,48%. Santa
Branca saiu de 3,86% e foi a 3,13%. Os níveis só não são os piores dentro das
71 usinas com reservatórios monitorados pelo ONS porque há três barragens que
já atingiram o volume zero: Três Irmãos e Ilha Solteira, no Rio Paraná, e
Samuel, no Rio Jamari.
Economia
Segundo Carneiro, além da seca,
duas razões de fundo econômico explicam a perda de água. Pesa o fato de o rio
ser muito demandado não só para abastecimento humano. "Na Bacia do Paraíba
do Sul estão muitas indústrias e atividades do agronegócio que geram cerca de
15% do Produto Interno Bruto do (PIB) do País", diz. A outra razão é o
desmatamento. "Depois que a pecuária ocupou o espaço do café, as margens
perderam a cobertura de floresta, o que reduz o nível de água nos lençóis
freáticos, essenciais para alimentar o rio nas secas."
Para o pesquisador, o uso do
Paraíba precisa ser reavaliado: "As outorgas teriam que ser revistas, as
indústrias deveriam ser incentivadas a investir mais ainda no reuso, as
empresas de saneamento precisam reduzir as perdas de água e a população, ser
educada a economizar", diz ele. "Caso contrário, vamos viver uma
crise depois da outra." (OESP)
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