terça-feira, 3 de julho de 2018

O decrescimento demoeconômico e o trilema da sustentabilidade

Acreditar que o crescimento econômico exponencial pode continuar infinitamente num mundo finito é coisa de louco ou de economista” - Kenneth Boulding (1910-1993).
O capitalismo é o sistema econômico que mais gerou riqueza desde o surgimento do Homo sapiens. O crescimento econômico e populacional dos últimos 240 anos não tem paralelo na história da humanidade. Tomemos o ano de 1776 como o marco inicial do capitalismo industrial- fóssil, pois foi o ano em que James Watt aperfeiçoou a máquina a vapor e deu o início ao uso generalizado dos combustíveis fósseis. Pois bem, no período que vai de 1776 a 2016, a população mundial cresceu 9,5 vezes e a economia global se multiplicou por cerca de 125 vezes. A despeito das desigualdades, a renda per capita cresceu 13 vezes.
Em 240 anos, o crescimento anual da população ficou em torno de 0,9% ao ano e o da economia ficou em torno de 2% ao ano. Sendo que o período de maior crescimento demoeconômico ocorreu depois da Segunda Guerra Mundial, quando a população passou de cerca de 2,5 bilhões de habitantes em 1950 para cerca de 7,5 bilhões de habitantes em 2016. A média anual de crescimento do PIB ficou acima de 3,5% ao ano. É o período conhecido como “grande aceleração”. O consumo de matérias primas e de recursos naturais cresceu de maneira exponencial. Todo este processo trouxe muito lucro para a humanidade (especialmente para os detentores dos meios de produção), mas provocou grandes prejuízos para a natureza e a biodiversidade.
O progresso humano se deu às custas do retrocesso ecológico. O crescimento exponencial das atividades humanas resultou na ultrapassagem da capacidade de carga do Planeta. Segundo a Global Footprint Network (2017), a pegada ecológica per capita do mundo, em 1961, era de 2,27 hectares globais (gha) e a biocapacidade per capita do Planeta era de 3,12 gha. Para uma população de 3,1 bilhões de habitantes, o impacto da pegada global do ser humano era de 6,98 bilhões de gha, representando apenas 73% dos 9,53 bilhões de hectares globais da biocapacidade disponível naquele momento. Portanto, havia um superávit ou reserva ecológica na década de 1960. A economia cabia na sustentabilidade da ecologia. Mas com o crescimento da população e do consumo, a reserva ecológica foi sendo reduzida e, a partir de 1970, o superávit se transformou em déficit ambiental. Em 2013, a pegada ecológica per capita do mundo subiu para 2,87 gha e a biocapacidade caiu para 1,71 gha. Para uma população mundial de 7,2 bilhões de habitantes, o déficit ambiental chegou a 68% em 2013. A humanidade está vivendo no cheque especial.
Outra metodologia que ajuda a avaliar a capacidade de carga da Terra foi apresentada nos artigos que tratam das “Fronteiras Planetárias. A metodologia do Stockholm Resilience Centre identificou nove dimensões centrais para a manutenção de condições de vida decentes para as sociedades humanas e o meio ambiente, indicando que os limites já foram ultrapassados em 4 dimensões e estavam se agravando nas demais. Duas delas, a Mudança climática e a Integridade da biosfera, são o que os cientistas chamam de “limites fundamentais” e tem o potencial para levar a civilização ao colapso.
Desta forma, o desenvolvimento econômico chegou a uma encruzilhada e a ideia de um desenvolvimento sustentável virou um oximoro. O capitalismo que conseguiu produzir uma quantidade tão grande de bens e serviços, não consegue ser ao mesmo tempo economicamente inclusivo, socialmente justo e ambientalmente sustentável. Diversos estudos mostram que nenhuma indústria seria lucrativa se tivesse de pagar pelo capital natural que utilizam. Desde que a humanidade ultrapassou a capacidade de carga do Planeta, o crescimento da produção tem caminhado para uma situação, definida por economista ecológica Herman Daly, como “crescimento deseconômico”.
A economia é um subsistema da ecologia. Para manter a sustentabilidade e garantir o adequado padrão de vida da humanidade, sem degradar as condições ambientais, a Pegada Ecológica, no longo prazo, não pode ser maior do que a biocapacidade. Assim, é insustentável manter o crescimento da produção e consumo de bens e serviços acima da capacidade de carga do meio ambiente. Sem ECOlogia não há ECOnomia.
Essas lições foram antecipadas de maneira clara no livro “Limites do Crescimento, um relatório para o Projeto do Clube de Roma sobre o Dilema da Humanidade”, liderado pelo casal Meadows e publicado originalmente em 1972. Os autores construíram um modelo para investigar cinco grandes tendências de interesse global: o ritmo acelerado de industrialização, o rápido crescimento demográfico, a desnutrição generalizada, o esgotamento dos recursos naturais não renováveis e a deterioração ambiental. Estas tendências se inter-relacionam de muitos modos e a obra busca compreender suas implicações num horizonte de cem anos.

A principal conclusão do livro está resumida neste parágrafo: “Se as atuais tendências de crescimento da população mundial, industrialização, poluição, produção de alimentos e diminuição de recursos naturais continuarem imutáveis, os limites de crescimento neste planeta serão alcançados algum dia dentro dos próximos cem anos. O resultado mais provável será um declínio súbito e incontrolável, tanto da população quanto da capacidade industrial” (p. 20).
Infelizmente o alerta do livro “Limites do Crescimento” não foi ouvido. Evidentemente, o modelo atual é insustentável e a humanidade marcha para uma situação catastrófica caso continue avolumando a Pegada Ecológica bem acima da biocapacidade. Por exemplo, a continuidade do efeito estufa pode ser o fator de “declínio súbito e incontrolável”, apontado pelo livro “Limites do Crescimento”. As constantes agressões antrópicas ao meio ambiente podem ter um efeito de retroalimentação com o derretimento do permafrost e das Tundras do círculo Ártico que liberam CO2 e o gás metano. Artigo de Uwe Branda et. al. (2016) traz uma afirmação preocupante: “O aquecimento global provocado pela liberação maciça de dióxido de carbono pode ser catastrófico. Mas a liberação do hidrato de metano pode ser apocalíptica”.

Portanto, os dados mostram que a natureza não aguenta mais a continuidade dos impactos do crescimento da população humana, do seu consumo e da sua decorrente poluição. A continuidade da perda da biodiversidade e da degradação dos ecossistemas aponta para um abismo que pode sugar o progresso e jogar a economia em um caos imprevisível, mas muito doloroso.
Para impedir o pior, é preciso evitar o crescimento econômico quantitativo que extrai volumes crescentes de recursos naturais e gera volumes ainda maiores de resíduos sólidos e poluição do solo, das águas e do ar. Não basta o desacoplamento relativo. A solução passa por uma mudança de paradigma e pelo decrescimento demoeconômico, como forma de reduzir a Pegada Ecológica. E como bem mostra o livro “Enough is Enough” (2010), não basta reduzir a pegada ecológica, também é preciso reduzir o número de pés.
Mudar o padrão de produção e consumo é fundamental. Porém, o decrescimento da população poderia dar uma grande contribuição para diminuir o impacto negativo sobre o meio ambiente. Mas, as projeções da ONU indicam que é quase certo que a população mundial vai passar dos atuais 7,5 bilhões de habitantes, em 2016, para cerca de 10 bilhões em 2055 e 11,2 bilhões em 2100. Porém, se houver queda mais acelerada das taxas de fecundidade, o declínio populacional poderá ocorrer ainda na segunda metade do século XXI. Neste quadro, o que fazer então para evitar uma catástrofe ambiental?
Além da aceleração da queda das taxas de fecundidade (que vão possibilitar a futura estabilização demográfica) é preciso imediatamente modificar o modo de vida e reduzir o nível de agressão à natureza. Mas há grandes resistências à diminuição do consumo em qualquer sociedade, embora a redução do alto padrão de vida nos países ricos poderia ser uma forma de mitigar os problemas ambientais e as desigualdades sociais. O decrescimento demoeconômico nos países desenvolvidos é uma bandeira que tem ganhado muitos adeptos, como mostra as publicações do grupo Research & Degrowth (R&D).
Mas há muita resistência em se falar em decrescimento demoeconômico nos países pobres e de baixo grau de desenvolvimento. Argumenta-se que as populações do Terceiro Mundo não atingiram um grau mínimo de bem-estar e que, portanto, estes países não têm “gordura” para queimar. Falar em decrescimento populacional também mexe com os interesses dos setores do fundamentalismo religioso, das forças militares, do conservadorismo moral, dos políticos populistas e do nacionalismo xenófobo. O pronatalismo sempre acompanha os sonhos da grandeza nacional, que tende a deixar o meio ambiente e a biodiversidade em segundo plano, em relação ao desenvolvimento das forças produtivas e ao egoísmo humano.
Contudo, quando se fala em decrescimento não se pode pensar simplesmente na lógica quantitativa e material. O decrescimento pode ser principalmente qualitativo, reduzindo as atividades mais poluidoras e fazendo crescer as atividades com menor impacto ambiental.

Por exemplo, o decréscimo da produção e do consumo de combustíveis fósseis, além de diminuir as emissões de gases de efeito estufa pode abrir espaço para o crescimento das energias renováveis (solar, eólica, geotérmica, ondas, etc.), contribuindo para a descarbonização da economia. As energias alternativas podem gerar emprego e democratizar o acesso à produção e consumo energético, criando a figura do prossumidor (produtor + consumidor).
Com base neste exemplo, podemos listar diversas maneiras de fazer decrescer as atividades mais poluidoras e degradadoras do meio ambiente, abrindo espaço para crescer as atividades mais amigáveis à natureza. Vejamos algumas alternativas:

Decrescer os gastos militares e reduzir a produção e uso de instrumentos de guerra e aumentar os investimentos em atividades de engrandecimento da solidariedade nacional e internacional, na promoção da paz e na ampliação do bem-estar social (com melhoria da saúde, da educação e cultura ecocêntrica).
Decrescer a produção e o consumo de fertilizantes químicos e agrotóxicos e aumentar os investimentos na agricultura orgânica, na permacultura e na agricultura urbana, produzindo alimentos saudáveis perto dos grandes centros urbanos (para decrescer os custos de transporte e o desperdício dos alimentos).
Decrescer as áreas de pastagem e a produção e o consumo de proteína animal, promovendo a transição para uma dieta vegetariana e vegana, além de aumentar as áreas de florestas e vegetação nativa.
Decrescer a produção e o uso de carros particulares (principalmente aqueles grandes, pesados e que demandam muita energia por quilômetro rodado) e aumentar os investimentos em transporte coletivo e no compartilhamento de automóveis elétricos.
Decrescer as desigualdades, o consumo conspícuo, os bens de luxo e investir em bens e serviços que permitam a universalização do bem-estar, aumentando as atividades da economia solidária, da economia colaborativa, de forma a diminuir os impactos das atividades antrópicas.
Decrescer a demanda dos serviços ecossistêmicos, reduzir a poluição e diminuir as áreas ecúmenas, aumentando as áreas verdes (florestas e matas), limpando os rios, lagos e oceanos para viabilizar a recuperação da biodiversidade, o aumento das áreas anecúmenas e o incremento do bem-estar ecológico.
Decrescer a economia material e aumentar a economia imaterial, a produção de bens intangíveis e a sociedade do conhecimento, da solidariedade e do compartilhamento.
O fato é que a humanidade precisa mudar o estilo de vida e o padrão de produção e consumo para diminuir a degradação ambiental. O alerta feito, em 1972, no livro “Limites do Crescimento” continua válido. Mas não basta mais limitar o crescimento. O desafio atual é promover o decrescimento demoeconômico, reduzindo a Pegada Ecológica e aumentando a Biocapacidade.
Também Celso Furtado, no livro, “O mito do desenvolvimento econômico”, de 1974, pergunta o que aconteceria se o desenvolvimento econômico se universalizasse. Ele responde de forma clara: “se tal acontecesse, a pressão sobre os recursos não renováveis e a poluição do meio ambiente seriam de tal ordem (ou alternativamente, o custo do controle da poluição seria tão elevado) que o sistema econômico mundial entraria necessariamente em colapso” (Furtado,1974, p. 19).
Os dinossauros viveram na Terra durante 135 milhões de anos. O Homo sapiens tem apenas 200 mil anos. Numa perspectiva de longo prazo, pouco importa saber se o “declínio súbito e incontrolável”, apontado pelo relatório, de 1972, do Clube de Roma, acontecerá em 50, 100 ou 200 anos. O certo é que o caminho atual é insustentável e, se nada for feito para um redirecionamento, a humanidade não terá futuro num Planeta de terra arrasada.
Indubitavelmente, não dá para tergiversar, pois é impossível garantir o enriquecimento da sociedade humana às custas do empobrecimento da comunidade biótica global. A insistência na manutenção do rumo historicamente insustentável da economia e do crescimento das atividades antrópicas pode levar a civilização ao precipício, ao ecocídio e ao suicídio.
O sistema hegemônico de produção e consumo, baseado na perpétua acumulação (capitalista ou socialista), não consegue mais lidar com a crise ecológica. Por isto é impossível que a continuidade do crescimento das atividades antrópicas mantenha de pé as três bases do tripé da sustentabilidade, que na verdade se transformou em um trilema. Assim, só o decrescimento demoeconômico poderá garantir o equilíbrio homeostático da economia e do ambiente. Essas ideias fizeram parte da minha apresentação no 22º Congresso Brasileiro de Economia (BH, 08/09/2017) e estão baseadas no texto publicado na Revista Brasileira de Estudos de População. Ambos os arquivos podem ser acessados nos links abaixo:
ALVES, JED. O trilema da sustentabilidade e o decrescimento demoeconômico, 22º Congresso Brasileiro de Economia, BH, 08/09/2017.
MARTINE, G. ALVES, JED. Economia, sociedade e meio ambiente no século 21: tripé ou trilema da sustentabilidade? R. bras. Est. Pop. Rebep, n. 32, v. 3, Rio de Janeiro, 2015 (em português e em inglês) http://www.scielo.br/pdf/rbepop/2015nahead/0102-3098-rbepop-S0102-3098201500000027P.pdf
Artigo originalmente publicado na revista Economistas do Conselho Federal de Economia – COFECON, Ano VIII, No 26, outubro-dezembro 2017.

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