Conscientização poderia ter preservado os reservatórios,
alerta especialista.
O engenheiro Jerson Kelman é um dos
maiores especialistas em água e energia elétrica do Brasil. Desde 1974 é
professor de Recursos Hídricos na Coppe-UFRJ, instituto de engenharia da
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Participou da criação da Agência
Nacional de Águas (ANA) e foi seu primeiro diretor-presidente. Depois, comandou
a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). Na avaliação dele, a atual seca
é severa e não havia como prevê-la. Mas a estiagem traz uma lição importante:
"Temos de ter planos de contingência. Não se pode improvisar numa
emergência." A seguir, trechos da entrevista concedida ao Estado.
Como o sr. qualifica a atual seca?
Neste ano, em várias partes do
País, temos tido as piores hidrologias do registro histórico - é assim na Bacia
do Piracicaba e na Bacia do São Francisco. Em outras, não é o pior registro,
mas é uma seca grave. Sem dúvida, é um ano atípico.
Era possível se preparar para ela?
O que é razoável esperar de um
administrador público é que se prepare para uma situação crítica que seja igual
ou um pouco pior que a observada no passado. A atual seca, no sistema
Cantareira, por exemplo, é muito pior do que qualquer seca já registrada. Se eu
fosse administrador, não teria me preparado para um evento tão pouco provável
porque estaria tirando recursos de outras áreas igualmente importantes, como
educação e saúde.
Estudos mostra que São Paulo
precisava investir em infraestrutura há anos. Não faltou planejamento?
Eu acho que não devemos ficar na
posição de comentarista de videotape, mas há duas questões diferentes. Se você
quer saber se São Paulo poderia ter investido mais no sistema de segurança
hídrica e em saneamento, a resposta é sim. Agora, se tivesse investido
adequadamente poderia ter evitado a crise? A resposta é não.
O mesmo raciocínio vale para o
setor elétrico?
O setor elétrico sofre de outras
mazelas. Temos muita dificuldade para construir novas usinas. As obras têm
impactos locais e atraem uma certa antipatia da sociedade, do Judiciário, do
Ministério Público. Enquanto a hidrologia é favorável, não se percebe a falta
delas. Você não tem todas as usinas que quer, mas não faz mais porque as que
estão aí produzem. O problema só se revela na seca. A tendência, então, é
culpar apenas São Pedro. Mas o setor elétrico estaria preparado para o mau
humor de São Pedro se não tivéssemos tantas liminares na Justiça barrando as
obras, muitas delas motivadas por órgãos do próprio governo.
O Estado de São Paulo, no caso da
água, e o governo federal, no caso da energia, relutam em falar em economia e
racionamento. É certo sinalizar para a população que está tudo bem?
Não. Está errado. É claro que
quando há falta de água, seja para o abastecimento humano, seja para a geração
de energia, o melhor é que a população tenha consciência disso e faça a sua
parte economizando. Não é pecado pedir ajuda à população para economizar água e
luz. O que tornou isso ruim foi o ambiente na disputa eleitoral. Mas era só
falar: os reservatórios estão vazios, falta água, tanto para o consumo, quanto
para gerar energia elétrica. Vamos usar a água com parcimônia.
A relutância em pedir ajuda pode gerar
problemas no futuro?
Quando você tem recursos escassos e
continua usando despreocupadamente, você semeia um futuro pior. Se a caixa
d'água da sua casa está quase vazia e você continua tomando banho como se
estivesse normal, vai agravar seu sofrimento quando a água acabar. Se
tivéssemos conscientizado a população, feito campanhas de uso parcimonioso de
energia e de água, a situação dos reservatórios estaria melhor.
A chuva voltou, mas especialistas
duvidam que vá chover o suficiente para encher os reservatórios. Caminhando
para o racionamento?
Hoje se retira do sistema
Cantareira 24 metros cúbicos por segundo (m3/s) - menos que o normal, que é 36
m3/s. Se continuarem tirando os mesmos 24 e chover a média - média mesmo -
vamos chegar ao final de abril, quando termina a estação chuvosa, com os
reservatórios tendo 25% da água. É um volume absolutamente insuficiente. É
provável que a situação de carência localizada que se vive hoje em São Paulo se
prolongue por 2015 e vá até 2016. Se chover torrencialmente, é claro, o cenário
muda. Mas o provável é que 2015 seja a prorrogação da situação aflitiva de
hoje.
E na energia?
A situação é bem parecida. As
térmicas devem continuar ligadas, o que mantém um problema em relação não à
falta, mas ao custo da energia. Essas térmicas utilizam combustível caro e
criam uma conta de aproximadamente R$ 15 bilhões a mais por ano, que pesa no
bolso do contribuinte. É um problema econômico.
Para alguns especialistas as
térmicas não podem ficar tanto tempo ligadas e os reservatórios estão muito
baixos - o problema é só econômico a esta altura?
Não quero fazer previsões porque
não fiz simulações. Se tivermos uma situação análoga à da Austrália, com
sucessivos anos de seca, não vai ter jeito: vamos chegar a essa situação. Mas
acho que é cedo para dizer. Não precisamos sair de uma situação em que a
população nem sabe que tem um problema energético - porque a maioria
praticamente não sabe - para um racionamento. Não vivemos uma situação
australiana, com oito anos de seca, para fazer terror agora.
O sr. produziu trabalhos sobre a
seca na Austrália. O que ela tem a ensinar?
Tem a ensinar que quando falta água
ela deve ser utilizada onde é indispensável. Na Austrália, praticamente não
houve queda no PIB agrícola porque a água que era utilizada para produzir arroz
foi priorizada para produzir uvas. O metro cúbico de água na produção de uvas
gera muito mais riqueza do que o usado para irrigar arroz, porque o preço de um
é melhor que o do outro.
Mas como ficaram os arrozeiros?
O que existe na Austrália - e
também na Califórnia - é a possibilidade de se comercializar o direito de uso
da água. O agricultor pode alugar esse direito para outro agricultor, para uma
cidade, para quem quiser. O plantador de arroz deixou de produzir e alugou o
direito para o produtor de uvas. Na falta, a prioridade é o abastecimento
humano. Depois, é preciso fazer a pergunta: onde o metro cúbico é
economicamente mais interessante? Onde faz mais diferença para o PIB? É mais
importante na agricultura? Na energia?
Nunca se pensou em formalizar esse
tipo de mercado no Brasil?
O direito de uso existe. Ninguém
tira água do rio sem autorização, que é a outorga. O que não existe é a
possibilidade de a outorga ser transacionada. Isso leva a uma imobilidade que
não ajuda a economia. Essa possibilidade foi prevista num projeto enviado ao
Congresso em 1999, que deve estar em alguma gaveta. Há uma, digamos, questão
ideológica em relação à água. As pessoas confundem a água do processo produtivo
com o direito humano de ter acesso à água. Qualquer um pode chegar na beira do
rio e encher um copo. Mas no processo produtivo, não. Você precisa
regulamentá-lo.
Qual é a lição da seca atual?
A lição é que temos de ter planos
de contingência. Não se pode improvisar numa emergência. Deixa eu dar um
exemplo: São Paulo agora, na hora da crise, sai em busca de suprimento em
mananciais vizinhos. Escolheu o Paraíba do Sul. Por quê? Porque é a obra mais
simples, que pode ser executada rapidamente. Mas o Paraíba do Sul não é a
melhor escolha. O regime hidrológico do Paraíba do Sul é igual ao do
Piracicaba. Ele também está numa severa seca. O estoque de água está abaixo de
10%. É como um cara ferrado buscar ajuda com outro cara ferrado.
O governo de São Paulo está errado,
então?
Vou explicar. A água do Paraíba do
Sul é recolhida por uma estação de bombeamento - a de Santa Cecília, em Barra
do Piraí - e transposta para uma barragem que gera energia elétrica. Depois de
passar nas turbinas, forma um rio artificial, o Guandu, que abastece a Região
Metropolitana do Rio. Passam pelas turbinas mais de 100 m³/s e o rio só precisa
de 50 m³/s. Mas precisam passar os 100m³/s para diluir o esgoto. Com menos, a
água é tão poluída que teria de ser tratada de maneira sofistica e cara. Para
São Paulo retirar os 5 m³/s que deseja, basta evitar que o esgoto contamine o
Guandu. Isso seria possível com uma obra emergencial de R$ 75 milhões.
Essa obra acabaria com a guerra da
água entre Rio e São Paulo?
Sim. Mas seria apenas um alívio
imediato. A médio prazo, Rio e São Paulo precisam tratar o esgoto. Temos um
padrão de saneamento de Bangladesh porque não quisemos fazer o beabá que os
países de primeiro mundo já fizeram. A longo prazo, São Paulo deve recorrer ao
Rio Juquiá. Hoje a Sabesp já faz uma obra para captar quase 5 m³/s de Juquiá,
mas deveria ter projetado para captar três vezes mais, mesmo que não usasse
tudo no dia a dia. Seria o stand-by para uma emergência. Essa obra é essencial.
Se estivesse pronta, a situação seria outra. Todo o sofrimento de hoje é porque
faltam 12 m³/s e ela garantiria 16. Acho que o governo foi tímido por causa da
CBA, a Companhia Brasileira de Alumínio.
Como assim?
A CBA tem usinas no Juquiá. A
concessão determina que apenas cerca de 4,7 m³/s devem ir para consumo humano.
Tirar mais prejudicaria a empresa. Mas num caso emergencial, não teria outro
jeito. Ocorre que a concessão termina em 2016. No novo contrato, pode-se
formalizar o uso emergencial. Isso é segurança hídrica. Vou contar uma
história. Depois do 11 de Setembro, o prefeito de Nova York reuniu
especialistas e lançou uma discussão. Ninguém imaginava que poderia acontecer
um 11 de Setembro, mas aconteceu. Agora, o que tenho de fazer para desarmar uma
bomba que nem foi lançada? A resposta: a água chegava a Nova York por dois
túneis construídos no início do século 20. Se qualquer um colapsasse, seria o
caos. Era preciso construir o terceiro túnel. Nova York está construindo. É
esse tipo de visão que precisamos no Brasil. (OESP)
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