No
encerramento do Fama, participantes marcharam em protesto contra o controle
privado e a mercantilização da água.
Cerca
de dois quilômetros em linha reta separavam os participantes do Fórum
Alternativo Mundial da Água (Fama 2018) do 8º Fórum Mundial das Águas (FMA),
realizados simultaneamente em Brasília. Se, geograficamente, a distância entre
esses dois pontos era pequena, no campo das ideias havia um abismo estabelecido
pela resposta a uma pergunta: Afinal, de quem é a água? De um lado, havia um
fórum popular com ribeirinhos, indígenas, pescadores, marisqueiros,
quilombolas, ativistas, ambientalistas, acadêmicos, estudantes, do Brasil e de
fora dele, tomados como “povos do mundo inteiro”, que bradavam que a água é de
todos, é um bem comum, não uma mercadoria. Do outro, estavam o que eles
identificavam como um grande balcão de negócios, no chamado fórum das
corporações que discutia tecnologias e modelos que, na prática, visam reduzir
direitos, controlar o acesso para capturar e comercializar a água no mundo.
Segundo
o cálculo dos organizadores, sete mil pessoas estiveram no Fama 2018, sendo que
quatro mil montaram acampamento no Pavilhão de Exposições do Parque da Cidade.
Juntos, lançaram uma carta em que denunciam as corporações que querem exercer o
controle da água por meio da privatização, mercantilização e titularização.
Para isso, alertam, essas empresas usam de estratégias que vão desde
“violência direta até formas de captura corporativa de governos, parlamentos,
judiciários, agências reguladoras e demais estruturas jurídico-institucionais
para atuação em favor dos interesses do capital”. Segundo os participantes, o
resultado é a invasão, apropriação e o controle político e econômico dos
territórios, das nascentes, rios e reservatórios, para atender os interesses do
agronegócio, hidronegócio, indústria extrativa, mineração, especulação
imobiliária e geração de energia hidroelétrica. Denunciam, ainda, que o mercado
de bebida deseja controlar os aquíferos e o abastecimento de água e esgotamento
sanitário.
Durante
o Fórum, foi também lançado uma carta em que lideranças de povos originários e
de populações e comunidades tradicionais denunciam as práticas indevidas que
levam à contaminação, como os rejeitos tóxicos das atividades de mineração, o
derramamento de esgotos não tratados, o desmatamento e a criação de gado
impetradas por fazendeiros, empresários, poderes públicos e o capital. “Para
nós, sem terra não há água, sem água não há semente, que é fonte da vida”,
salientam os indígenas.
Protetores ameaçados
O
Fama ressaltou a voz das populações do campo e da cidade que enfrentam as
consequências do modelo de desenvolvimento que se apropria dos recursos
naturais. Presente ao evento, Biko Rodrigues, da Coordenação Nacional de
Quilombolas (Conaq), advoga que a disputa pela água caminha juntamente com a
luta pela demarcação dos territórios tradicionais dos quilombolas. Ele denuncia
que a apropriação dos recursos hídricos por parte dos fazendeiros impede que os
quilombolas acessem esse recurso. “Precisamos que nossos territórios sejam
regularizados para cuidar e preservar a água, para sermos guardiões da
biodiversidade e de toda essa riqueza que temos no país”, afirmou à Radis.
Números da Conaq indicam que mais de seis mil comunidades aguardam o
reconhecimento das suas terras no Brasil, em um total de 16 milhões de pessoas.
Já
o líder indígena Douglas Krenak contou à reportagem que seu povo teve o curso
da vida alterado pelo maior desastre ambiental do país: o rompimento da barragem
de Fundão, operada pela Samarco, em novembro de 2015. Para Douglas, é um
equívoco falar que houve um acidente. “Houve um crime. Meu povo não pode mais
exercer a vida cotidiana. Há dois anos que não comemos peixe, não batizamos nem
realizamos nossos rituais sagrados. Fomos impedidos de viver”, declarou. O Rio
Doce, chamado de “Watu”, tem uma dimensão espiritual e simbólica na vida do
povo Krenak. Por isso, ele considera todas as propostas de recuperação e
revitalização do rio insuficientes. “É um dano irreparável. O rio não é só
subsistência. Ele vai além de água: ele é cura, é sagrado”.
Antes
do desastre, as plantas medicinais é que davam o curso dos tratamentos na
aldeia. Agora, nem isso mais os Krenak têm para atender os que sofrem com
problemas de pele ou demais transtornos. Douglas identifica, em seu povo, os
mesmos problemas constatados por pesquisa do Instituto Saúde e Sustentabilidade
(ISS) na população atingida pelo desastre: depressão, dengue, problemas
respiratórios, falta de ar e manchas na pele, entre outros sinais e sintomas.
No lançamento do estudo, em março de 2018, a coordenadora Evangelina Vormmitag
explicou que os efeitos dessa tragédia para a saúde são tão amplos que a
literatura científica internacional não registra outro desastre com essa
magnitude e essas características, envolvendo tantos fatores — água, ar, solo e
animais contaminados, danos emocionais e mentais — na proporção do que ocorreu
com o Rio Doce.
Na
visão de Douglas, nada disso teria acontecido se o rio e os povos originários
tivessem sido respeitados. “Temos que impedir que essas empresas tenham o poder
de controlar territórios e recursos naturais e minerais. Temos que demarcar os
territórios das populações originárias e tradicionais ao longo de todo o rio.
Porque somos nós que preservamos e somos os protetores fundamentais dos
recursos da natureza”, diz.
Na
Ilha de Maré, na Bahia, a disputa entre os grandes empreendimentos e a
população local envolve o direito à água. “Há poucos dias, o governador disse
que a gente não pode ser um entrave para o desenvolvimento do estado ”, relatou
Eliete Paraguassu, representante do Movimento dos Pescadores e Pescadoras
Artesanais. Eliete contou à Radis que o projeto de construção de um novo
terminal industrial da Braskem vai aumentar a poluição na Baía de
Todos-os-Santos. Segundo Eliete, a contaminação com metais pesados, como chumbo
e mercúrio, já ocorre a partir da atividade intensiva da petroquímica do Porto
de Aratu. Para ela, o direito dos povos é desrespeitado por conta do racismo ambiental.
“É um racismo com a cor da pele dessas pessoas. Tudo o que não presta é jogado
nessas comunidades. Todos os empreendimentos são levados para comunidades
tradicionais, quilombolas, de pesca, indígenas e ribeirinhas. É um povo menos
favorecido, é um povo preto”, denuncia.
Ocupação ordenada
O
aquífero de Alter do Chão, como é conhecido o Sistema Aquífero Grande Amazônia
(Saga), é o maior reservatório de água potável do mundo. Esse lago gigante que
fica no subsolo do Amazonas, Pará e Amapá é uma reserva estratégica para o
país, e também está sendo ameaçado pela exploração e contaminação de suas
águas. Luciana Cordeiro, professora de Direito da Universidade de Campinas
(Unicamp), disse que a área é de grande interesse comercial e há riscos diretos
que podem impactar na qualidade da água. “Alter do Chão pode se tornar uma área
de interesse para a especulação imobiliária, com a construção de grandes
resorts, e o estabelecimento de indústrias envasadoras, que visam exportar água
para outros países. Isso é um perigo”, indicou.
Luciana
contou à Radis que, num evento recente, um pesquisador sugeriu a transferência
de indústrias paulistas para a região Norte, com o intuito de superar a crise
de água que afeta o estado. “É um absurdo. Alter não pode receber indústrias
poluentes. Esse aquífero tem formação rochosa e é bem poroso. Nós precisamos
saber qual é essa vulnerabilidade antes de lotear toda essa região”. Por isso,
ela recomenda muita cautela na exploração desse solo. “Todo mundo está olhando
esse potencial. Mas é preciso proteger a área para preservar as águas e os
territórios. Os municípios devem fazer um zoneamento correto e autorizar apenas
atividades de menor impacto possível”, salientou.
Quem
vive em Alter do Chão acompanha as mudanças e sente na pele os problemas
decorrentes do desrespeito aos recursos naturais. “Primeiro, veio o
desmatamento de matas ciliares, nos igarapés, onde estão nossas nascentes.
Depois a ocupação e, com ela, a poluição como resultado das grandes
construções. Onde isso vai parar?”, perguntou à reportagem Leila Borari. Muitas
famílias indígenas já deixaram o lugar, mas a casa onde Leila cresceu, às
margens do rio Tapajós, ainda está lá. “Minha mãe resiste, eu resisto. Tem que
ter resistência”, disse. Leila conta que a ocupação sem controle altera o meio
ambiente e o modo de vida das populações locais. Ela aponta também os vários
problemas de saúde decorrentes do processo, como o surto de hepatite que
ocorreu em 2015. “Já peguei água do rio para beber e tomar banho. Naquele tempo
não havia água encanada. Hoje tudo mudou. Na margem do Lago Verde não tem
tratamento de esgoto. Ao lado da minha casa, tem um prédio que não cuida das
suas fossas e descarrega tudo no rio. Como viver desse jeito?”, pergunta.
Para
Leila, o processo de destruição só vai ser barrado com ações ordenadas e
voltadas para os cerca de seis mil habitantes de Alter do Chão. “Temos uma
vegetação muito rara, a Savana amazônica, com plantas e animais endêmicos
[únicos] que só existem em Alter. Os grupos avançam, desmatam e vendem a terra.
A especulação imobiliária é muito grande na região”, denuncia. Segundo ela, na
aldeia Borari vivem 400 famílias, entre indígenas e não indígenas. “De forma
cotidiana, a nossa existência está sendo praticamente negada, não só pela população
não indígena, mas também pelos governos”.
O
Cerrado é outro berço das águas que vem sendo sistematicamente agredido pela
consolidação do agronegócio. O conjunto de negócios que envolve a produção
agrícola e pecuária está sendo determinante para alterar o ecossistema local.
Para fazer frente à devastação e mostrar a importância desse bioma, em 2016 foi
lançada a Campanha em Defesa do Cerrado. A coordenadora do Projeto de
Articulação do Cerrado Isolete Wichinieski disse que o agronegócio e o capital
suplantaram o direito dos povos e comunidades. “O Cerrado é colocado como o
celeiro do mundo e facilita o processo de expansão do capital no campo. Parece
que ali não tem gente. Precisamos mostrar que o Cerrado tem uma identidade, uma
cultura, um jeito de produzir, um modo de vida diferente. E há uma forte
relação dos povos tradicionais e comunidades com seu território. Eles é que são
os guardiões desse bioma”, declarou, em conversa com a reportagem.
De
acordo com Isolete, o Cerrado ocupa 36% do território brasileiro entre áreas de
transição e contínuas. O avanço do agronegócio, diz, tem um impacto grande na
gestão do território. “Junto com ele vem a grilagem das terras e a ação do
governo, que não regulariza essas terras e tenta fazer uma regularização
individual, diminuindo a força do coletivo”. Uma das coordenadoras da Comissão
Pastoral da Terra (CPT), ela destaca que o agronegócio não permite que a
água se infiltre no solo como acontece com a vegetação nativa. “O Cerrado é
tido como uma floresta invertida porque sua vegetação tem a raiz profunda e faz
com que a água penetre no subsolo e seja armazenada nos aquíferos. Só que soja,
algodão e cana de açúcar têm raízes frágeis, e não acumulam água. A soja pode
até ser verde, mas seu plantio tira essa importante função do Cerrado”,
advertiu. Segundo ela, também há perdas na forma de ocupação da terra. “O
agronegócio ocupa a chapada, área de recarga dos aquíferos. As comunidades
estão nas áreas de descarga e conseguem manter o equilíbrio desse habitat. Por
ano somem 10 rios da região. Várias espécies nativas já foram extintas. Tudo
está sendo apropriado para a produção”, avaliou.
Isolete
criticou a visão de que o Cerrado é um lugar adequado para a produção agrícola,
já que tem terras planas, que facilitam o desempenho do maquinário, e água em
abundância. “A água é finita, pode acabar. Esse modo de produção retira grande
quantidade de água dos rios para fazer todo o processo de irrigação, diminuindo
a vazão dos rios e impactando fortemente a vida das comunidades”, alertou. “As
empresas fazem poços profundos e retiram água do lençol freático e dos
aquíferos. É um ciclo predatório”, sentenciou. Outro problema que aponta se
refere ao plantio de soja, que deixa o solo “solto”, fazendo com que seus
folículos entrem nos rios, que acabam assoreados e com menos água.
Conflitos pela água
As
diferentes visões sobre o uso e a gestão da água vêm acirrando os conflitos no
campo. De acordo com a pesquisa “Conflitos no Campo Brasil 2016”, realizada
pela CPT, o número de embates por água no país cresceu 150% entre 2011 e 2016,
saltando de 69 para 172. Aumentou também o número de pessoas envolvidas nesses
conflitos. Se, em 2007, foram 164 mil, nove anos depois, em 2016, esse total
foi de 222 mil, um acréscimo de 35,8%. O relatório mostra que, entre 2002 e
2010, havia oscilação. De 2011 para cá, aumento. Eram 28 mil famílias
envolvidas em 69 conflitos, nesse ano. O número em 2016 foi de 44 mil famílias,
envolvidas em 172 conflitos. Segundo a CPT, a mineração responde por mais da
metade dos problemas (51,7%) e as hidrelétricas, por 23,2%.
Mauricio
Correa, da Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais no Estado da Bahia
(AATR-BA), observou que o aumento da disputa pela água é fruto de uma política
de Estado que privilegia as empresas frente às populações em seus territórios.
Como exemplo, ele citou a Bahia, quarto maior produtor de minério do Brasil. “A
área do agronegócio aumentou 43% entre 2006 e 2015”, exemplificou. Ele apontou
que a água é chamariz e orienta a ocupação das empresas. “Elas divulgam no
exterior que estão em cima de um aquífero e que isso é um fator positivo para a
produção”, relatou. O ativista reforça que as empresas esgotam os recursos em
um determinado lugar e partem para outras áreas para recomeçar esse ciclo. Além
disso, ele identifica que muitas empresas têm comportamento nômade e pouca
ligação com a vida local.
André
Machado, pesquisador do Instituto Aggeu Magalhães (IAM/Fiocruz), observa que o
agronegócio consome muita água nos territórios, deixando as populações locais
sem acesso a esse recurso. “Há muitos impactos nesse ativo e destaco sobretudo
os grãos e o eucalipto. Não é à toa que a plantação de eucalipto é chamada de
deserto verde. Todas as fontes e aquíferos são rebaixados ou perdidos por conta
desse processo que leva à extensão territorial, muda o regime de chuvas nas
regiões desmatadas e impacta fortemente a quantidade de água de aquíferos e
rios”, declarou à Radis.
Segundo
André, as alterações no meio ambiente são rapidamente visíveis e o rio São
Francisco é um exemplo claro desse processo predatório. “O mar está entrando
cerca de 40 quilômetros na Foz do São Francisco. Isso é um fato inédito. Há
populações urbanas que estão recebendo água salgada na torneira. Já temos
denúncias de uma epidemia de hipertensão”, revelou. André conta que
recentemente esteve na comunidade quilombola Brajão dos Negros, no município de
Brejo Grande, em Sergipe, situada na foz do rio, e encontrou água salgada, o que
impede 600 famílias de beber ou plantar. “Essa comunidade produzia 45 mil
toneladas de arroz por ano e hoje não produz nada. Depende de caminhão-pipa e
agora enfrenta um problema muito sério de segurança alimentar”, denunciou.
A
água que não chega, ou que chega contaminada, afeta diretamente a saúde das
famílias. Que o diga Vera Lúcia de Oliveira Silva, de Jequitaí, em Minas
Gerais. Em conversa com a reportagem, ela relatou que a água que chega ao
povoado do Barrocão, onde mora, não serve para o consumo humano. “Ela é
amarela, escura, sem condições de a gente beber”, descreveu. Vera conta que há
casos de hepatite e verminoses na comunidade, e que suas quatro filhas já
tiveram problemas de pele. O quadro, segundo conta, é constantemente agravado
pela falta de água. “Ficamos de uma a duas semanas sem água alguma”. Em sua
casa, a água é armazenada em caixas de plástico e ela recorre ao serviço
privado para ter água de beber. “A gente bebe só água mineral”, revelou. A
família gasta R$ 21 pelo tambor de 20 litros. Em um mês, são utilizados quatro
tambores. A conta chega a R$ 90 por mês. “É muito dinheiro, é um dinheiro que
faz falta”, reclamou.
Em
conversa com a Radis, Edson Aparecido da Silva, integrante da coordenação do
Fama, reforçou a importância de se combater a ideia da água como mercadoria. De
outra forma, acredita, ela se tornará objeto de luxo. “Água é um direito. Esse
é o nosso contraponto. Defendemos que as pessoas não devem pagar pela água que
consomem e devem ter acesso à água e ao saneamento”. Assessor da Federação
Nacional dos Urbanitários (FNU), Edson sustentou que a população não pode ser
excluída desse debate, como ocorreu no fórum das corporações. “Entendemos que o
verdadeiro fórum da água aconteceu nesse espaço. Aqui é que tivemos todas as
representações para lutar em torno da garantia do acesso à água para todos os
povos”. (ecodebate)
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