Comparar com os anos 1970 faz
sentido porque a época retrata uma realidade anterior à atual, em relação a
três fatores: demografia (na época, a população era mais jovem), Previdência (o
total de contribuintes era bem superior ao de beneficiários) e de contas
públicas (o gasto primário da União girava em torno de 11%, metade do atual).
Todo país rico – com alto
Índice de Desenvolvimento Humano – passou pela transição demográfica, o que
significa a passagem de altas para baixas taxas de mortalidade e natalidade.
Durante 200 mil anos, desde o surgimento do Homo sapiens, as taxas de
mortalidade sempre foram altas (e a esperança de vida ao nascer das diversas
populações era muito baixa, entre 20 e 25 anos) e para se contrapor à
mortalidade precoce, as taxas de fecundidade tinham de ser altas para garantir
a sobrevivência das populações. Assim, a grande maioria das mulheres começava a
ter filhos ainda na adolescência e passava todo o período reprodutivo tendo
filhos.
Durante o século XX a
esperança de vida da humanidade mais que dobrou, passando de cerca de 30 anos
em 1900, para mais de 60 anos no ano 2000. A vitória sobre a mortalidade
precoce foi uma vitória e tanto e jamais algo parecido havia acontecido no
mundo. Crianças morriam como mariposas e adultos “abandonavam” a vida em seus
momentos de maior produtividade e criatividade. Muitos sonhos foram desfeitos e
muita potencialidade foi desperdiçada. Mas com a união de todas as forças
progressistas e o esforço coletivo as taxas de mortalidade foram reduzidas e continuam
a cair nas duas primeiras décadas do século XXI.
Sociedade que tem uma taxa de fecundidade acima de 4 filhos por mulher (pelo menos 4 filhos sobreviventes) teria uma progressão familiar como na figura abaixo. A formação de um casal, com idade ao casamento abaixo de 20 anos, formaria uma família com 4 filhos em torno de 30 anos. Este 4 filhos sobreviventes formariam outras 4 famílias e tendo 4 filhos em média 60 anos depois da união do casal hipotético. Quatro famílias com 4 filhos cada uma, possibilitariam a formação de 16 famílias, que com 4 filhos sobreviventes em média, daria 64 filhos 90 anos depois da primeira união hipotética da figura abaixo. Seguindo nesta lógica, os 64 filhos formariam 64 famílias que teriam 256 filhos, 120 anos depois da primeira união. E estes teriam 1.032 filhos 150 anos depois da primeira união. A partir de 2 pessoas com sobrevivência acima de 30 anos, uma sociedade chegaria a 1.032 descendentes em pouco mais de um século.
Esta lógica – com ritmo maior ou menor nos diversos momentos históricos – é a base do crescimento exponencial que possibilitou que a população humana passasse de 4 milhões de pessoas há 12 mil anos, para atingir 8 bilhões de habitantes em 2023 (a população global cresceu 2 mil vezes em 12 mil anos). No extremo, isto pode ser a base do círculo vicioso da pobreza.
Mas este ritmo começou a
mudar nos últimos 2 séculos. O demógrafo australiano John Caldwell – no livro
Theory of fertility decline, 1982 – afirmou, de forma categórica, que só
existem dois tipos de regimes de fecundidade: um, em que prevalecem altas taxas
de nascimento e os pais não têm ganhos econômicos no controle da fecundidade; e
outro, em que prevalecem baixas taxas de nascimento e não há ganhos econômicos
em tal controle. Em ambas as situações o comportamento dos indivíduos é
economicamente racional.
No regime de alta fecundidade
(como na figura acima), o fluxo intergeracional de riquezas (moeda, bens,
serviços e proteção contra riscos) vai dos filhos para os pais, ou das novas
para as velhas gerações. Isto é, os filhos são fonte da riqueza dos países, os
netos são fonte de riqueza dos avós, etc. Nesta situação, o crescimento das
famílias e, consequentemente, da população, é uma estratégia para garantir a
“fortuna” das gerações mais velhas.
Mas tem dois problemas nesta
perspectiva. A riqueza que vai das novas para as velhas gerações é uma riqueza
muito determinada em termos de proteção de riscos e não de aumento da renda e
do patrimônio. Este tipo de família tem uma baixa taxa de poupança, pois o
investimento é feito na quantidade e não na qualidade das crianças. Neste
contexto, as mulheres são “forçadas” a passar toda a vida em atividades
reprodutivas e ficam fora das atividades produtivas (com baixíssima inserção no
mercado de trabalho). Assim, tende a prevalecer a família patriarcal, com alta
desigualdade de gênero, do homem/pai como único “ganha pão” da família.
O outro efeito da alta fecundidade é fazer a pirâmide etária ter uma base muito larga, isto é, com alta dependência de jovens e baixa proporção de pessoas em idade ativa, como mostrado no gráfico abaixo referente à Coreia do Sul, em 1950. Ou seja, um regime de alta fecundidade dificulta o investimento nas crianças (futuras gerações), dificulta o aumento da taxa de poupança e de investimento (como mostrou Rostow), dificultando o aumento da produção agregada e o aumento da renda per capita.
O regime de baixa esperança de vida e alta fecundidade prevaleceu na maior parte dos 200 mil anos da história do Homo sapiens, com o fluxo intergeracional da riqueza indo das novas para as velhas gerações. Porém, algo aconteceu que possibilitou a reversão do fluxo. E, a despeito de todas as resistências, a fecundidade caiu na maior parte dos países do mundo, inclusive no Brasil. Independentemente das ideologias nacionalistas e religiosas, as mulheres e os casais passaram a ter menos filhos, o que representou uma mudança de comportamento de massas sem precedente.
Os estudos de Caldwell
mostram que a queda das taxas de fecundidade está ligada à reversão do fluxo
intergeracional de riqueza, que deixam de ir dos filhos para os pais, ou das
novas para as velhas gerações e passa a ir dos pais para os filhos. As famílias
passam a investir na qualidade e não na quantidade de filhos. A questão chave
para se entender a transição da fecundidade, passa a ser a compreensão da
direção e magnitude do fluxo intergeracional de riqueza. Este tipo de família
tende a ter maior igualdade de gênero.
Caindo as taxas de
mortalidade não fazia mais sentido manter altas taxas de natalidade. Contudo,
houve resistência nas sociedades que haviam se preparado durante séculos para
manter altas taxas de fecundidade (n° filhos por mulher) e criado uma cultura
pronatalista. Romper com tradições e fatalismos é sempre uma ação social que
encontra muitas barreiras. A ordem patriarcal foi consolidada valorizando as
mulheres enquanto donas de casa, esposas e mães dedicadas, o que restringia uma
mudança nas relações de gênero.
Para Caldwell, a reversão do
fluxo intergeracional não é mecanicamente determinada pelas condições
econômicas, mas sim, por um fenômeno social que decorre da mudança da família
extensa para a família nuclear. O processo de ocidentalização significa a
erosão das estruturas tradicionais da família e a promoção de um processo de
nuclearização que tem como consequência o declínio da fecundidade. As forças
que sustentam uma fecundidade elevada podem ser mantidas pelo processo de
modernização se não forem acompanhadas por mudanças sociais específicas, como aconteceu
no Brasil antes de 1960.
De fato, enquanto o Brasil
era uma sociedade agrária e rural, o custo dos filhos era baixo e os seus
benefícios eram altos. Os filhos criados nas fazendas geralmente não iam para a
escola, não possuíam brinquedos e bens industrializados, não demandavam muitos
recursos monetários dos pais e ajudavam na produção de subsistência, nas
tarefas de cuidado da casa, dos parentes e das gerações idosas. A alta
mortalidade infantil era compensada pela alta fecundidade e o custo da mortalidade
era baixo. Homens que tinham filhos fora do casamento não se responsabilizavam
pelos “filhos ilegítimos” (não existia exames de DNA e a legislação não
garantia os direitos dos filhos fora do casamento). Quando se separavam das
mulheres raramente tinham de pagar pensão alimentícia. Nesta situação, ter
muitos filhos era uma atitude racional, pois os pais (as gerações mais velhas)
gastavam pouco com os filhos e recebiam deles muitos benefícios monetários ou
de outros tipos. Desta forma, existia uma alta fecundidade no Brasil porque o
fluxo intergeracional de riquezas ia das novas para as velhas gerações.
Como o processo de
modernização e o crescimento da sociedade urbana e industrial as condições
mudaram muito. Os filhos precisam ir para a escola (por lei e por exigência do
mercado de trabalho), o consumo de alimentos e de produtos industrializados
exigem a obtenção de recursos monetários. O casal ficar “grávido”, fazer
pré-natal, pagar pelos diversos custos do parto, cuidar da criança nos seus
primeiros meses, etc. fazem da mortalidade infantil um custo alto, em termos
financeiros e psicológicos. Garantir uma boa escola e condições de estudo
adequadas para os filhos está sempre além das possibilidades das famílias.
Paralelamente ao aumento do custo dos filhos, existe a redução dos seus
benefícios, pois existem leis contra o trabalho infantil, os filhos fora do
casamento são identificados pelo teste de DNA e as separações não eliminam os
compromissos dos pais com os filhos. Por outro lado, o sistema previdenciário
faz com que os pais não dependam financeiramente dos filhos na velhice. Por
conta de todas estas transformações, o custo dos filhos é alto e os seus
benefícios são baixos.
Invertendo a relação
custo/benefício dos filhos inverte-se também o fluxo intergeracional de
riquezas e quando isto acontece a fecundidade cai, de acordo com a análise de
Caldwell. Mas não só as mudanças econômicas estruturais possibilitaram a
transição da fecundidade. Como mostrou Faria (1989) as políticas públicas
promovidas pelo Governo Federal, depois de 1964, foram estratégicas para o
aumento da demanda por regulação fecundidade e a consequente redução da
natalidade no Brasil: 1) política de crédito ao consumidor; 2) política de
telecomunicações; 3) política de previdência social; 4) política de atenção à
saúde. Usando um arcabouço próprio dos enfoques culturais, o autor considera
que as políticas públicas influenciaram na queda da fecundidade agindo como
vetores institucionais (difusão) portadores de novos conteúdos de consciência
(inovação). A transição da mortalidade induz a transição da fecundidade e as
mudanças estruturais e institucionais do país sancionam a transição
demográfica. Geração e gênero são fundamentais neste processo (Alves, 1994).
Quando a fecundidade cai e as
famílias passam a investir mais na qualidade do que na quantidade dos filhos a
dinâmica das famílias muda como na figura abaixo, onde cada família adota o
filho único. É claro que o exemplo abaixo é hipotético, mas é um modelo assim
que serviu de base para a política de filho único da China.
Numa sociedade com alta fecundidade as famílias se multiplicam e com baixa fecundidade é o contrário. Partindo de um total de 8 famílias, a figura abaixo mostra o efeito da adoção de uma taxa de fecundidade igual a 1 filho sobrevivente por mulher. De um situação de 8 famílias, o filho único gera 4 famílias, depois 2 famílias e finalmente 1 família (é um situação de decrescimento populacional).
Ou seja, ao invés de um casal gerar 1.032 descendentes em 150 anos, o modelo de filho único gera uma redução de 8 famílias para 1 família em menos de um século. O filho único da figura acima não tem irmãos e primos, mas tem 16 trisavós, 8 bisavós, 4 avós, além dos dois pais. Se cada adulto deixa uma herança/patrimônio para a geração mais nova, o filho da 4ª geração vai poder contar com um patrimônio considerável. Famílias pequenas avançam no capital humano e quando mais educação tiverem maior será a renda familiar.
Há dois elementos
fundamentais no modelo acima: em primeiro lugar, as famílias tendem a ter maior
igualdade de gênero e serem mais ricas, pois o casal de filho único gasta pouco
tempo com atividades reprodutivas e, em geral, possuem recursos para investir
na própria educação, possuem maior inserção no mercado de trabalho, são mais
produtivos e investem mais no filho. São famílias que entram no círculo
virtuoso da riqueza.
Em segundo lugar, uma menor fecundidade possibilita uma mudança na estrutura etária, como visto abaixo na pirâmide populacional da Coreia do Sul, em 2020. Nota-se que a base da pirâmide reduziu muito em relação ao ano de 1950 e o topo da pirâmide não cresceu tanto. Isto quer dizer que a maior parte da população está nas idades produtivas e isto gera um bônus demográfico que é fundamental para a decolagem do desenvolvimento econômico e social. Se forem adotadas as medidas institucionais corretas, pode existir uma sinergia entre a queda da fecundidade e o aumento da taxa de poupança e da taxa de investimento como aconteceu na Coreia do Sul nos últimos 70 anos.
O mesmo aconteceu com a China, que tinha uma renda per capita 15 vezes menor do que a renda per capita brasileira, mas já tinha taxas de poupança mais elevadas e teve uma decolagem econômica impressionante nos últimos 40 anos depois da adoção da política de filho único, que foi uma política autoritária e contra os direitos sexuais e reprodutivos, mas que foi efetiva no sentido de aproveitar o bônus demográfico chinês e reduzir para praticamente zero o número de chineses na extrema pobreza.
A China e a Coreia do Sul
possuíam uma renda per capita muito menor do que a renda per capita brasileira
em meados do século passado. Cutler et al. (1990), analisando o processo de
transição demográfica, não deixam dúvidas sobre as vantagens da mudança da
estrutura etária: “Nossa conclusão é que a queda da fecundidade representa uma
oportunidade e não um problema” (CUTLER et al., 1990, p.3). Infelizmente, a
Conferência Internacional de População e Desenvolvimento, ocorrida no Cairo em
1994, não levou estas questões em consideração e nem fez referência ao bônus
demográfico. Mas a realidade é que os países do leste da Ásia que passaram pela
mudança do fluxo intergeracional de riqueza conseguiram avançar no bem-estar
econômico, assim como nos indicadores sociais.
A tabela abaixo, com dados do FMI, mostra como a China (43%) e a Coreia do Sul (35,4%) possuem taxas de poupança muito mais elevadas do que no Brasil (18,1%) no período 1980 a 2019. Isto quer dizer que estes dois países do leste asiático investem mais do que o Brasil, possuem maiores taxas de crescimento do PIB e já possuem renda per capita superior à brasileira, sendo que a Coreia do Sul já é considerada de alta renda e a China está a caminho de superar o estágio de renda média. Sem as mudanças demográficas seria impossível o salto do desenvolvimento que ocorreu no extremo asiático. A China e a Coreia do Sul são exemplos de países que souberam aproveitar o bônus demográfico.
A interação entre a demografia e a economia é fundamental para o desenvolvimento econômico. A mudança no fluxo intergeracional de riqueza possibilita a redução da fecundidade e o aumento da taxa de poupança nas famílias e na sociedade.
Mas o bônus demográfico não é
de colheita automática. Políticas públicas de emprego, educação, saúde e
previdência são essenciais para colher os frutos de uma estrutura etária
favorável e para possibilitar o bem-estar de toda a sociedade. (ecodebate)
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