Matéria de
Eliana Ros, traduzida por Inês Castilhos e bastante divulgada, ocorre asseverar
que em 2030, a população mundial deverá ser de uns 8,5 bilhões de pessoas e, se
a humanidade continuar a viver do mesmo modo, o déficit de água doce do planeta
chegará a 40%, diz informe das Nações Unidas sobre os recursos hídricos
divulgado em Nova Deli.
Todo o
nosso sistema vital e econômico gira em torno de um recurso natural limitado.
Sua maximização e gestão de forma eficaz constitui o grande desafio do século
XXI.
Cada vez
que abrimos a torneira, acontece um pequeno milagre. Por trás deste gesto tão
cotidiano há muito mais que um jorro de água em estado líquido. A água é o
sistema sanguíneo deste planeta, um ciclo natural sobre o qual a atividade
humana exerce enorme pressão.
Ocorre
observar que “a quantidade de água doce na Terra hoje é praticamente a mesma
que na época em que o imperador César conduzia o império romano”. Mas nos
últimos 2000 anos, a população pulou de 200 milhões para cerca de 7,2 bilhões,
e a economia mundial cresceu ainda mais rapidamente.
“A
conjunção da demanda de alimentos, energia, bens de consumo e água para este
grande empreendimento humano requereu um grande controle sobre a água”, resume
Sandra Postel, diretora da organização norte-americana “Global Water Policy
Project”.
“Há muito
pouca água no planeta azul”, constata Elias Fereres, catedrático da
Universidade de Córdoba que exerceu numerosos cargos relacionados com a
agricultura e a ecologia. Fereres refere-se a que, embora 70% da superfície da
Terra esteja coberta de água, somente cerca de 2% é água doce, além daquela
fixada como gelo nas calotas polares e geleiras.
Sobre esse
2% não apenas repousa nossa principal fonte de vida, mas também o motor do
mundo desenvolvido. “A água tem tanto valor que não tem preço, e a chave do seu
uso está em obter o máximo aproveitamento sem aumentar as desigualdades
econômicas, sociais e ambientais”, sustenta o professor.
“O avanço
da população global e do crescimento econômico ocorrido nos anos cinquenta
deve-se em grande parte à engenharia de água, com barragens para gerar
reservatórios, canais para remoção e bombas para extração do subsolo. Desde
1950, o número de barragens passou de 5 mil a 50 mil. Construíram-se uma média
de duas por dia durante meio século.
“Na maior
parte do mundo, a água já não circula seguindo fisicamente o processo natural,
mas de acordo com a vontade do homem”, sublinha Postel. São dados constatáveis
e perfeitamente conectados com a realidade. Não existe nenhuma motivação em
fomentar postura alarmista ou catastrofista na opinião pública.
No
século passado, essas infraestruturas permitiram cobrir as necessidades da
agricultura, que consome 70% da água doce e a indústria que representa 20% O
uso doméstico consome os 10% restantes, em grande parte do globo.
Mas o
aumento da demanda, devido em grande medida ao desenvolvimento dos países
emergentes, está rompendo um equilíbrio que já é muito precário. “Existe a
previsão de que em 2030 o mundo terá de confrontar-se com um déficit de 40% de
água em uma situação climática em que tudo continua igual”, alerta o último
informe da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre recursos hídricos.
O autor
Richard Connor, lamenta a “escassa importância” que os governos outorgam à
água, espalhando a concepção de que se trata de um bem comum inesgotável. “É um
serviço essencial para o crescimento, mas as pessoas não têm essa percepção. Ao
invés disso, concebem a energia como fator econômico de primeira ordem e
inclusive geopolítico, para a segurança de um país, razão pela qual recebe
muito mais apoio. Relegar a água na ação política é um erro que se paga caro e
compromete o desenvolvimento”, argumenta.
Os
acontecimentos deram razão a aqueles cientistas que prenunciaram que “a água
será para o século XXI o que o petróleo foi para o XX”. Se o petróleo é
cobiçado a ponto de provocar conflitos bélicos, isso se deve a que suas
reservas são finitas e não estão universalizadas. O mesmo sucede com a água
doce, uma vez alcançado um volume de demanda superior a sua capacidade de
regeneração, o que se define como estresse hídrico.
Alexandra
Taithe, responsável pela Fundação para a Investigação Estratégica e
especialista na interação entre água e energia, traça um panorama inquietante.
“Nos países do Sul e do Leste do Mediterrâneo”, adverte, “os poderes públicos
optaram por soluções consistentes para aumentar a água disponível. Esta
política, que recorreu tanto à dessalinização da água do mar como à exploração
dos aqüíferos ou transferências massivas, tem um custo energético muito
elevado.”
Segundo
seus cálculos, em 2025 a demanda de eletricidade para abastecimento de água
destes países representará cerca de 20% do total do que precisam os estados.
Hoje são estimados em 10%. A dessalinização, às vezes apresentada como uma
panaceia para combater a escassez de água, é o sistema que mais energia devora.
A Arábia Saudita, o país com maior capacidade de produção, gera 5,5 milhões de
metros cúbicos por dia. Pois bem, para obter essa quantidade, consome o
equivalente a 350 mil barris de petróleo diário.
Por sua
vez, a fabricação de eletricidade e a extração de combustíveis fósseis precisam
de grandes quantidades de água. Por exemplo, segundo Taithe, na França 60% do
caudal dos rios destina-se ao processo de esfriamento das centrais térmicas e
nucleares.
É preciso
dizer que a França é o segundo país em produção de energia atômica do mundo e
que esta água que em princípio não contaminada, é devolvida às bacias
hidrográficas e aos lago com temperaturas superiores, o que favorece a
proliferação de algas e reduz a população de peixes. No ciclo de água, tudo
está inter-relacionado. Qualquer manipulação da ordem natural tem efeitos
colaterais.
No fundo é
isto que frequentemente se exprime como complexidade ecossistêmica e que não
tem sido minimamente considerada no caso de transgênicos e agrotóxicos.
A extração
de gás das camadas mais profundas por meio da fraturação hidráulica, o
“fracking”, é problemática. Graças a essa tecnologia, os Estados Unidos
alavancaram sua economia e mudaram o equilíbrio geopolítico, posto que já não
dependem do petróleo árabe.
Mas, para
perfurar cada um dos mais de 500 mil poços em atividade, muitos dos quais em
zonas de estresse hídrico, precisam de 75 a 180 milhões de litros de água,
misturada com uns 36 quilos de produtos químicos, alguns dos quais
cancerígenos.
Sacrificamos
a água e a saúde no altar da economia. Em escala mundial, os dados sobre o
aumento da demanda são estonteantes. No horizonte de 2050, enquanto a demanda
de água doce crescerá 55%, a de eletricidade avançará 70%. E isso, tendo em
conta que o acesso não é universal.
Cerca de
800 milhões de pessoas vivem alijadas de fonte de água limpa e 1,3 bilhão
carecem de conexão elétrica. Para Taithe, a crescente necessidade de energia
para obter água supõe “um obstáculo de primeira ordem para o desenvolvimento de
muitos países e um risco para sua segurança energética.”
Até que ponto
a água pode levar a uma escalada bélica? Taithe recorda que para os povos esse
recurso “é algo irracional” que historicamente tem originado tensões e continua
sendo “centro de tensão diplomática”. A seu ver, os Estados têm mais interesse
em cooperar, assinaram 250 tratados multinacionais, mas outros especialistas
preveem que “as guerras do futuro serão por água”.
No fundo
poderia se argumentar com vários exemplos que isto já ocorre. Mas não é este o
cerne do tema em questão.
Para
Connor, esse futuro já chegou. Ele sustenta que a grande seca na região da
antiga Mesopotâmia entre 2006 e 2009, que provocou uma subida radical no preço
do trigo, da farinha e do pão, teve um papel-chave na guerra da Síria. Como
consequência da seca, 1,5 milhão de pessoas emigraram das zonas rurais para
cidades já estavam submetidas a fortes pressões, quando começaram os protestos
contra Bashar el Assad.
Connor
observa a mesma relação de causa-efeito entre a seca, acompanhada de grandes
incêndios, que assolou a Rússia em 2010 e as primaveras árabes. “A Rússia é o
grande provedor de trigo dos países árabes, e como pode apenas exportar, o
preço da farinha duplicou, o que gerou descontentamento social”, resume. Sem
esse mal-estar, teriam as mobilizações pró-democracia recebido tanto apoio?
Connor acredita que não.
Na margem
sul do Mediterrâneo, os focos de tensão se multiplicam. A construção, na
Etiópia, da grande barragem do Renascimento causou um confronto com o Egito,
que se opõe à obra porque garante que afetará o fluxo do Nilo e agravará seus
problemas de abastecimento.
Uruguai e
Argentina tiveram séria contenda por questões de barragens e de empreendimentos
agroflorestais. A história ambiental da civilização humana demonstra várias
influências de efemérides que geram rupturas na trajetória evolucionista de
várias espécies.
“Nos poucos
lugares onde ainda se podem construir reservatórios, o impacto ecológico é
demasiado negativo. É necessário pensar outras soluções”, opina Fereres. Na
Índia e no nordeste da China os agricultores encontraram uma solução
alternativa na extração de água do subsolo.
Uma
atividade subvencionada que levou o progresso a muitas regiões, mas não sem
consequências. A venda de bombas elétricas a diesel para extrair água disparou
nos últimos anos, calculando-se que na China existam 20 milhões em
funcionamento, e na Índia, 19 milhões, o que eleva o consumo de energia. Em
algumas regiões, representa entre 35% e 45% do total.
Taithe
relaciona esse fenômeno com “os gigantescos cortes de eletricidade que, em
julho de 2012, deixaram sem energia 670 milhões de pessoas no nordeste da
Índia”. Assinala que neste ano as monções foram menos chuvosas, e as
autoridades cederam à pressão dos irrigantes para ampliar as cotas, para áreas
onde a água se encontra armazenada em maiores profundidades.
De acordo
com o relatório da ONU, 20% dos aquíferos da Terra estão sendo superexplorados.
“Estamos consumindo hoje a água de amanhã”, previne Postel.
Ao aumento
da população e à pressão que exercem os países emergentes sobre as reservas de
água se adiciona ao aquecimento global do planeta. “Em períodos de grandes
inundações os recursos hídricos parecem não ter fim, mas depois vêm grandes
secas, e a escassez volta a ser o grande motivo de preocupação”.
Essa
dicotomia está se acentuando na região mediterrânea. Essa é a mudança
climática!, descreve Maitê Guardiola, engenheira geóloga especializada em
aproveitamento da água com ampla experiência em projetos humanitários.
No Brasil,
que possui a maior bacia hídrica do mundo, na Amazônia, a falta de água tem
obrigada a racionar o fornecimento em São Paulo, cidade que ilustra o problema
causado pelo crescimento descontrolado das periferias.
Segundo
o informe da ONU, “o aumento das pessoas sem acesso à água e ao saneamento nas
áreas urbanas está diretamente relacionado ao rápido crescimento dos bairros
marginais nos países em vias de desenvolvimento. Essa população, que se
aproximará de 900 milhões de pessoas em 2020, é mais vulnerável ao impacto dos
fenômenos extremos”.
Cientistas
do porte de Stephen Hawking apostam em “colonizar” outros planetas, ele afirma
que dentro de cem anos a espécie humana enfrentará a extinção devido ao
“envelhecimento de um mundo ameaçado pelo aumento de habitantes e limitação de
recursos“. Os menos catastrofistas optam por racionalizar o consumo.
“Há água
suficiente para satisfazer as crescentes necessidades do mundo, mas não sem
mudar a forma de geri-la”, sustenta o informe da ONU, que entre outras medidas,
reclama um marco legal universal para administrar este recurso de forma mais
equitativa e respeitando os fluxos ecológicos.
Para Connor
e Fereres, a chave está em poupar por meio de sistemas de irrigação
inteligentes e culturas adequadas a cada região. Em sua opinião, para
considerar soluções inovadoras, tais como a remoção de água do ar ou a obtenção
de sementes que precisem apenas de rega, faltam “entre 20 e 30 anos de
pesquisa”. Maitê Guardiola, por sua vez, enfatiza a reutilização de águas
residuais tratadas. De acordo com essa especialista, se destinadas à irrigação,
isso “significaria uma redução de 30% da água para a agricultura” na Espanha.
Fereres
defende também uma “mudança de dieta”, com menos proteínas, exemplificando que
um quilo de carne de porco representa um consumo de três quilos de grãos, como
uma forma “de reduzir a demanda hídrica”. E promove uma atitude militante
contra a água engarrafada. “A sociedade gasta muito dinheiro purificando a água
para que chegue às casas de forma potável”.
O ator Matt
Damon trata de sensibilizar a opinião pública com ações tipo derrubar um balde
de água do vaso sanitário, enquanto se dirige à câmera e assevera, “para
aqueles que tem restrições, é válido lembrar de que a água nos banheiros do
ocidente é mais limpa do que aquela à qual tem acesso a maioria das pessoas nos
países em desenvolvimento“. Por meio de sua Organização Não governamental (ONG)
“Water.org”, é uma das poucas celebridades a combater a crise da água e
profundas desigualdades que acarreta.
“A
água não é cara o suficiente. Purificar e canalizar tem um custo muito mais
alto do que o que se paga na conta de consumo, por isso as pessoas não
valorizam adequadamente”, censura Connor. Na Espanha, o consumo médio é de 142
litros por pessoa/dia, mas segundo Guardiola, se estima que são perdidas, cerca
de 17,5% da água distribuída. Na Alemanha, esse percentual é de 5%. No Brasil,
dados indicam que giram em torno de 38% em média, mas poderia ser um valor
arredondado para 40% sem muito risco de ocorrer inverdades.
Se
implementadas, não está claro que todas essas medidas compensariam o aumento da
demanda. Um futuro sem água, no qual os humanos se vejam obrigados a abandonar
a Terra, não está longe do que vislumbra o físico Stephan Hawking. “Devemos nos
antecipar às ameaças e ter um plano”, insiste o famoso astrofísico. E por que
não mudar, do planeta azul pelo planeta vermelho. Segundo um estudo da
Universidade do Novo México, Marte poderia ter grandes reservas de água em seu
interior. (ecodebate)
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