Desmatamento consumiu 12 mil
km2 de vegetação nativa do Brasil em 2019, num ritmo devastador de
quase 1,5 km2 por hora. E o cenário para este ano é ainda mais
preocupante, segundo especialistas.
A conclusão inicial vem de um
relatório do Projeto MapBiomas, que revisou e consolidou todos os alertas de desmatamento
registrados via satélite no País em 2019, em todos os seis grandes biomas
nacionais — Amazônia, Cerrado, Mata Atlântica, Caatinga, Pantanal e Pampa. Já
as previsões para 2020 são baseadas em dados correntes de monitoramento por
satélite do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) e de outras
instituições, acoplados a um cenário de forte turbulência econômica, política e
social.
O desmatamento acumulado nos
últimos 10 meses (de agosto de 2019 a maio deste ano) na Amazônia Legal já é
72% maior do que o registrado no mesmo período anterior, segundo dados do
Sistema de Detecção do Desmatamento em Tempo Real (Deter), do INPE. E o pior é
que a alta temporada de devastação está só começando: junho, julho e agosto são
tipicamente os meses com maior índice de queimadas e desmates na região, por
causa do tempo seco; o que sugere que essa diferença em relação aos anos
anteriores só deverá crescer nas próximas semanas.
“Todos os sistemas de alerta
apontam para uma tendência de alta”, diz o geógrafo Marcos Reis Rosa,
doutorando na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP
e coordenador técnico do Projeto MapBiomas, realizado por um consórcio de
instituições de pesquisa públicas e privadas, incluindo universidades, empresas
e organizações não-governamentais.
“São números que assustam,
porque nem incluem o período de seca, ainda”, diz o pesquisador Ricardo Galvão,
professor titular do Instituto de Física da USP e ex-diretor do INPE (exonerado
no ano passado após um embate público com o presidente Jair Bolsonaro,
justamente sobre os dados do desmatamento). “Se não houver uma ação contundente
do governo, o cenário adiante é bastante preocupante.”
“Se continuarmos com as taxas
observadas espera-se que o desmatamento em 2020 supere o observado em 2019;
contudo, a efetiva implementação da GLO pode conter esse avanço nos próximos
meses”, diz o pesquisador Luiz Aragão, chefe da Divisão de Sensoriamento Remoto
do INPE. A sigla GLO refere-se às missões de Garantia da Lei e da Ordem pelas
Forças Armadas, que foi a estratégia usada pelo governo no ano passado para
conter os avanços das queimadas na região.
Uma nota técnica preparada por
ele e outros dois pesquisadores ligado ao INPE e ao Centro Nacional de
Monitoramento e Alerta de Desastres Naturais (Cemaden) alerta ainda para o
risco de um agravante climático: “O Oceano Atlântico apresenta um aumento de
temperatura acima de toda a média histórica nos primeiros meses de 2020. Este
fato preocupa, pois, esta característica tende a causar secas na região
sudoeste da Amazônia, principalmente no estado do Acre e regiões adjacentes”.
O que, por sua vez, representa
uma ameaça à saúde pública: “A expectativa, seguindo o padrão de longo-prazo, é
de que caso não haja uma intervenção incisiva do Estado para coibir os atos
ilegais, essas queimadas induzirão o aumento do material particulado emitido
para a atmosfera, degradando a qualidade do ar e, consequentemente, aumentando
a incidência de doenças respiratórias na população Amazônica. A preocupação
conecta-se com a possibilidade de sobreposição entre as queimadas e a pandemia
de COVID-19, pois haverá uma maior demanda por tratamento em unidades de saúde,
podendo acarretar um colapso destes sistemas nos estados amazônicos, que já
operam no limite”, alerta a nota.
“Os três primeiros meses deste
ano tiveram um aumento expressivo do desmatamento em relação ao ano anterior. É
preciso agir rápido. Caso contrário, a situação de grandes queimadas, com
enorme produção de fumaça, poderá impor sérios danos à biodiversidade da
região, ao clima e, em especial, à saúde da população local, já grandemente
afetada pela pandemia do novo coronavírus”, alerta, também, uma nota técnica do
Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam).
Polícia espacial
As taxas oficiais de desmatamento na Amazônia
são calculadas de 1 de agosto a 31 de julho do ano seguinte, por um sistema de
alta resolução chamado Prodes. Já o Deter é um sistema que utiliza imagens de
satélite para detectar desmatamentos e emitir alertas para as autoridades de
fiscalização ambiental. Sua resolução espacial é baixa — só consegue detectar
clareiras maiores do que 6 hectares —, mas serve como um “termômetro” do que
está acontecendo na floresta. No ano passado (agosto de 2018 a julho de 2019),
o Deter registrou alta de 50% no desmatamento; e a variação final — calculada
posteriormente pelo Prodes — ficou em 30%. Os dados de ambos os sistemas estão
disponíveis publicamente na plataforma digital TerraBrasilis.
O
que o projeto MapBiomas fez agora, pela primeira vez, foi juntar todos os
alertas do Deter e de outros sistemas de monitoramento por satélite (SAD, do
Imazon, e GLAD, da Universidade de Maryland) num único Relatório Anual de
Desmatamento, para dar um panorama completo de tudo que aconteceu no ano de
2019, em todos os biomas brasileiros. A ideia é que isso se torne um relatório
anual, com dados atualizados mensalmente numa plataforma digital, chamada
MapBiomas Alerta, que já está operacional.
“O
objetivo é justamente inverter essa tendência de aumento do desmatamento,
aumentando a responsabilização dos infratores e garantindo que todos os
processos tenham andamento”, afirma Rosa.
Mais
de 99% dos quase 57 mil alertas analisados pelo projeto tem alguma
irregularidade associada; ou porque o desmatamento foi feito sem autorização
legal ou porque avançou sobre alguma área proibida, como unidades de
conservação, terras indígenas ou áreas de preservação permanente (APPs). Mesmo
com todo esse aparato de policiamento via satélite, porém, ainda são poucos os
alertas que resultam em alguma punição legal para os infratores, por causa das
várias dificuldades logísticas e jurídicas de se processar crimes ambientais no
Brasil. Apenas uma porção ínfima das multas aplicadas são efetivamente pagas,
gerando uma sensação de impunidade que serve como combustível para a
continuidade do desmatamento, aponta Rosa.
“Apesar
de o monitoramento já existir há um bom tempo, ainda são limitadas as ações
levadas a cabo, tanto com dados anuais como mensais, seja para prevenir,
controlar ou penalizar o desmatamento ilegal em todos os biomas brasileiros”,
diz o relatório. “Segundo dados do IBAMA de 2018, estima-se que menos de 1% das
áreas desmatadas na Amazônia entre 2005 e 2018 foram repreendidas por multas,
ações civis públicas e embargos”.
Como
o MapBiomas Alerta pode ajudar a reverter esse quadro? Todos os alertas
incluídos na plataforma foram confirmados, qualificados e refinados por meio da
comparação com imagens de satélite de altíssima resolução (da empresa Planet) —
que não deixam dúvidas sobre a ocorrência do desmatamento — e do cruzamento
dessas imagens com diversas plataformas de dados oficiais, que permitem dizer
se o desmatamento ocorreu em áreas públicas ou privadas, com ou seu autorização
legal, e se ele se sobrepõe a alguma unidade de conservação ou outras áreas de
proteção ambiental.
Para
cada um desses alertas, portanto, é possível baixar um laudo técnico, com
imagens em alta resolução do “antes e depois” do desmatamento, e uma série de
outras informações georreferenciadas sobre a área impactada. A ideia é
facilitar o trabalho das autoridades e “acabar com a impunidade do
desmatamento”, afirma Rosa. Órgãos judiciais e de fiscalização têm, inclusive,
a opção de imprimir os laudos já com o logotipo oficial da entidade no topo.
“Temos
laudos prontos para 57 mil alertas”, diz o pesquisador. “A missão agora é
garantir que eles sejam usados.” O detalhamento do laudo é tão preciso, segundo
ele, que seria possível abrir processos remotamente e enviar autuações pelo
correio, sem nem precisar visitar o local. Funcionaria como uma multa de
trânsito por radar, que chega para o proprietário do veículo via correio, já
com foto, data, local e detalhamento da infração cometida. “Se a pessoa quiser
recorrer, pode recorrer; mas vai ter que recorrer contra uma imagem de alta
resolução”, diz Rosa.
Cerrado
A
situação no Cerrado também é preocupante. O número de alertas de desmatamento
registrados no bioma em 2019 foi de 7 mil, comparado a 47 mil alertas na vizinha
Amazônia, segundo o MapBiomas. Ainda assim, a área total desmatada foi de 4 mil
km2, mais da metade do que foi desmatado na Amazônia (7,7 mil km2);
o que significa que o tamanho médio dos desmatamentos no Cerrado foi bem maior
do que no bioma vizinho — 55 hectares versus 16 hectares, segundo o estudo.
O
Cerrado tem várias vantagens com relação a Amazônia, que deveriam, em tese,
favorecer o controle e a legalidade do desmatamento no bioma: a situação
fundiária é bem resolvida (porque grande parte das terras está na mão de
proprietários rurais, com titulação definida) e o Código Florestal permite que
até 80% da área dessas propriedades seja desmatada legalmente, comparado a 20%
na Amazônia. Ainda assim, a maior parte dos desmatamentos no bioma tem sinais
de ilegalidade; ou por falta de autorização ou por sobreposição com áreas de
preservação, segundo o MapBiomas.
O
fato do desmatamento permanecer na ilegalidade, mesmo quando há plenas
condições para que ele seja feito de forma legal, “mostra claramente o fracasso
da capacidade de gestão e a falta de vontade política para fazer esse sistema
funcionar”, diz a pesquisadora Mercedes Bustamante, do Instituto de Ciências
Biológicas da Universidade de Brasília, especialista em Cerrado. “Era para ser
a prova de conceito de que a regularização fundiária é suficiente para
controlar o desmatamento ilegal, mas essa prova não está funcionando”, completa
ela.
Os
números do Deter indicam que o desmatamento no Cerrado este ano, por enquanto,
está menor do que no ano anterior; mas isso não significa que a pressão sobre o
bioma esteja arrefecendo. Segundo Mercedes, é comum proprietários desmatarem
grandes áreas num mesmo ano, quando as condições são propícias (como foram no
ano passado), e irem ocupando essas áreas gradativamente ao longo dos anos
seguintes, conforme a necessidade. Historicamente, cerca de metade da cobertura
vegetal original do Cerrado já foi desmatada, e a metade que resta está
bastante fragmentada, comprometendo a conservação da biodiversidade e dos serviços
ecossistêmicos do bioma presta para a sociedade, alerta a pesquisadora.
Mata
Atlântica
Na
Mata Atlântica, o último Atlas produzido pela Fundação SOS Mata Atlântica, em
parceria com o INPE, registrou um aumento de 27% no desmatamento do bioma no
ano passado, após dois anos consecutivos de queda. Foram 145 km2 de floresta
derrubada entre outubro de 2018 e setembro de 2019; uma área irrisória se
comparada à do desmatamento na Amazônia ou no Cerrado, mas muito relevante para
um bioma que já perdeu quase 90% de sua cobertura vegetal original.
“É
uma ordem de grandeza que assusta”, diz o pesquisador Jean Paul Metzger,
professor titular de ecologia no Instituto de Biociências da USP. “Minha
expectativa para os próximos anos é bastante negativa; não vejo perspectiva de
melhora em curto prazo”, completa ele, referindo-se aos rumos da política
ambiental no país.
Na
Mata Atlântica, assim como no Pampa e no Pantanal, o número de queimadas
observado nos primeiros cinco meses deste ano já está bem acima do registrado no
mesmo período de 2019, segundo o programa de monitoramento de queimadas do
INPE.
O
bioma é protegido desde 2006 pela chamada Lei da Mata Atlântica, que restringe
a abertura de novas áreas e exige a recomposição das matas que foram derrubadas
de 1993 até agora. O discurso político do governo Bolsonaro, porém, vai no
sentido oposto do espírito da lei, segundo pesquisadores e ambientalistas.
Um
despacho do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, publicado no início de
abril, praticamente anistiava desmatamentos realizados em áreas de preservação
ambiental dentro do bioma até 2008, determinando que as regras do Código
Florestal (de 2012) deveriam se sobrepor às da Lei da Mata Atlântica. O
Ministério Público Federal, em parceria com a Fundação SOS Mata Atlântica e a
Associação Brasileira dos Membros do Ministério Público do Meio Ambiente
(Abrampa), entrou com uma ação civil pública contra o despacho, que acabou
sendo revogado pelo ministro no início deste mês.
Pantanal,
Caatinga e Pampa: os biomas ignorados pelos candidatos à presidência em 2018.
Os
alertas usados pelo MapBiomas para a Mata Atlântica, Caatinga, Pantanal e Pampa
são provenientes do sistema GLAD (Global Land Analysis and Discovery), da
University de Maryland, nos Estados Unidos. Trata-se de um sistema de
monitoramento global, sem adaptações específicas para a detecção de
desmatamentos nesses biomas (que possuem, cada um deles, características
distintas de cobertura vegetal), além de não fornecer uma varredura constante
dessas áreas. Por isso, diz o relatório, “o número de alertas e as áreas
identificados pelo MapBiomas Alerta constituem um valor conservador que ainda
subestima a área total desmatada” nesses biomas. (ecodebate)
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