Recentemente o Presidente Michel Temer anunciou um
programa de privatizações que inclui a Companhia Estadual de Águas e Esgotos –
CEDAE – do Rio de Janeiro como uma das empresas a serem vendidas para a
iniciativa privadas. É o início de um processo que vem sendo anunciado há algum
tempo: a mercantilização da água através de sua privatização. Devemos nos
perguntar se um bem comum e essencial para manter a vida de todos os seres
vivos do planeta deve ser mercantilizado, valorado economicamente e gerenciado
em sua distribuição por alguns grupos econômicos como uma mercadoria qualquer?
Há algumas décadas tivesse esta pergunta como referência a água, certamente a
resposta seria respondida de forma negativa. Porém, não é isto que observamos
em muitas partes do mundo atualmente, inclusive no Brasil.
O processo de mercantilização da água não é algo novo,
mas vem se tornando uma política governamental com o apoio de organismos
internacionais, a exemplo do Banco Mundial. Basta comprovar como vários
documentos nos fóruns, congressos e encontros mundiais sobre a questão da água
respondem a um dos mais importantes dilemas do nosso tempo: como promover o
acesso da água potável a todos os seres humanos do nosso planeta? A resposta
encontrada nestes documentos, que possuem um número expressivo de países
signatários, estão sempre impressas (de forma nítida e sem subterfúgios
linguísticos) que a água tem um valor econômico e que somente o seu
gerenciamento por parte de grupos privados a tornará mais acessível a todos. Em
seu livro O Manifesto da Água,
Ricardo Petrella (2002, p. 51) ressalta que uma das primeiras afirmações do
documento resultante da Segunda Conferência do Fórum Mundial da Água, realizada
entre 17 e 22 de março de 1999 em Haia, foi que “A água é um recurso econômico
escasso, um bem vital econômico e social. Como petróleo ou qualquer outro recurso
natural, deve ser submetido às leis do mercado e aberto à livre competição.” Ao
nivelar a água como qualquer outro recurso natural, este documento, e muitos
outros produzidos em eventos anteriores e seguintes, buscaram influenciar as
políticas para a gestão do patrimônio hídrico de vários países e direcioná-las
para a sua mercantilização, almejando que este seja um fato que deve ser
encarado com normalidade por parte das populações destas nações.
Com a posse de 12% da água doce do planeta, o Brasil é
detentor de um grande e valioso patrimônio hídrico. Com todo esta “riqueza”
hídrica, o país está na circunferência de interesse das empresas que lucram
cada vez mais com o mercado da água.
O Brasil e suas águas
Foi somente em 1934 que o Brasil teve a sua primeira
lei para o ordenamento do seu patrimônio hídrico. O presidente Getúlio Vargas
sancionou o Código das Águas pelo Decreto 24.643 daquele ano. O governo só
voltou ao tema da água em 1977, com o Decreto 19.367, para instituir o Padrão
de Potabilidade da Água. A constituição de 1988 voltou a tratar do patrimônio
hídrico brasileiro. Entretanto, muitas leis somente seriam regulamentadas anos
mais tarde. Em 1989 o país passou a contar com a Lei de Proteção das Nascentes
e Rios, através do Decreto 7.754, já resultante das preocupações
ambientalistas.
A iniciativa de organizar a gestão da água através das
bacias hidrográficas somente tornou-se lei em 1991, com o Decreto-Lei 8.171, que tratou da
política agrícola e da desertificação. Era o início da Era Neoliberal no Brasil
e o governo Collor defendia a privatização de vários setores da economia. A
palavra privatização tornou-se um mantra para solucionar todos os problemas
econômicos e sociais e a palavra estatal passou a ser sinônimo de ineficiência
e incapacidade para o gerenciamento dos bens públicos. Estava montado o cenário
para que a água começasse a ser vista como mais uma mercadoria, a exemplo de
outros bens naturais. As portas abriam-se para a mercantilização da água em
nosso país.
O Presidente Fernando Henrique Cardoso instituiu,
através do Decreto 9.433, de 1997, a Política Nacional de Recursos Hídricos e
trouxe a ideia de sua valoração econômica pela primeira vez em uma lei
brasileira. Começava, de fato, o caminho para a mercantilização do patrimônio hídrico
brasileiro.
A criação da Agência Nacional de Águas – ANA – através
do Decreto 9.984, no ano 2000, possibilitou administrar o nosso patrimônio
hídrico com uma visão economicista e instituiu a cobrança da água sob a
responsabilidade dos comitês de bacias que viriam a ser criados posteriormente.
Também passou a exigir que cada estado da federação criasse uma Agência
Estadual de Águas para reproduzir o modelo federal. Esta lei citou as palavras
cobrança, ou termos a ela relacionados como compensação financeira,
arrecadação, receitas provenientes e pagamento, por treze vezes em seus
artigos. Todos estes termos estão relacionadas com a valoração econômica da
água. Por outro lado, apenas uma vez a lei citou o termo conservação
qualitativa dos recursos hídricos em seu arcabouço. Tal constatação demonstra
qual era o real interesse na criação da ANA por aquele governo.
Nos últimos anos, o processo de mercantilização da
água no Brasil continuou a ganhar folego nos governos do Presidente Luiz Inácio
Lula da Silva e da Presidenta Dilma Rousseff com o Projeto de Transposição das
Águas do Rio São Francisco e a construção de grandes barragens para a produção
de energia hidroelétrica cujo modelo dominante é a Parceria Público Privada –
PPP.
Privatizar não é a solução
Nem sempre a água foi pensada como um bem comum a qual
todos tem direito. Esta concepção é algo muito recente na história da
humanidade, pois a posse da água sempre foi muito importante para manter a
hegemonia política e militar, principalmente onde ela não é tão abundante. Este
fato a tornou, e ainda a torna em alguns lugares, um bem pertencente a alguns
poucos grupos como forma de manter o domínio absoluto sobre os territórios e
pessoas. Desde os primórdios, agrupamentos humanos perceberam que a posse dos
mananciais era também a posse do espaço territorial e uma arma poderosa para
dobrar os inimigos, vencendo-os pela sede. A propriedade da água sempre
representou um mecanismo para assegurar o poder.
Longe de resolver a questão da sua má
distribuição ou sua má qualidade para o consumo, a mercantilização da água terá
apenas um lado ganhador: os grupos econômicos que por ela são beneficiados. A
distribuição da água não alcançará os que dela necessitam com a privatização de
suas distribuidoras, pois, em muitos casos, estes não terão como pagar o preço
estabelecido pelas empresas para a sua venda. A privatização, isto sim, os
privará do acesso a este bem natural comum. Os menos favorecidos economicamente
serão, mais uma vez, excluídos de um direito essencial à sua sobrevivência.
Posto que a lei do mercado é o lucro máximo para sobrevivência do
empreendimento econômico e o retorno do que foi investido, o preço pago pelas
populações pela água utilizada deverá aumentar de forma sempre crescente,
fazendo com que as populações carentes tenham dificuldade, também crescente,
para obtê-la. Este resultado já é conhecido em algumas localidades onde este
modelo tornou-se uma realidade, causando conflitos entre as populações e as
empresas privadas de distribuição de água, como foi o famoso caso da Bolívia.
Casos de mercantilização da água abundam no Brasil há
décadas, porém eram feitos à revelia do Estado. Atualmente é este que patrocina
a visão monetária sobre a água através da privatização e de políticas de
concessão de administração das empresas distribuidoras de água, retirando delas
o seu caráter público e negando à água como um direito humano inalienável e
caracterizando-a como um bem passível de negociação no mercado como qualquer
outra commodity. A privatização
da CEDAE é apenas o começo. (ecodebate)
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