No
dia 4 de Novembro próximo, terá lugar no Centro de Convenções da Unicamp o
evento mais importante dos últimos anos em nossa Universidade no que se refere
ao mais crucial problema da humanidade, ao lado da emergência climática: a
manutenção e a recuperação dos combalidos alicerces da biodiversidade, no
Brasil e no planeta como um todo. O encontro, intitulado Biodiversidade
não é problema, é solução!, é
uma iniciativa do Programa BIOTA, da Plataforma Brasileira de Biodiversidade e
Serviços Ecossistêmicos (BPBES) e da Diretoria Executiva dos Direitos Humanos,
da Reitoria. Ele reunirá seis dos mais ativos e experientes pesquisadores
em biodiversidade, ligados às Universidades e a Institutos de Pesquisas
brasileiros.
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Após
os pronunciamentos do reitor e do diretor científico da FAPESP, Carlos Alfredo
Joly (IB e NEPAM), membro titular da Academia Brasileira de Ciências e do
Scientific Advisory Committee (SAC) do Inter-American Institute for Global
Change Research (IAI), bem como coordenador da
Plataforma Brasileira de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (BPBES), fará
a palestra de abertura. Após essa apresentação preliminar, Maíra Padgurschi
apresentará o Diagnóstico Brasileiro sobre Biodiversidade e Serviços
Ecossistêmicos, baseado justamente nos resultados da BPBES. Maíra Padgurschi é membro
da rede Ecosystem Services Partnership/ESP e da Young Ecosystem Services
Specialists/YESS. Desde 2015, atua como Secretária Executiva da BPBES e é
membro de seu Conselho Técnico-Científico. Realiza, além
disso, uma pesquisa de pós-doutorado no Instituto Nacional de Pesquisas da
Amazônia/INPA pelo Programa AmazonFACE. Em seguida, Cristiana Seixas realizará
uma palestra intitulada “Contribuições da natureza para a qualidade de
vida”. Especialista em gestão ambiental, com ênfase na interface entre
recursos naturais e bem-estar social, Cristiana Seixas é pesquisadora do
NEPAM/Unicamp, co-coordenou o Diagnóstico Regional das Américas
da Plataforma Intergovernamental sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos
(IPBES) e integra a Coordenação Executiva da BPBES.
Na
parte da tarde, Kayna Agostini, Professora da Universidade Federal de São
Carlos (campus Araras), fará um balanço da crescente crise de polinização na
agricultura brasileira. Em seguida, Renato Crouzeilles fará um balanço do
reflorestamento no Brasil e, enfim, Vinícius Farjalla, da UFRJ, incluirá uma
variável fundamental no panorama da biodiversidade brasileira, a questão da
água. O Sumário para Tomadores de Decisão de todos os diagnósticos que serão
apresentados no dia 04 estão disponíveis para download na página da BPBES.
Um pouco de contexto:
a BPBES e o IPBES
É
importante ter presente o contexto em que ocorre este encontro do próximo dia
4, pois é ele que permite melhor entender sua importância excepcional. A BPBES
integra a Plataforma Intergovernamental sobre Biodiversidade e Serviços
Ecossistêmicos (IPBES, por Intergovernmental science-policy
Platform on Biodiversity and Ecosystem Services). Como se sabe,
essa Plataforma foi oficialmente estabelecida em 2012 por demanda dos
governos e posta sob os auspícios de quatro organismos da ONU. Em sua
breve história de sete anos, o IPBES impôs-se como uma referência incontornável
na avaliação do declínio da biodiversidade, o aspecto mais crucial, ao lado da
emergência climática, das crises socioambientais em que as sociedades
contemporâneas vão naufragando cada vez mais rapidamente (mas ainda dá tempo de
reagir!).
Das
Plenárias anuais dessa Plataforma, seu órgão deliberativo máximo, participam
hoje praticamente todos os países da comunidade internacional, seja na
qualidade de membros plenos (132 países), seja na condição de observadores,
além de outros participantes, entre os quais a Convenção sobre a Diversidade
Biológica (CBD), outras Convenções internacionais, agências e ONGs
credenciadas. Eis como o IPBES, que tem por lema “Ciência e Política para a
Natureza e para as Pessoas”, define sua razão de ser e seus objetivos:
[O
IPBES] “fornece aos governos avaliações científicas objetivas sobre o estado do
conhecimento relativo à biodiversidade do planeta, aos ecossistemas e aos
benefícios que eles proporcionam às pessoas. Fornece aos governos também os
instrumentos e os métodos para proteger e usar sustentavelmente esses ativos
naturais vitais. Nossa missão é fortalecer os fundamentos do conhecimento para
uma melhor governança informada pela ciência, para a conservação e o uso
sustentável da biodiversidade, o bem-estar humano em longo prazo e o
desenvolvimento sustentável. Em certa medida, o IPBES faz para o biodiversidade
o que o IPCC faz para as mudanças climáticas”.
O lançamento do
Sumário do 1º Relatório do IPBES
Em
6 de maio deste ano, o IPBES lançou em Paris o Sumário de seu 1º Relatório
de Avaliação sobre o estado da biodiversidade global. Esse documento leva em
conta cerca de 15 mil estudos e relatórios governamentais, integrando
informação das ciências sociais e das ciências da natureza, bem como informação
proveniente das comunidades indígenas e tradicionais. Um comunicado de imprensa
assim resume seu conteúdo:
“O
perigoso declínio da Natureza é sem precedentes. A taxa de extinção das
espécies está se acelerando. A resposta global de nossos dias a esse processo é
insuficiente. Impõem-se mudanças transformadoras para restaurar e proteger a
natureza. A oposição a interesses financeiros (vested interests)
tem de prevalecer em prol do bem público. Trata-se da mais abrangente avaliação
da biodiversidade: 1.000.000 de espécies estão ameaçadas de extinção”.

O
que significa, quantitativamente, um milhão de espécies extintas no contexto da
biosfera de nosso planeta? Há crescente consenso quanto à magnitude da
biodiversidade planetária, ao menos no que diz respeito ao domínio taxonômico
dos eucariotas ou eucariontes, espécies com células dotadas de um núcleo
cercado por uma membrana bem definida e, portanto, com DNA separado do
citoplasma. Assim, por exemplo, Rodolfo Dirzo, Mauro Galetti e Ben Collen,
num trabalho intitulado “Defaunation in the Anthropocene” (Science 2014),
implicitamente subscrevem esse consenso emergente: “Partindo de uma estimativa
conservadora da existência de 5 a 9 milhões de espécies animais no planeta,
estamos perdendo provavelmente cerca de 11.000 a 58 mil espécies por ano”.
Também o IPBES trabalha com essa escala da biodiversidade. Andy Purvis,
coordenador de um dos capítulos do diagnóstico global elaborado pelo IPBES,
afirma:
“Em
uma ampla e crescente variedade de grupos taxonômicos, cerca de 25% das
espécies estão ameaçadas de extinção quando avaliadas usando os critérios bem
estabelecidos e transparentes da Lista Vermelha da IUCN [International Union
for Conservation of Nature]. Alguns grupos exibem uma proporção mais
alta, outros uma proporção mais baixa, mas a média de 25% está bem
estabelecida. A porcentagem de insetos ameaçados pode muito bem ser menor (o
que é relevante, porque cerca de 75% das espécies são insetos), mas as
evidências dos insetos mais estudados (libélulas globalmente e abelhas,
borboletas e alguns besouros na Europa) sugerem que é improvável que fique muito
abaixo de 10%. Ainda não há acordo sobre exatamente quantas espécies existem:
cerca de 1,7 milhão de espécies de animais e plantas foram descritas, mas a
maioria das estimativas do número total de espécies supera o dobro desse
número. Na Avaliação, usamos uma estimativa recente, entre baixa e média, de
8,1 milhões de espécies animais e vegetais, das quais cerca de 5,5 milhões são
insetos (ou seja, 75%) e 2,6 milhões não. Portanto, 10% dos 5,5 milhões de
insetos são 550.000 e 25% dos 2,6 milhões são 625.000. Devido à imprecisão nas
estimativas, não há sentido em fornecer o total com mais precisão do que 1
milhão de espécies animais e vegetais ameaçadas”.
Portanto,
perder cerca de 1 milhão de espécies significa perder 12,5% do total da
biodiversidade animal e vegetal do planeta, estimada em 8,1 milhões de espécies
eucariontes. E atenção: essa catastrófica taxa de extinção não ocorre num
futuro longínquo, mas “nas próximas poucas décadas”, afirma o IPBES. Esse total
de extinções inclui 10% dos insetos, mas também 40% dos anfíbios e 33% dos
corais, tubarões e mamíferos marinhos, conforme mostra o quadro abaixo.
O
relatório estima, ademais, que 5% de todas essas espécies estarão ameaçadas de
extinção num clima, na média global, 2ºC acima do período pré-industrial, isto
é, 0,8ºC acima do presente, aquecimento que pode ser atingido em algum momento
do segundo quarto do século (já por volta de 2030 no Brasil), a menos que as
emissões de gases de efeito estufa declinem pronta e drasticamente.
Dois exemplos de
perda catastrófica de populações
Toda
extinção começa, é claro, pela perda de abundância das populações de uma dada
espécie. De acordo com um trabalho publicado em outubro de 2019 na
revista Science, cerca de 3 bilhões de pássaros desapareceram nos
EUA e Canadá, em todos os diversos biomas e entre as espécies com populações
ainda consideradas abundantes (29% das populações avaliadas) desde 1970.

Os
polinizadores fornecem um segundo exemplo de perda catastrófica de
populações. A Lista Vermelha das espécies ameaçadas de extinção
da IUCN indica que 16% dos polinizadores vertebrados estão ameaçados
de extinção global e 30% das espécies encontradas em ilhas, com tendência a
mais extinções. Avaliações nacionais e regionais indicam altos níveis de ameaça
também para abelhas e borboletas. Na Europa, 9% das espécies de abelhas e de
borboletas estão ameaçadas. As populações de 37% das espécies de abelhas e de
31% das borboletas estão declinando. Onde há dados disponíveis, há indicações
de que frequentemente mais de 40% das espécies de abelhas podem estar ameaçadas
de extinção. Já em 2016, o IPBES publicou uma primeira grande avaliação
sobre a crise dos polinizadores. Polinizadores silvestres declinaram em
ocorrência e diversidade (e abundância para certas espécies) no Noroeste da
Europa e na América do Norte. Até 2016, segundo esse relatório, não havia dados
gerais disponíveis para a América Latina, África, Ásia e Oceania, mas foram
registrados declínios locais nessas regiões. A abundância, diversidade e a
saúde dos polinizadores estão ameaçadas por desmatamento, agricultura
intensiva, mudanças climáticas e pesticidas, incluindo inseticidas
neonicotinoides, que ameaçam os polinizadores em todo o mundo. O relatório de
2016 alerta que, “ultrapassado o limiar [de resiliência] de um sistema, as
populações de polinizadores podem colapsar simultaneamente” (p.
245). Entre as muitas consequências desse declínio ou colapso dos
polinizadores, para a humanidade e para tantas outras espécies, podemos recordar
três:
(a)
Entre 94% (nas zonas tropicais) e 78% (nas zonas temperadas) das espécies
selvagens de plantas com florações (aproximadamente 308.000 espécies) dependem,
ao menos em parte, da transferência de pólens por animais para a sua
reprodução. Essas plantas são essenciais para o funcionamento dos ecossistemas.
(b)
Dos 107 principais tipos de culturas agrícolas globais destinadas à
alimentação, 91 (frutas, sementes e oleaginosas) dependem em certa medida de
polinização animal para sua produtividade e/ou qualidade.
(c)
A polinização animal é diretamente responsável por 5% a 8% da produção agrícola
global por volume. Essas porcentagens, que serão perdidas sem polinizadores,
incluem produtos contendo micronutrientes fundamentais da dieta humana, como
vitamina A, ferro e ácido fólico, essencial, por exemplo, para a formação do
sistema nervoso do feto.
O agronegócio global
no banco dos réus
O
modelo de agropecuária imposto pelo capitalismo globalizado é o principal
responsável pela eliminação física (via incêndios e desmatamento) dos habitats
terrestres e aquáticos e pela intoxicação (via agrotóxicos) da vida silvestre.
Como afirma Jeff Tollefson, num artigo na revista Nature:
“Segundo
o Relatório [do IPBES], as atividades agropecuárias têm tido o maior impacto
nos ecossistemas dos quais as pessoas dependem para a alimentação, água limpa e
clima estável. A perda de espécies e habitats coloca em perigo a vida na Terra
tanto quanto as mudanças climáticas, afirma um sumário do relatório”.
Bem
ao contrário de ser uma atividade “pop”, o agronegócio é – juntamente com a
indústria de combustíveis fósseis, a mineração e a pesca industrial – a causa
maior, não apenas da insegurança alimentar que, segundo a FAO, retoma agora sua
linha ascendente, mas do declínio cada vez mais perigoso da
biodiversidade. Os fazendeiros brasileiros que poluem os solos, a atmosfera, a
água e os alimentos – após desmatar, incendiar as florestas e matar os que
lhes resistem – são uma peça na engrenagem da rede de megacorporações que
controlam o sistema de produção e negociação especulativa de soft
commodities, das sementes ao consumo final, passando pelo
financiamento, os fertilizantes, os agrotóxicos, a maquinaria e o transporte,
que rasga e fragmenta o que resta da manta florestal. Por culpa sobretudo
dos interesses financeiros (os vested interests acima
citados pelo IPBES) dessa grande coalizão da terra arrasada, o planeta está
perdendo animais e plantas a uma velocidade “sem precedentes”, como afirma
ainda o IPBES. E quando se fala em velocidade sem precedentes, isso significa
que a Sexta Grande Extinção de espécies, atualmente em curso, evolui a uma
velocidade tão ou mais fulminante que as cinco grandes extinções anteriores, a
quinta das quais ocorridas há cerca de 65 milhões de anos.
Numa
declaração às delegações reunidas na Rio+20 em 2012, Julia Marton-Lefèvre,
ex-Diretora Geral da International Union for Conservation of
Nature (IUCN), reiterou pela enésima vez a advertência de que a Sexta
Extinção em curso pode, no limite, implicar a extinção do Homo
sapiens:
“Sustentabilidade
é uma questão de vida ou morte para a humanidade. Um futuro sustentável não
pode ser atingido sem que se conserve a diversidade biológica – espécies
animais, seus habitats e seus genes – não apenas para a natureza mesma, mas
também para os 7 bilhões de seres humanos que dependem dela”.
Isso
significa que a Sexta Extinção já não é mais apenas uma questão moral, mas
adquire sempre mais uma dimensão existencial, que revelará todo o seu potencial
destrutivo para a humanidade e para um sem número de outras espécies já nos
próximos poucos decênios (“the next few decades”,
como afirma o IPBES).
A catástrofe
brasileira
De
posse desses dados, entende-se melhor a importância excepcional do encontro do
dia 4 de novembro, pois as seis comunicações que se sucederão no auditório do
Centro de Convenções apresentarão os resultados brasileiros desse relatório,
consignados na Plataforma Brasileira de Biodiversidade e Serviços
Ecossistêmicos (BPBES). O Brasil, como se sabe, está entre os países ao
mesmo tempo mais ricos em biodiversidade e mais ameaçados de ver aniquilada
essa riqueza vital pelo agronegócio e pela mineração (aí incluída, obviamente,
a extração de petróleo), as duas atividades mais devastadoras da economia
mundial. Se as consequências são globais, evidentes e muito mais graves do que
se imagina, no Brasil elas atingem um grau extremo. A 12ª edição do
Living Planet Index 2018 (WWF/ZSL) mediu o declínio de 16.704 populações de
4.005 espécies entre 1970 e 2014. Os resultados dão uma ideia da catatonia das
sociedades diante da perspectiva concreta do colapso da riqueza biológica do
planeta: em média, as populações pesquisadas de animais vertebrados haviam se
reduzido em 2014 a menos da metade dos níveis de 1970. Em habitats de água doce,
essas populações caíram 83%. Mas em nenhum lugar como no Brasil e, em geral, na
América Central e do Sul, esse massacre das populações de vertebrados é mais
extremo. Nessa região do planeta houve uma queda total de 89% nas populações
examinadas de animais vertebrados. Isso significa que, em média, onde havia 100
indivíduos de uma dada espécie de vertebrados em 1970, em 2014 restam apenas 11
indivíduos. Estamos realmente, no Brasil, mais próximos da extinção em massa de
espécies vertebradas do que no resto do mundo. A figura abaixo mostra,
comparativamente, a gravidade extrema da situação de nosso continente.

Conforme
enfatizado pelos autores do Living Planet Report 2018: “de todas as espécies de
plantas, anfíbios, répteis, aves e mamíferos extintas desde 1500, 75% o foram
pela super-exploração ou pela atividade agropecuária ou por ambas”.
O
mesmo processo fulminante de extermínio ocorre com as plantas dotadas de
sementes (espermatófitas). Segundo um trabalho publicado na Nature em
2019, cerca de três espécies de plantas com sementes vêm se extinguindo
globalmente a cada ano desde 1900, uma taxa de extinção 500 vezes maior que a
taxa de base. Nesse contexto, a Mata Atlântica no Sudeste do país está
entre as regiões que mais sofreram essas extinções, como mostra o mapa-múndi
abaixo.
Reagir à letargia:
tudo ainda depende de nós
Mantido
o atual modelo econômico – global, carnívoro, poluente, excludente,
antidemocrático, devastador da natureza e emissor de gases de efeito estufa –,
não há que se fazer ilusões sobre nosso futuro, pois as chances de evitar um
colapso das sociedades contemporâneas tendem a zero no decorrer do próximo
quarto de século. Mas muito ainda pode ser evitado, se agirmos já para deter a
espiral destrutiva. Robert Watson, diretor do IPBES, adverte: “O tempo
para a ação era ontem ou antes de ontem”. Essa é a mensagem central da
ciência. Ela precisa ser ouvida por todos, a começar pela comunidade
universitária: docentes, alunos e funcionários. Temos um encontro marcado com a
BPBES no dia 4 de novembro na Unicamp. (ecodebate)