Usos
da água e desigualdade na oferta precisam ser discutidos, diz especialista.
A
barragem Sete Quedas faz parte do Sistema Cantareira de abastecimento de água
para a capital.
Especialista em recursos
hídricos e sustentabilidade, a arquiteta e urbanista Marussia Whately coordena
desde 2014 a articulação Aliança pelas Águas, iniciativa criada durante a crise
de abastecimento de água em São Paulo. A rede reúne mais de 70 organizações da
sociedade civil. A especialista participará, entre os dias 18 e 23/03/18 em
Brasília, do 8º Fórum Mundial da Água, evento organizado pelo Conselho
Mundial da Água.
Em entrevista à Agência Brasil, Marussia Whately destaca que uma combinação de
fatores que envolvem a disponibilidade da água no país, a forma como vem sendo
usada e as alterações climáticas não permitem que o tema da água seja tratado
de “forma marginal”. A arquiteta é autora do livro Século da Escassez. Uma nova
cultura de cuidado com a água: impasses e desafios, lançado em 2016.
Ela defende o debate e o aprimoramento das
políticas de recursos hídricos para enfrentar tendências como o aumento dos
conflitos por água no Brasil. “É fundamental trazer a questão de que muitos
desses usos [de água] que são citados como conflitantes são autorizados, então
já sendo autorizada por aqueles que são os que têm o domínio da água no Brasil,
ou é o governo federal ou estadual. Como está sendo repartido esse grande
benefício?”, questiona.
Praia no Litoral Sul da Bahia: água salgada representa 97,5% do
total global.
Veja abaixo os principais trechos da entrevista:
Agência Brasil: O
tema da água tem sido tratado como um problema crônico, como as crises de
abastecimento vivenciadas em São Paulo, nos anos de 2014 e 2015, e atualmente
pelo Distrito Federal, além da situação histórica como a do semiárido. Por que
a água é encarada como um problema e o que a trouxe para este patamar que precisa
de solução?
Marussia Whately: A
água doce é um recurso essencial não só para a vida, mas para qualquer
atividade econômica ou produtiva e, em diferentes regiões do planeta, nós temos
um conjunto de fatores que acabam por comprometer a disponibilidade desse
recurso de forma ampla. Tem desde regiões onde a disponibilidade natural já é
menor, como o próprio semiárido brasileiro, mas a situação se agrava quando é
somada à forma como se vem usando a água para diferentes fins, como
abastecimento público, produção de bens, irrigação, abastecimento de animais,
termelétricas, mineração. Todos esses usos são grandes usuários de água.
No caso do Brasil, a maior parte do país, a
quantidade de água não é necessariamente o nosso principal problema, e sim,
cada vez mais, a questão de repartição dos usos e da qualidade da água. Quando
se menciona uma crise, fala-se, principalmente, do contexto de crises urbanas
que é muito relacionada ao abastecimento público e ao planejamento que se faz,
ou não, para garantir que esse recurso esteja disponível em diferentes
situações. Por exemplo, em uma crise por conta de um evento climático extremo,
como foi em São Paulo, que, na verdade, foram acúmulos de vários anos com menos
chuvas e o resultado de dois anos com ainda menos chuva, não necessariamente a
infraestrutura foi planejada, construída, para dar conta disso.
O Brasil é um país que possui muita água doce, porém há uma má
distribuição territorial do recurso.
Agência Brasil: Quando
se fala em segurança hídrica, costuma-se pensar em oferta de água. O que esse
conceito significa e qual a situação do Brasil?
Marussia Whately: O
conceito de segurança hídrica é relativamente novo, dos últimos dez anos. Você
tem diferentes definições e abordagens em relação a esse conceito. Ainda não é
um conceito institucionalizado, tanto do ponto de vista global, como nacional,
não temos uma definição em lei sobre segurança hídrica, isso permite que se
tenham as várias interpretações e aplicações.
No caso do Brasil, nós
desenvolvemos uma pesquisa sobre a governança da água doce, que eu realizei
junto com a professora Estela Neves, da UFRJ [Universidade Federal do Rio de
Janeiro]. Ao analisar marcos federais de saneamento e saúde e a Constituição
Federal, descobrimos que a questão da segurança hídrica aparece muito próxima
da Defesa Civil, mas nós ainda não temos uma legislação que trate do tema.
Vimos que a gente tem uma aproximação com o conceito que a ONU [Organização das
Nações Unidas] tem usado desde 2013, que é garantir água em quantidade
adequada, com qualidade adequada, com acesso tanto físico quanto financeiro,
protegendo as pessoas em relação à poluição, aos desastres naturais, protegendo
os ecossistemas e garantindo um clima de paz e resolução de conflito. Ou
seja, é um conceito bem abrangente e que, no caso, ele teria uma aplicação no
âmbito do município, uma vez que seria essa a instância que poderia integrar as
diferentes frentes relacionadas ao saneamento, à saúde, ao meio ambiente e à
defesa civil.
Agência Brasil: Ao
discutir o problema da água, fala-se menos de temas que também impactam nessa
questão, como saneamento. Por que isso ocorre e quais as consequências desta
percepção?
Marussia Whately: Essa
é uma leitura cada vez menos usual. A questão da água tem ganhado uma
centralidade em diferentes agendas, principalmente porque esse tema está
presente em diversas dimensões da nossa vida. A questão da água vai ganhando
uma complexidade à medida que esse recurso vem ficando mais ameaçado, seja pela
combinação dos fatores que mencionei antes, que envolve a disponibilidade
natural versus a forma como a gente usa versus a forma como a gente polui,
esses fatores combinados com o clima, que está mudando, e as alterações
climáticas são sentidas, principalmente, pela falta de água ou pelo excesso de
água, fica difícil tratar a água de uma forma marginal. A importância dela está
cada vez mais central, onde não só temas como o saneamento, como o direito
humano ao acesso à água e ao saneamento ou mesmo o entendimento sobre a questão
de que diferentes usos necessitam de diferentes qualidades de água, é uma série
de questões que estão mudando rapidamente, não só na percepção como a
importância delas no dia a dia.
Agência Brasil: Durante
a crise hídrica em São Paulo, por exemplo, um dos temas debatidos foi o uso
excessivo da água pela indústria e pelo agronegócio. Como é possível enfrentar
o problema da água olhando também para este consumo?
Marussia Whately: Um
estudo anual produzido pela Agência Nacional de Águas (ANA), que chama
Conjuntura Nacional de Recursos Hídricos, talvez seja o documento mais completo
sobre água e recursos hídricos oficiais que temos no Brasil. Uma coisa que o
estudo mostra é que considerando tudo que tem de uso hoje de autorização para a
irrigação mais o que tem de uso para abastecimento animal, mais para o que tem
de uso para abastecimento público, ele vai fazendo uma análise. Hoje, em torno
de mais de 50% da água retirada dos corpos d’água do Brasil são para irrigação.
A diferença é que com o uso como irrigação, retira-se uma quantidade de água e
com uma taxa de retorno daquela água muito pequena, porque ele vai irrigar, vai
fazer a planta crescer e aquela água não vai voltar para aquele lugar. É
diferente, por exemplo, dessa metodologia da ANA, que fala que o abastecimento
público tem uma taxa de retorno alta, porque vai utilizar água e vai devolver
essa água em forma de esgoto.
Considerando essa
metodologia, a irrigação e a produção animal para proteína, juntas seriam
responsáveis hoje por quase 80% do consumo de água no Brasil. Em relação à
retirada, as duas juntas dão em torno de 60%. Toda a água que é utilizada para
o abastecimento público estaria em torno de 20% a 25% do uso da água no Brasil
hoje.
A gente costuma ter um pouco
essa leitura de que existem crises de água, então o problema é o excesso de
consumo residencial naquele lugar, mas não necessariamente essa é uma leitura
do que existe de disponibilidade de água no país como um todo. Uma vez que
são dadas as outorgas de uso pelas diferentes instâncias, isso ocorre de forma
muito fragmentada tendo em vista a desigualdade dessa distribuição e do quanto
se tem uma discussão efetiva dessas prioridades de uso. Por exemplo, o setor de
irrigação pode consumir menos água ou consumir de forma muito mais inteligente
do que a gente tem hoje em diferentes lugares do Brasil, não necessariamente
toda a irrigação no Brasil está errada do ponto de vista de consumo de água,
mas a gente tem uma grande possibilidade de melhorar.
Agência Brasil: Um
levantamento da Comissão Pastoral da Terra (CPT) indica o aumento dos conflitos
por água no Brasil. Segundo a entidade, de 2011 a 2015, os casos passaram de 69
para 172, com destaque para os conflitos relacionados à apropriação particular
da água e o uso e preservação. Um dos casos mais recentes ocorreu em
Correntina, na Bahia, que tem tido protestos em defesa da água em contraposição
à exploração feita por empresas do agronegócio ali instaladas. O que explica o
aumento desses conflitos e como solucioná-los?
Marussia Whately: Esse
mapeamento apresenta uma tendência, que infelizmente não é só uma tendência do
Brasil, mas global. A gente já ouviu muito sobre conflitos entre países por
conta de água, mas o que temos de tendências recentes é de conflito dentro de
países, entre regiões. Aqui o que nós começamos a ver não são exatamente
conflitos entre regiões, entre estados, mas conflitos entre diferentes usos da
água no mesmo território e, normalmente, de grandes usuários impactando
pequenos usuários.
Na verdade, é uma amostragem
daquilo que pode acontecer de fato em diferentes regiões e acompanha uma
preocupação de que nós temos no Brasil, teoricamente, legislações, ferramentas
e instrumentos que deveriam promover a resolução desses conflitos.
Do ponto de vista dos
instrumentos, da outorga, teoricamente, esses usos estão autorizados. Tem
muitos usos irregulares, obviamente, mas uma mineradora, por exemplo, o mínimo
que deve ter é uma outorga. Precisamos melhorar e aprimorar os
instrumentos que já temos, inclusive trazendo aprendizados sobre o que eles podem
ter de aprimoramento, mas é fundamental trazer a questão de que muitos desses
usos que são citados como conflitantes são usos autorizados, então já sendo
autorizada por aqueles que são os que tem o domínio da água no Brasil, então ou
é o governo federal ou estadual. Como está sendo repartido esse grande
benefício?
Agência Brasil: Como
você avalia a evolução do debate da água no Brasil? Há avanços na compreensão
da água como um bem coletivo?
Marussia Whately: Temos
20 anos de políticas de gestão de recursos hídricos com todo o esforço de
implementação, mas que merece uma reflexão, inclusive, para aprimorar várias
ferramentas e fortalecer novamente esse sistema no sentido que ele exerça um
papel mais central da definição de políticas públicas de recursos hídricos.
Na parte de saneamento,
infelizmente, a gente avançou muito menos do que seria o desejável, é uma área
urgente para o Brasil, da maior importância, uma das nossas maiores
deficiências em termos de serviços e que teve não só muitos avanços aquém do
esperado do ponto de vista da infraestrutura, mas que tem tendências de sofrer
grandes retrocessos do ponto de vista de gestão.
Agência Brasil: Qual
papel deve cumprir o 8º Fórum Mundial da Água? Qual o significado de ele ser
realizado no Brasil?
Marussia Whately: O
Fórum Mundial da Água não é uma conferência global da água do ponto de vista da
ONU, mas é um evento que reforça a importância de se ter essa discussão, esse
tipo de espaço nas Nações Unidas por conta do envolvimento e da criação de
compromissos vinculantes entre os países. Independentemente disso, ele é um
evento superimportante da agenda da água, que ocorre a cada três anos em um
país e agora este ano no Brasil. Acho que o evento vai trazer bastante
visibilidade para o tema, vai criar bastante pauta, agenda e pode ser uma
oportunidade para a gente avançar em algumas questões, por exemplo, discutir
saneamento no Brasil.
Como contraponto existe o Fórum Alternativo
Mundial da Água, uma grande articulação de várias organizações e movimentos que
não reconhecem o Fórum Mundial da Água como espaço de representação desse ponto
de vista. Eles veem como um espaço privado e de fato tem questões. Para
participar do fórum, da parte de debates, tem que pagar inscrição. Além disso,
o que o Fórum Mundial da Água gera de produto é uma declaração, mas não
necessariamente gera compromisso, como geraria um acordo a partir da ONU, que
os países signatários se comprometem a cumprir.
Distribuição dos recursos
hídricos e densidade demográfica do Brasil. (ecodebate)