Como a poluição do ar agrava
a pandemia e o que esta pode nos ensinar para enfrentar o problema.
Por cerca de um mês até o
presente momento, a cidade de São Paulo tem vivido uma situação inusitada de
drástica redução no nível da atividade de transporte em resposta ao advento do
coronavírus. Assim como observado ao redor do mundo, aqui também começamos a
perceber que a pandemia tem contribuído para que outra preocupação da
Organização Mundial da Saúde (OMS) fosse colocada em evidência, ao menos
temporariamente, a poluição do ar nas cidades.
Com relação à qualidade do
ar, a OMS é a maior referência técnica que recomenda quais são os níveis
máximos de concentração de poluentes no ar que não devem ser ultrapassados para
proteger a saúde da população. Em grandes cidades brasileiras onde a qualidade
do ar é monitorada, é comum termos a ultrapassagem, muitas vezes todos os anos,
desses níveis recomendados pela organização. Tais picos de poluição variam de
acordo com o poluente e as condições meteorológicas do período. De modo geral,
dois poluentes críticos chamam a atenção por frequentemente estarem acima do
indicado: as partículas inaláveis e o gás ozônio.
A Companhia Ambiental do
Estado de São Paulo (CETESB) publicou uma nota observando que a qualidade do
ar, de fato, apresentou melhoras significativas nos primeiros dias de
isolamento social. A partir dos dados da companhia, a pesquisadora Maria de
Fátima Andrade, professora do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências
Atmosféricas da Universidade de São Paulo (IAG-USP), também detectou uma
redução significativa de poluentes diretamente ligados à emissão veicular,
incluindo cerca de 30% de partículas inaláveis. A pesquisadora ressalta que o
período ainda é curto para ter conclusões mais apuradas, uma vez que o
comportamento da atmosfera é influenciado por fatores como o papel das chuvas e
dos ventos no período, já que ambos são mecanismos de remoção e dispersão de
poluentes da atmosfera.
O IEMA também investiga a questão apurando os
dados da rede de monitoramento da qualidade do ar em operação na região
metropolitana de São Paulo. Analisando as séries históricas de concentração de
partículas inaláveis finas e gás ozônio, observamos que o desafio é imenso. As
partículas inaláveis finas apresentaram nítidas reduções nos níveis monitorados
a partir da segunda quinzena de março, quando o distanciamento social começou a
ser praticado. Houve reduções significativas na frequência histórica de
ultrapassagens das recomendações da OMS. A estação Grajaú-Parelheiros é um
exemplo.
No
entanto, o mesmo não foi constatado quanto ao ozônio. As estações que monitoram
esse poluente com representatividade da escala urbana, aquelas mais distantes
das fontes emissoras, mostraram comportamento similar aos três últimos anos com
frequentes ultrapassagens das recomendações da OMS. Porém, uma das estações
localizada em Itaquera, zona leste da capital, chamou a atenção por apresentar
ultrapassagens mais frequentes neste ano do que nos três anos anteriores.
Chegando, aliás, a ultrapassar o padrão de qualidade do ar adotado pelo estado
de São Paulo e alcançando o índice “muito ruim” de qualidade do ar.
Esse
contrassenso pode ser objeto de investigações mais aprofundadas. O ozônio é um
poluente secundário, ele não é emitido diretamente a partir dos processos de
queima de combustíveis, sua complexa formação ocorre a partir da combinação de
um conjunto de outros poluentes, chamados de poluentes precursores, e certas
condições atmosféricas. Às vezes, ao se reduzir as emissões de certos poluentes
precursor em relação a outro poluente precursor, pode-se ter um aumento na
formação do ozônio.
Infelizmente,
não poderemos obter esse tipo de informação por todo o país. As redes de
monitoramento da qualidade do ar no Brasil se apresentam, de forma geral,
insuficientes e desprovidas de tecnologias que permitam informar ao cidadão, em
tempo real, a qualidade do ar. O estado de São Paulo é praticamente a única
exceção. Vale destacar que a maioria dos estados brasileiros está sem
monitoramento da qualidade do ar de maneira oficial. Além de São Paulo, têm
monitoramento (em diferentes níveis de abrangência): Bahia, Ceará, Sergipe, Distrito
Federal, Espírito Santo, Goiás, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, Paraná, Rio
de Janeiro e Rio Grande do Sul.
Mas,
sim, uma melhora no ar que respiramos era esperada com a quarentena nos centros
urbanos. A principal causadora da poluição do ar na cidade é tipicamente a
atividade de transporte, com destaque para o uso do automóvel. Com muitas
pessoas nas suas casas, uma boa parcela dos carros deixou de circular e,
portanto, emitir poluentes. Um relatório do Google revela, a partir de dados de
localização de celulares, tendências de mobilidade para o trabalho reduzidas em
mais de 40% e para compras e recreação maiores do que 70% no estado de São
Paulo. O índice de mobilidade do Google para o transporte público também
mostrou queda de mais de 60%.
Em
contraponto a essa imobilidade voluntária ou consentida e na contramão de
medidas antiaglomeração, infelizmente vimos que a frota de transporte público
circulando em cidades como São Paulo foi reduzida, contribuindo com a geração
de aglomerações nos ônibus e nos pontos de parada. Como consequência, expondo a
parcela da população mais vulnerável aos riscos de contaminação e aumentando as
chances de disseminação do vírus.
Há
ainda um aspecto fundamental a se atentar na relação da poluição do ar com o
coronavírus. Muitas das condições de saúde pré-existentes, que aumentam o risco
de morte por Covid-19, são as mesmas doenças afetadas por exposição à poluição
do ar a longo prazo. A Coalizão Clima e Qualidade do Ar, um grupo formado por
governos e cientistas de diversas partes do mundo orientados para o
enfrentamento da poluição do ar, alertou que estudos preliminares mostram que
impactos à saúde devidos à poluição do ar – incluindo doenças respiratórias,
cardiovasculares e até diabetes – aumentam a vulnerabilidade ao Covid-19.
Reforça-se, aí, ainda mais a necessidade de se ter ar puro nas cidades. Há
poucos dias, um estudo publicado pela Universidade de Harvard concluiu que
cidades poluídas tendem a apresentar casos mais graves da Covid-19. O estudo
aponta que há correlação entre a poluição do ar e a tendência dos seus
habitantes, que por anos estiveram sujeitos a respirar o ar poluído, a
desenvolver quadros mais severos da doença.
Isso
acende um alerta com a chegada do tempo seco nos próximos meses, quando a
poluição do ar tende a se agravar e é sabido o aumento no caso das recorrências
ao sistema de saúde por problemas respiratórios. Como exemplo, podemos observar
as concentrações de partículas inaláveis finas na zona leste de São Paulo –
estação de monitoramento da qualidade do ar de Itaim Paulista -, cujos níveis
chegaram a alcançar nos últimos anos quase 4 vezes os valores estipulados pelas
diretrizes da OMS.
Mas
além da queima de combustíveis em ambiente urbano, um segundo agravante da
qualidade do ar deve ser levado em conta no Brasil: as queimadas florestais.
Encravada na floresta amazônica, a cidade de Manaus, apesar de atualmente não
contar com uma única estação de monitoramento da qualidade do ar, sofre
anualmente com nuvens de fumaça. Essas são detectadas pelo Instituto do Homem e
Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) através de imagens de satélite.
Segundo
apurado pela Revista Piauí, Manaus registrou nos últimos 3 anos uma média de 29
internações diárias no SUS por problemas respiratórios, de acordo com o
Ministério da Saúde. Para este ano, os pesquisadores do Instituto de Pesquisa
Ambiental da Amazônia (IPAM) têm expectativa de uma temporada de fogo intensa
na Amazônia, decorrente do aumento do desmatamento em 2020, somado à vegetação
derrubada em 2019 que não queimou, conforme nota técnica publicada na semana
passada. Assim, uma pressão ainda maior deve sofrer o já colapsado sistema de
saúde do Amazonas, com o esgotamento da sua capacidade de atendimento.
Contudo,
precisamos tirar boas lições deste momento. O desligamento temporário de
atividades econômicas em várias cidades no mundo mostrou que a qualidade do ar
pode melhorar muito rapidamente assim que as fontes de poluição são suprimidas.
Não se trata aqui, obviamente, de tomar a redução da atividade econômica como
uma solução sustentável. Assim como boa qualidade do ar é condição necessária
para o bem-estar social, plena atividade econômica também é meio imprescindível
para tal.
Vale
refletir em como, à frente, “reconstruir melhor” (“build back better”),
abordagem adotada na recuperação a desastres, e repensar o viver na cidade.
Reconstruindo um espaço, dessa vez, menos desigual e proporcionando um ambiente
saudável. Fazem falta medidas e atitudes que conciliam a necessidade de
mobilidade das pessoas na cidade com a urgência da redução das emissões de
poluentes, como o uso mais eficiente dos modos de transporte. Ou seja,
deslocar-se o quanto necessário, mas poluindo menos e consumindo menos
combustíveis. Para tanto, as mais atuais diretrizes de planejamento urbano
indicam que devem ser priorizados o transporte ativo (caminhada e bicicleta),
seguido do transporte coletivo (ônibus, metrôs e trens) e, por último, o
automóvel. Esse ocupa o maior espaço na via por passageiro transportado,
gerando congestionamentos e elevados tempos de deslocamento pela cidade, além
de apresentar maior gasto energético e emissão de poluentes. (ecodebate)
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