Grandes obras: impacto e retratos da desigualdade
do acesso à água no Semiárido brasileiro.
Há décadas, os efeitos da seca no Semiárido
brasileiro têm sido pauta no debate de ações governamentais que objetivam sanar
os efeitos da escassez de água para a população que vive na região. Neste
contexto, a açudagem, irrigação e perfuração de poços são algumas das obras que
costumeiramente são promessas de resolução do problema nos tantos municípios
que compõem o Semiárido.
Além destas, há ainda a transposição do Rio São
Francisco cujas obras se arrastam desde 2007 e têm previsão de serem concluídas
no segundo semestre de 2017. A obra que tem extensão de 477 quilômetros e
promete levar água a 390 cidades do agreste e sertão de Pernambuco, Ceará,
Paraíba e Rio Grande do Norte teve início com um orçamento de R$ 4,5 bilhões,
mas já extrapola os R$ 8,2 bilhões.
Na contramão disso, estão as políticas de
convivência com o Semiárido que têm possibilitado o acesso á água potável para
beber e água para produzir a partir de tecnologias simples de captação e
armazenamento de água da chuva. Para falar sobre as ações de acesso á água que
reverberam diretamente na vida das famílias que habitam a região, conversamos
com o Engenheiro Agrônomo e Pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco, João
Suassuna.
Desde meados do século 20, há investimentos
governamentais em ações como construção de açudes para solucionar o problema da
escassez de água no Semiárido. Em sua opinião, esta é uma política eficiente?
O solo do nordeste é cristalino, por isso, quando
chove há escoamento superficial intenso da água e pouca água infiltra no solo. Por
conta dessa característica houve uma corrida para construção de mais de 70 mil
açudes de pequeno, médio e grande porte na região.
Então, água não é o problema! Nós temos o maior
volume d’água represada em regiões semiáridas do mundo. O nosso problema não é
hídrico, o nosso problema é de gestão porque quando chove bem temos água
suficiente e até com sobra.
Aqui não tem planejamento do uso de recursos
hídricos. As represas estão secas e não há plano B para abastecer a população.
O que acontece no semiárido é um ciclo que chamo de “hidrológico”, porque
quando chove as pessoas não se organizam para guardar e gerenciar, aí quando
vem a seca o problema volta. As autoridades colocaram na cabeça que a água é um
bem natural infinito, e, portanto podem utilizar a bel prazer. Não pode ser
encarado dessa forma! Ao contrário, a água é um bem natural finito e tem que
ser usado com muita parcimônia.
Para ter uma ideia de como não se gerencia bem os
recursos hídricos no nordeste, a represa de Curema – localizado no município de
Piancó-PB – tem 600 milhões m³ de água, ele junto com o açude Mãe D’Água tem um
milhão e trezentos mil m³ de água. Curemas está hoje com apenas, 6%
e Mãe D’Água com 10% da capacidade. Faz poucas semanas que em Curema funcionava
uma hidrelétrica que gerava somente 4 kilowatts de energia e utilizava doze
metros cúbicos por segundo – a quantidade de água necessária para gerar essa
energia é quase o que se utiliza em Recife-PE para abastecer a população de 3
milhões de habitantes. A prioridade tem que ser abastecer o povo.
Uma das obras que nos últimos anos recebe grandes
investimentos do governo é a Transposição do Rio São Francisco. Você acredita
que esta será a redenção do Semiárido?
Não há possibilidade de a transposição do rio São
Francisco resolver o problema da estiagem no Semiárido. As pessoas esqueceram
que o Velho Chico é um rio de múltiplos usos, precisa de água para gerar
energia, para alimentar o sistema de irrigação, precisa abastecer as pessoas
que moram nas cidades às margens do rio. Em agosto de 2004 a SBPC – Sociedade
Brasileira para Pesquisa e Ciência reuniu aqui em Recife pesquisadores da
Europa e do Brasil. Participaram 40 dos principais expoentes da hidrologia, e
nesta reunião, a vazão do São Francisco foi pesquisada nas suas minúcias.
Quando se pensava na transposição dos 360 m³ de água que se podem ser
explorados do rio, 325 já estavam regulamentados pela Agência Nacional das
Águas (ANA) e disponíveis para uso e o São Francisco só dispunha de 25 m³ por
segundo de vazão para um projeto que tinha o objetivo de explorar inicialmente
65 m³.
Área de implantação do Matopiba, nos estados do
Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia.
Além da transposição há o projeto do Matopiba que é
uma região de expansão da nossa fronteira agrícola. Para isso, estão sendo
utilizados mais de 100 pivôs centrais naquela região. Um pivô de grande porte
retira do solo 2.600 m³ por hora de água, multiplique isso por cem que é a
quantidade de pivôs que tem irrigando os plantios de soja, milho e feijão nesse
território.
Existe um fenômeno hidrológico chamado fluxo de
base. O que é isso? O São Francisco tem aquífero e o principal deles se chama
Urucuia, que forma grandes lenções freáticos que vão em direção ao leito do
rio. E é este fluxo que é responsável pela vazão que chega ao lago de
Sobradinho no norte da Bahia. Sabe o que está acontecendo? Esses pivôs estão
retirando água desses fluxos. E é daqui que querem também tirar para a
transposição do Rio São Francisco.
É preciso falar da exploração nos fluxos de base
que é a razão do São Francisco está secando e que tem relação com a irrigação
exacerbada no Oeste da Bahia. A irrigação com pivô central está desbalanceando
a vazão do rio que abastece muitas populações do Semiárido.
A quem realmente interessa essas grandes obras?
O pequeno produtor rural não vai ter acesso a essas obras é
nunca! Porque isto está voltado para o grande capital, para as empreiteiras e
para as grandes empresas de produção de sementes. Quer ver quando o produtor
não vai ter vez? É quando o projeto da transposição tiver concluído, chegando
nas represas. O custo da água do São Francisco na ponta do projeto está orçado
em R$ 0,13, a Codevasf entrega aos colonos no Vale do São Francisco a água
custando R$ 0,02 o m³ bombeado. No Vale há muitos produtores que não estão
conseguindo pagar essa água ao valor de R$ 0,02. Como produtores paraibanos,
norte rio grandenses e cearenses vão poder pagar essa água custando quase dez
vezes mais?
Então, o pequeno produtor mesmo rezando para que água do
São Francisco chegue, vai ter que entender que a água terá um custo que ele
talvez não possa pagar.
E sobre as tecnologias de convivência com o Semiárido.
Eu acredito nas tecnologias de convivência. A gente está no
quinto ano de seca e não ouvimos falar em saques, sabe por quê? As tecnologias
que estão postas no campo para o cidadão já permitem que ele e sua família se
fixem na terrinha e resolvam seus problemas ali. Se ele não pratica os saques é
porque ele tem reservas de alimento e água na sua propriedade. Você pode ter
certeza que essas tecnologias funcionam
O Governo Federal anunciou que investirá em obras de
combate à seca, a exemplo da perfuração de poços. Em tempos em que a
convivência com o Semiárido mostra seu potencial, como o Senhor avalia essas
obras de combate?
Eu não acredito nisso por uma razão muito simples: essa é
uma questão de geologia. Nós temos aqui no Semiárido brasileiro 70% de
embasamento cristalino e você só têm duas possibilidades de achar água: nas
fraturas das rochas ou nos aluviões próximos a rios e riachos. As águas dessa
natureza têm pouca vazão e, como se não bastasse essas águas são extremamente
salinizadas e chega ao ponto do gado não beber. Não é simples perfurar um poço
no cristalino e encontrar água, você precisa de um estudo geológico minucioso
para saber onde há a fratura. O povo pensa que é só chegar com a perfuratriz no
meio da caatinga e chegar na água. Não é dessa forma!
O número de insucessos de poços perfurados no Semiárido é
muito grande, inclusive poços que deram água inicialmente e que hoje estão
secos.
Infelizmente, essa ideia da perfuração de poços é
facilmente vendida no Semiárido e muitos políticos ainda conquistam voto com
esse tipo de promessa.
Mas, nosso papel é de denunciar e mostrar que tem que se
parar com isso. Não é dessa forma que você vai resolver o problema da região é
fisiologicamente e geologicamente impossível você resolver dessa forma. Não
interessa para os políticos resolver o teu problema, isso é o que eu chamo de
fazer política com a miséria e o sofrimento de um povo. Eles sobem no palanque
dizendo que vão resolver o problema cavando 50 poços. Isso não vai acontecer
porque não vai ter água!
Neste sentido, podemos dizer que a indústria da seca ainda
existe?
Ela existe e nunca deixará de existir por conta desse pensamento
míope desses homens [políticos]. O que acontece muito no Semiárido é que o
político muitas vezes tem um carro-pipa, aí tem um cidadão precisando de água,
mas não votou nele. Ele sabe que a pessoa necessita da água, mas não abastece a
cisterna. Isso acontece aos montes e a gente precisa acabar com isso, que
também é indústria da seca. É uma coisa cruel, ou você dá água ao cidadão ou
com três dias ele está morto. (ecodebate)
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